Aficionado por xadrez, Machado cita o jogo em várias obras e o incorpora à sua personalidade
Cláudio de Souza Soares
Sobram apenas quatro peões e um distante cavalo escoltando o rei preto. Os inimigos preparam o xeque: bispo, rainha, cavalo e outros quatro peões, sem falar no rei branco. Diante dessas peças restantes no tabuleiro, vem o desafio: “Brancas jogam. Mate em dois lances”.
Este foi o primeiro problema enxadrístico elaborado por um brasileiro, publicado na revista Ilustração Brasileira em 15 de junho de 1877. Seu autor: Joaquim Maria Machado de Assis.
Três anos depois, a Revista Musical e de Belas-Artes anunciou o primeiro torneio de xadrez disputado no Brasil. Participariam seis dos melhores amadores da Corte. Cada um jogaria quatro partidas com o outro e, no fim, quem obtivesse o maior número de vitórias seria considerado o vencedor. A pontuação do xadrez é simples: vitória, um ponto, empate, meio ponto. Após as primeiras rodadas do torneio, foi divulgado um resultado parcial. Machado de Assis liderava com seis pontos, seguido de Arthur Napoleão (cinco e meio), Caldas Vianna (quatro e meio), Charles Pradez (quatro), Joaquim Navarro (um) e Vitorino Palhares (um). Mais à frente, o escritor apareceria em terceiro, ultrapassado por Arthur Napoleão e João Caldas Vianna.
Terminar atrás apenas daqueles dois não era nenhuma desonra. João Caldas Vianna Neto (1862-1931) foi o primeiro grande enxadrista brasileiro, idealizador da “Variante Rio de Janeiro” na “Abertura Ruy Lopez”. O maestro Arthur Napoleão (1843-1925), que aos 16 anos enfrentara o campeão mundial de xadrez Paul-Charles Morphy em partida amistosa realizada no New York Chess Club, lutou incansavelmente pela divulgação e pelo desenvolvimento do xadrez no Brasil.
A cronologia do enxadrista Machado de Assis coincide com a presença de Arthur Napoleão na Corte, a partir de 1866. As duas paixões em comum – a música e o xadrez – aproximaram o escritor e o maestro. Foi sob a influência de Napoleão que Machado se iniciou nos segredos do tabuleiro, do qual passou a ser um aficionado, fazendo do xadrez um sedativo espiritual e um salutar instrumento de convivência social.
Sua intensa dedicação ao jogo nos leva a uma pergunta inevitável: o xadrez ajudaria a explicar o gênio de Machado de Assis? Não faltam precedentes na literatura para justificar essa hipótese. O escritor russo-americano Vladimir Nabokov considerava a criação de um romance semelhante à composição de um problema enxadrístico. Para o novelista russo Ivan Turgueniev, o xadrez era “uma necessidade tão imperiosa quanto a literatura”. Ao longo da História, o interesse pelo “jogo imortal” acompanha muitos dos que abraçam o ofício das letras. A lista inclui, entre outros, William Shakespeare, Goethe, Lewis Carroll, Charles Dickens, Arthur Conan Doyle, Rudyard Kipling, Herman Melville, George Orwell, Stephan Zweig, Dostoievski, Ibsen, Edgar Allan Poe, Bernard Shaw, Tolstoi, Balzac e Guimarães Rosa. Gosto que, é claro, não se limita aos escritores. O xadrez está nas mais nobres biografias, do astrônomo Galileu Galilei aos filósofos Spinoza e Diderot, do químico Mendeleiev, inventor da tabela periódica, aos compositores Beethoven e Chopin.
Se Miguel de Cervantes percebia o xadrez como algo semelhante à vida, Machado de Assis, no conto “Antes que cases” (1875), discorda do escritor espanhol: “A vida não é um jogo de xadrez”. Mais tarde, em Iaiá Garcia (1878), parece voltar atrás quando atribui à personagem principal duas virtudes – “vista pronta e paciência beneditina” –, e assim as descreve: “qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas”.
Não chega a ser surpresa constatar que o xadrez seduziu Machado de Assis, um autor que centrou seu interesse na sondagem psicológica e, como poucos, buscou compreender os mecanismos que comandam as ações humanas. Fossem elas de natureza espiritual ou decorrentes da influência que o meio social exerce sobre cada indivíduo, tudo era temperado com profunda reflexão.
A discrição e a obstinação de Machado eram características de um grande enxadrista. Quanto mais sua obra se afirma, mais ele se torna um homem retraído, calado, metido consigo. Em 1880, época de sua mais intensa atividade enxadrística, ele publica, originalmente como folhetim, o romance que para muitos é o divisor de águas em sua carreira: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em 1904, no romance Esaú e Jacó, o autor explica seu método de criação, comparando a narrativa a um jogo de xadrez: “Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos”. “Trebelho” é como se chama qualquer peça do jogo de xadrez. A “troca de serviços” entre o enxadrista e suas peças volta e meia fazia aparecer, explícito, o jogo que seduzia o autor – mencionado também em contos (“Questão de vaidade”, “Astúcias de marido”, “História de uma lágrima”, “Rui de Leão”, “Qual dos dois”, “Quem boa cama faz”), em diversas crônicas e na novela A Cartomante (1884).
