segunda-feira, 13 de abril de 2009

Senhores no banco dos réus


As ações cíveis de liberdade eram instrumentos que os escravos usavam para lutar por suas alforrias mesmo contra a vontade de seus senhores
Ricardo Tadeu Caires SIlva

Martinha era escrava do capitão Martiniano José de Moura Magalhães, que ficara viúvo, com filhos ainda pequenos, quando morava na vila de Nossa Senhora do Livramento das Minas do Rio de Contas, no sertão da Bahia. Em abril de 1817, o capitão chamou várias pessoas à sua propriedade para testemunharem a confecção da carta de alforria de Martinha, a ser concedida mediante o pagamento de 130 mil réis. A indenização monetária pela liberdade da escrava seria aceita em virtude do “bom comportamento” que ela sempre demonstrou, tratando “com amor e zelo os filhos pequenos de seu senhor”.

O acordo entre as partes foi firmado na presença dos proprietários Raimundo José Correia Prado e Francisco Lobo, e do escrivão José Correia Prado, que emitiu o recibo comprovando o pagamento da alforria. Dias depois de efetuada a transação, o capitão, aconselhado por seu filho, ameaçou desfazer o negócio alegando que a quantia apresentada era insuficiente. Munida do recibo que atestava sua alforria, Martinha fugiu e, com o apoio das testemunhas do acordo, impetrou uma ação para garantir sua liberdade.

A reivindicação da escrava estava fundamentada numa sofisticada política de alforrias, praticada durante séculos no Brasil. Segundo o direito costumeiro – aquele presente nas relações cotidianas entre senhores e escravos –, o cativo que, por meio de suas economias, juntasse o dinheiro correspondente ao seu valor poderia comprar sua alforria. O proprietário que contrariasse tal costume estava em desacordo com uma regra social amplamente reconhecida e praticada pela classe senhorial e, por isso, podia perder as prerrogativas sobre o destino de seu escravo. Isto explica o fato de Martinha ter conseguido os dois proprietários como suas testemunhas. Munida de tantas provas, e com o apoio da Justiça, ela conseguiu manter sua liberdade.

O direito costumeiro regulou as alforrias no Brasil até a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro de 1871. Famosa por ter libertado os filhos de escravas nascidos a partir de então, era uma lei bastante complexa, cujos artigos abrangiam o direito do escravo ao pecúlio (espécie de poupança formada a partir de suas economias no trabalho aos domingos e dias santos, além de doações), o fundo de emancipação e a matrícula geral dos escravos do Império, entre outras questões. Foi a primeira intervenção direta do Estado brasileiro na política de alforrias, e seu objetivo era disciplinar a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Aprovada em meio a debates acalorados, a lei gerou muitos protestos por parte dos escravocratas. Para a maioria deles, representava uma intromissão do Estado na relação senhor-escravo que enfraquecia o poder senhorial. De acordo com o artigo 4°, em seu parágrafo 2°, o direito à alforria era garantido ao escravo que possuísse um pecúlio que lhe permitisse indenizar seu senhor. E o senhor que não aceitasse o pecúlio oferecido pelo cativo corria o risco de ter que ir à Justiça assistir ao arbitramento do valor de seu escravo e ver o juiz, mediante o pagamento, passar carta de liberdade ao mesmo.


Durante o arbitramento, o curador do escravo e seu senhor indicavam, cada um, um avaliador para determinar quanto valia o cativo. Se ambos fizessem a mesma avaliação, o valor em questão deveria ser depositado para a expedição da carta de alforria. Caso houvesse discordância entre os avaliadores, o juiz nomeava um terceiro, que deveria optar por um dos valores já indicados pelas partes. E aí é que a coisa se complicava, pois os escravos e seus defensores adotavam estratégias para desvalorizar as avaliações, escolhendo avaliadores simpáticos à idéia da abolição ou simulando doenças que depreciavam o valor dos cativos.

Foi o caso do escravo Francisco, de propriedade de dona Rosa Angélica Pinto, residente em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano. Auxiliado pelo advogado Lázaro do Sacramento Baraúna, Francisco depositou 150 mil réis em juízo e acionou sua senhora na Justiça alegando ser esta quantia suficiente para alforriá-lo, tendo em vista sofrer de vários males, entre os quais “hepatite crônica, hérnia umbilical, cegueira no olho direito devido a uma catarata e moléstias de pele, devido a uma sífilis”. Indignada com a oferta, a proprietária recusou o valor, exigindo pelo menos 800 mil réis, tendo em vista as qualidades profissionais do cativo, que era “caldeireiro, ferreiro e funileiro”. Este impasse no âmbito doméstico levou Francisco a pedir o arbitramento à Justiça, o que foi prontamente aceito pelo juiz. Na avaliação, o perito nomeado pela senhora fixou o valor a ser pago em 600 mil réis, enquanto o perito indicado pelo curador do escravo o avaliou em 450 mil. Diante desta diferença, um terceiro árbitro, nomeado pelo juiz, acabou concordando com o menor valor indicado. Francisco não vacilou, e no mesmo dia depositou os 300 mil réis restantes para completar o valor arbitrado, passando a gozar de sua liberdade. À senhora restou protestar contra a sentença do juiz e receber a referida quantia, depois de deduzidas as despesas do processo.

Auxiliados por simpatizantes da causa abolicionista, muitos escravos se aproveitaram das disposições contidas na lei de 1871 para se libertarem de seus senhores pagando as menores indenizações possíveis. Desta forma ajudaram a desgastar o poder moral dos senhores e a própria escravidão.

A propagação das idéias abolicionistas entre a população, no início dos anos 1880, levou o Parlamento brasileiro a aprovar nova lei referente à libertação dos escravos. Temerosos de que esta nova lei ferisse ainda mais os direitos senhoriais, muitos proprietários e parlamentares se voltaram para a defesa da lei de 1871. Alguns, ainda descontentes, passaram a exigir a elaboração de uma lei mais de acordo com os interesses da grande lavoura. Foi assim que a Lei dos Sexagenários foi finalmente aprovada em 28 de setembro de 1885. Como o próprio nome indica, ela libertava os cativos com mais de sessenta anos. E também procurava corrigir o arbitramento judicial, que os escravocratas consideravam um “abuso” da lei de 1871, estabelecendo para isso uma tabela de preços baseada em faixas etárias. Assim, aos cativos não adiantava mais alegar doença ou qualquer pretexto para baixar o valor das indenizações a serem pagas aos senhores.


Em reação ao conservadorismo da Lei dos Sexagenários, os abolicionistas elaboraram novas estratégias de libertação, tanto legais quanto ilegais. A esta altura, o movimento já congregava os mais diferentes setores sociais – médicos, professores, comerciantes, advogados, profissionais liberais, militares, imigrantes, parlamentares –, obtendo grande aceitação social. Promovendo campanhas destinadas a angariar recursos para as libertações, estimulando a prática das alforrias gratuitas, denunciando as violências cometidas contra os escravos, agenciando fugas e acoitando escravos fugidos de seus senhores, os abolicionistas ampliavam o alcance de suas ações. Chegaram também às barras dos tribunais. Valendo-se da ampla aceitação das idéias abolicionistas entre os magistrados – alguns eram fervorosos militantes –, curadores e advogados exploraram as brechas nas leis escravistas para libertar centenas de escravos, sem que para isso fosse preciso pagar qualquer tipo indenização aos senhores.

Um primeiro argumento muito utilizado foi o da filiação desconhecida. De acordo com as normas do direito brasileiro, só se podia alegar a condição escrava de uma pessoa quando se provasse que ela havia nascido de ventre cativo. Assim, aquele que não tivesse sua filiação escrava comprovada era, por princípio, considerado livre. Muitos senhores matriculavam os cativos trazidos diretamente da África afirmando serem de filiação desconhecida. Então, bastava aos abolicionistas percorrer os cartórios em busca das matrículas dos escravos para incitá-los a contestar o cativeiro em que viviam. Outro argumento poderoso era decorrente da lei de 1831, que proibiu pela primeira vez o tráfico de africanos para o Brasil. Essa lei garantia o direito à liberdade a todos os africanos ilegalmente importados após sua vigência. Embora largamente desobedecida – na verdade, o tráfico de escravos ainda aumentou consideravelmente –, a lei permitiu que os advogados abolicionistas achassem nas matrículas dos escravos, e também nos depoimentos dos próprios cativos, as provas necessárias para sua libertação. No primeiro caso, bastava conseguir a matrícula dos cativos nos cartórios, verificar se haviam sido inscritos como africanos e depois calcular suas idades para saber se haviam entrado no país ilegalmente, isto é, após 1831. Em outras situações, além destas provas legais, os curadores – auxiliados pelos próprios cativos, seus parentes e amigos – apresentavam ricos testemunhos acerca de como e quando os africanos haviam chegado ao Brasil.

Foi o que aconteceu em outubro de 1887 com a crioula Faustina, de 48 anos, e seus filhos Benedito, de 30 anos, Ildefonso, de 23, e Sebastião, de 9 anos, que contestaram o cativeiro do tenente João Martins Ferreira, morador na vila de Maraú, no sul da província da Bahia, alegando serem filha e netos da africana Constância, que havia entrado ilegalmente no Brasil. Para provar este fato, os cativos apresentaram várias testemunhas, muitas das quais eram ex-escravos, como João Nagô. Natural da Costa da África, Nagô tinha 60 anos e exercia o ofício de pescador. Disse em juízo que “Constança veio da Costa da África juntamente com ele, testemunha, em um navio que conduzia africanos de Miguel Champloni, e que desembarcaram nos Taipús à noite, e que aí estiveram escondidos dentro do mato com muitos outros africanos”. O advogado do tenente até que tentou contestar os depoimentos das testemunhas arroladas pelos escravos. Mas acabaram todos livres antes do fim do processo, pois foi decretada a Abolição.

Nos últimos anos da escravidão, uma das principais características dessas ações de contestação da autoridade senhorial e conquista da liberdade era seu caráter coletivo, envolvendo famílias e até mesmo plantéis de escravos. Contavam com a lentidão da Justiça, já que para esses casos não eram cobradas custas processuais e por isso não eram priorizados. E também pelo fato de que a propositura da ação fazia com que fossem retirados do poder de seus senhores e depositados em poder de seus curadores, muitos cativos impetraram ações de liberdade em claro sinal de desrespeito à autoridade de seus senhores.

Aliada a outras estratégias de libertação empreendidas pelo movimento abolicionista, o recurso à Justiça tornou-se, assim, uma importante arma na destruição da escravidão no Brasil.

Ricardo Tadeu Caires SIlva é professor do curso de História da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (Fafipa) e autor da dissertação de mestrado “Os escravos vão à Justiça” (Salvador, FFCH/UFBA, 2000).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Um comentário:

Olive Tree disse...

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