Machado de Assis era problemista desde a década de 1870. Publicou vários de seus desafios e enigmas em revistas, além de manter rica correspondência com as seções especializadas dos periódicos da época e ocupar posição destacada nos círculos enxadrísticos do tempo do Império. Em 1868, já freqüentava o Club Fluminense para dedicar-se ao jogo. Anos mais tarde, passou a praticar seu “querido xadrez” no Grêmio de Xadrez, que funcionava em cima do Club Politécnico, na Rua da Constituição, 47. O interesse se prolongou por anos a fio, como revela sua correspondência com o embaixador Joaquim Nabuco. Em 1883, Nabuco lhe enviou de Londres recortes de jornais com descrições de partidas, atendendo a um pedido do escritor, que assim agradeceu: “Antes de falar do livro, agradeço muito suas lembranças de amizade, que de quando em quando recebo. A última, um retalho de jornal, acerca da partida de xadrez, foi-me mandada a casa pelo Hilário”.
Em vários números da revista Ilustração Brasileira e da Revista Musical e de Belas-Artes, Machado é citado como solucionista de problemas de xadrez. Arthur Napoleão, que redigiu seções especializadas em algumas revistas e no Jornal do Commercio, publicou, em 1898, Caissana Brasileira, uma coleção de 500 problemas enxadrísticos seus e de outros autores. Entre eles, aquele problema publicado por Machado de Assis em junho de 1877. A respeito desse “enigma machadiano”, o maestro registrou o seguinte comentário: “Como o poeta francês Alfred de Musset, Machado de Assis compôs um bonito 2 lances”.
Alfred de Musset (1810-1857), o “Poeta Romântico do Xadrez”, foi uma das referências literárias de Machado, e parece ter sido também uma de suas referências como enxadrista. Em 1848, Musset tornou-se membro assíduo do famoso Café de la Régence, em Paris. Centro mundial do xadrez, o Café era o lugar preferido da intelectualidade parisiense. O xadrez do século XIX inspirava-se no sentimento romântico: os jogos eram francos e suicidas. Conta-se que, no momento em que irrompeu a Revolução de 1848, em 24 de fevereiro, Musset estava no Café de la Régence, no meio de uma partida. Os tiros começavam a ser ouvidos das ruas, mas foram ignorados pelo poeta, que continuou contemplando o tabuleiro.
Anos mais tarde, provavelmente inspirado por essa história a respeito de Musset, Machado escreveu em crônica de 1° de junho de 1877 para a Ilustração Brasileira:
Conta-se que no Café da Regência, em Paris, onde se joga o xadrez, dois adversários tinham encetado uma partida, quando entrou um freguês às 9 horas e meia e falou a um dos jogadores:
– Como tens passado, Janjão?
O jogador não lhe respondeu; mas, à meia-noite, acabada a partida, ergueu a cabeça e disse placidamente:
– Assim, assim. E tu?
O outro estava, desde as onze, entre os lençóis.
Além dessa incrível capacidade de concentração desenvolvida por seus praticantes, o xadrez tem a fama de estimular outros talentos humanos. Entre eles, o da memorização visual. Um pitoresco relato mostra como este dom assumiu em Machado um caráter todo especial, invadindo o terreno da ficção. Quem conta é o escritor Medeiros e Albuquerque (1867-1934):
Certo dia, Machado me chamou na rua para contar-me este fato: disse-me que, na véspera, à tarde, quando voltava para casa, vira no Largo da Carioca um sujeito que ele conhecia. Conhecia; mas não sabia de onde. Rodou em torno do sujeito, fazendo um grande esforço de memória para lembrar-se de onde o vira, até que, de súbito, achou: Ah! É o Raposo do Medeiros! Eu tinha publicado, dias antes, na Revista Brasileira, um conto – “As calças do Raposo”. Lendo-o, Machado de Assis evocara um certo tipo para o meu Raposo.
Ou seja: Machado era capaz de evocar um personagem com tanta nitidez que julgava encontrá-lo na vida real!
Para a mente de um romancista-enxadrista, a associação do jogo com a literatura soa natural. A leitura de um livro é apenas uma das possibilidades que o arranjo de suas jogadas, ou histórias, pode conter. Esse é o princípio da combinatória. Esse é o princípio do jogo que Machado propõe aos seus leitores.
Enquanto um livro de Machado de Assis for exumado de uma estante e lido, é porque a partida continua. Estamos em xeque. O próximo movimento de Machado de Assis é um enigma. A ressaca no olhar inesgotável de Capitu é apenas um deles. Pistas essenciais para o estudo da obra do grande escritor brasileiro poderão ser descobertas nos labirintos do tabuleiro, no contínuo movimento de suas peças? Como ele próprio nos aconselha em Iaiá Garcia, será preciso “manter a vista pronta e a paciência beneditina”, pois aqui (e assim é a própria vida) jogamos xadrez.
Cláudio de Souza Soares é enxadrista, analista de sistemas e autor do artigo "Machado de Assis, o enxadrista" (Revista Brasileira, Nº 55, Academia Brasileira de Letras, 2008).
Saiba Mais - Livros:
CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
DOYLE, Plínio. “Machado de Assis, jogador de xadrez”. Rio de Janeiro: Boletim da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, nº 1, setembro de 1958.
MATHIAS, Herculano Gomes. “Machado de Assis e o jogo de xadrez”. Rio de Janeiro: Anais do Museu Histórico Nacional, vol. XIII, 1964.
SHENK, David. O Jogo Imortal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional