MACUNAÍMA: UM ESBOÇO DO BRASIL
Ricardo Gaiotto de Moraes
Apresentação
Este estudo busca resgatar as Teorias Históricas que foram base para a obra Macunaíma, de Mário de Andrade. Procurei apontar relações entre os pensamentos filosóficos de Herder, Oswald Splenger e Hermann Keyserling e a obra de Mário de Andrade. É importante ressaltar que o embasamento do pensamento de Mário de Andrade não limita-se a esses três pensadores, porém trabalharemos, principalmente, com essas influências.
Vale ressaltar, no entanto, que Mário de Andrade não se aproveita dessas teorias de forma intrínseca, porém utiliza-se de certos pensamentos, que o ajudarão a transpor essas teorias à realidade brasileira e além disso, permitirão ao escritor montar uma teoria de cultura brasileira.
Cultura e Tradição
I. Macunaíma
II. Maioridade
III. Ci, Mãe do Mato
IV. Boiúna Luna
As relações da obra, Macunaíma, com Teorias Históricas apresentam-se já no primeiro parágrafo do primeiro capítulo:
“No fundo do Mato-Virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
- Ai! que preguiça!...” [1]
Macunaíma, “herói de nossa gente”, nasce no Mato-Virgem, ou seja, ligado a uma paisagem. Não tem pai, a não ser que consideremos como pai elementos do próprio ambiente geográfico. Nesta passagem, podemos perceber o nascimento de um mito, que tem em si características - ser sapeca e a preguiça – próprias de um ambiente.
Se compararmos essa passagem a outra de Spengler, perceberemos que o nascimento de Macunaíma nos mostra o nascimento de uma cultura : “Uma cultura nasce no momento em que uma grande alma despertar do seu estado primitivo e se surpreender do eterno infantilismo humano; quando uma forma surgir em meio ao informe; quando algo limitado, transitório, originar-se no ilimitado, contínuo. Floresce então no solo de uma paisagem perfeitamente restrita, ao qual se apega, qual planta.”[2]
Após o nascimento de Macunaíma, Mário de Andrade narra episódios, nos quais o herói está numa relação direta com a natureza, ou seja, com a cultura brasileira. Mário faz uma fusão de diversas lendas de diversas regiões do Brasil, mostrando que o Brasil pode ser considerado uma nação. Adiante voltarei a este tema.
É introduzida no livro uma personagem de importância vital. Trata-se de Vei, a Sol, a qual é um elemento determinante nas culturas tropicais. A partir daí, sempre quando é mencionada, introduzirá uma mudança de rumo no romance. Para Herder: “Tal como a água de uma nascente recebe do solo donde brota a sua composição, as suas qualidades atuantes e o seu sabor, assim o antigo caráter dos povos proveio de traços raciais, do clima, do tipo de vida e da educação, das ocupações primitivas e das ações peculiares a cada um desses povos.”[3] Percebemos, então, que Mário de Andrade, busca mostrar seu herói como alguém ligado à cultura brasileira.
A consolidação da relação entre o herói e o meio, afirma-se no episódio em que Macunaíma conhece Ci, mãe do mato:
“Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunhã dormindo. Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pelo Nhamundá. A cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com jenipapo.
O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pajeú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos:
- Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato!
Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram muitas jandaias, muitas araras vermelhas tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo imperador do Mato-Virgem.”[4]
Neste momento, Macunaíma encontra e “brinca” com Ci, Mãe do Mato. O herói, por isso torna-se imperador do Mato-Virgem. Apodera-se totalmente da cultura e tradição, já que domina a própria mãe do mato. O séquito de pássaros que surge para saudar o herói, é uma manifestação da própria natureza, que agora está a favor de seu mais novo imperador.
“Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. (...) O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri:
- Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.”
“... Mas uma feita jacurutu pousou na maloca do Imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta e tanto que chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu.
Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jaboti e pros boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.
Terminada a função a companheira de Macunaíma toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã[5] famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro.
No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol.”[6]
Esta passagem é uma das principais, já que nos revela vários elementos do livro:
1) Pode revelar-nos uma filiação de Macunaíma à obra Iracema, de José de Alencar, autor romântico, que buscou em suas obras, mesmo que de forma artificial, resgatar o passado indígena brasileiro.[7]
A obra Iracema é, em linhas muito gerais, a lenda da formação do povo cearense. Assim, quando identificamos o filho de Macunaíma e Ci, que “tinha cabeça chata”, como um cearense, de acordo com ditos populares, parece-nos que este filho é a esperança de um povo brasileiro possuidor de sua própria cultura. O filho de Macunaíma, que nesta visão, já fora o filho de Iracema, morre, mas deixa em seu lugar a muiraquitã – um presente de Ci, ou seja da própria natureza (tradição), ou seja a esperança de um Brasil com uma tradição e cultura próprias.
Note-se, que após a morte, o filho de Macunaíma e Ci transforma-se em uma plantinha, o guaraná. É como se o filho, já presente em Iracema, fosse uma esperança que não possibilitou a formação de uma cultura brasileira, mas que abriu caminho e ajudou, como o guaraná, a refrescar o projeto de Mário de Andrade em consolidar a idéia de uma cultura verdadeiramente brasileira.
2) Na passagem mencionada do livro, aparece pela primeira vez a muiraquitã. É o presente que Ci dá a Macunaíma antes de ir para o céu. A muiraquitã representa a esperança do povo brasileiro, como já foi dito acima. É a detentora do projeto de independência brasileiro, pois é o símbolo do enraizamento de uma raça no meio geográfico, o que dá início a uma cultura singular. Note-se, além disso, que Ci sobe ao céu, onde vira uma estrela, a Beta de Centauro. O “campo vasto do céu” representa a tradição dos povos indígenas, é lá que estão os fundadores da cultura, ou seja, aqueles que serviram como totem a tradição.
No capítulo IV, Boiúna Luna, Macunaíma, após uma fuga, perde a muiraquitã.
“(...) Então Macunaíma pôs reparo que perderá o tembetá. Ficou desesperado porque era a única lembrança que guardava de Ci.
(...)
Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo o bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma tracajá engolira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê.(...)
Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.”[8]
Identificamos, neste momento, as duas personagens aparentemente antagônicas geradoras de conflito no romance: Macunaíma, que tentará recuperar a muiraquitã e Venceslau Pietro Pietra, que tentará manter-se dono da muiraquitã, para garantir sua prosperidade. Este é um dos pontos principais do romance, será que as forças em oposição são realmente Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra, ou será que eles representam forças maiores? A esta pergunta responderei mais tarde.
Macunaíma irá para a cidade de São Paulo, ou seja, para a civilização de base européia. No próximo capítulo o ambiente, portanto, passa a ser urbano. Voltando a um ponto mencionado no início deste texto, Mário de Andrade conseguiu até aqui montar uma obra com elementos da cultura brasileira. Esta é uma confirmação de que o Brasil possui realmente uma tradição própria, é portanto uma Nação, ou seja possui uma raça que mantém laços comuns, como o folclore (tradição) e o idioma, que é a máxima prova de um laço social, já que a relação entre significante e significado, somente tem sentido a partir de um “contrato” social que faz parte do arcabouço mental do povo de uma determinada cultura.
Como, segundo Mário de Andrade, o Brasil é uma verdadeira Nação, então precisa de um projeto de desenvolvimento próprio, advindo de uma classe genuinamente brasileira, ou seja, da oligarquia do café, classe tradicional. É importante notar que a muiraquitã - o amuleto, o qual representa para Macunaíma a lembrança de Ci, ou seja, do seu Império, a floresta, ou em outras palavras a tradição – foi roubada por um estrangeiro. Isso pode ser entendido, como a esperança de um desenvolvimento próprio do Brasil ir-se nas mãos do estrangeiro, Venceslau Pietro Pietra. Para continuarmos esta reflexão é necessário avançarmos mais um pouco.
Civilização e Máquina
V. Piaimã
VI. A Francesa e o Gigante
VII. Macumba
VIII. Vei, a Sol
IX. Carta pras Icamiabas
X. Pauí - Podóle
XI. A Velha Ceiuci
XII. Tequeteque, Chupinzão e a Injustiça dos Homens
XIII. A Piolhenta do Jiguê
XIV. Muiraquitã
Continuando a leitura de Macunaíma, no capítulo V, teremos:
“No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá e deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelas saúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do dia os três rumaram pra margem esquerda da Sol.
(...) E (Macunaíma) ficou lindo trepando pelo Araguaia aquele poder de igaras, duma em uma duzentas em ajojo que nem flecha na pele do rio. Na frente Macunaíma vinha de pé, carrancudo, procurando no longe a cidade. Matutava matutava roendo os dedos agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci estrela.”[9]
Macunaíma, a caminho para a cidade, deixa sua consciência na ilha de Marapatá, podemos inferir, daí que o herói dirige-se a um lugar onde sua consciência ligada à cultura indígena – rural – de nada lhe servirá na cidade – civilização.
É importante notar a imponência com que o herói, imperador do Mato-Virgem, parte para São Paulo, afim de reconquistar a muiraquitã roubada: “ficou lindo trepando pelo Araguaia aquele poder de igaras...”
“(...) Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho.
(...) Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja de negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. (...)
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa.”[10]
Estão presentes neste trecho, as três raças formadoras do povo brasileiro, ou seja, o português, o índio e o negro. Estas três raças juntas é que formaram a cultura brasileira, na visão de Mário de Andrade. Note-se aqui, que o autor baseia-se em Keyserling, já que para este: “Se desenvolve uma nova cultura quando da mescla se origina o equivalente a uma nova raça definida.”[11]
Podemos neste instante voltar ao roubo da muiraquitã. Um estrangeiro, não pertencente a uma das raças formadoras do povo brasileiro é quem rouba a muiraquitã, Mário de Andrade, aqui segue mais uma vez Keyserling, pois este depois de comparar a formação de uma nova cultura ao “cruzamento de unidades vitais pré-existentes”, aponta: “Quando os caracteres dos pais são originariamente incompatíveis, formam-se, como no cruzamento de raças díspares, produtos sem caráter que, segundo as circunstâncias, podem ser acolhidas sob a denominação de barbárie, alexandrinismo, ecletismo, sincretismo ou pura civilização de seres que continuam sendo selvagens.”[12]
Tomando como base a situação sócio-econômica brasileira na época em que foi escrito Macunaíma, percebermos que havia uma grande tensão entre a oligarquia cafeicultora nacional tradicional e a nova burguesia industrial urbana formada, em sua maioria, por estrangeiros, mais especificamente italianos. A muiraquitã roubada significa, então o roubo do desenvolvimento independente do Brasil pelo elemento estrangeiro, o qual por não fazer parte da raça formadora do povo brasileiro, ajudou a transformar o Brasil numa “civilização de seres que continuam sendo selvagens”, ou seja, de seres que ainda não tomaram consciência de sua existência como indivíduos próprios de uma cultura e que estão propensos, a até mesmo, negar sua tradição.
Conciliando esta visão com a de Oswald Spengler – ou seja, a visão de que “As culturas são organismos”[13] e que portanto, “cada cultura tem suas possibilidades de expressão, que surgem, amadurecem, decaem e não voltam a repetir-se”[14] – percebemos que o roubo da muiraquitã, em outras palavras, a dominação estrangeira na industrialização dos centro urbanos, representaria um empecilho ao desenvolvimento próprio do Brasil, comprometendo um amadurecimento e conseqüente apogeu da cultura brasileira . Além disso, o Brasil receberia, assim, a decadência de uma civilização estrangeira e de uma raça que não pertence às raças formadoras da cultura nacional.
“E foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota de São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sarapintado volvendo pros matos do norte.”[15]
O séquito de pássaros silvestres, herança de Ci, que acompanhava Macunaíma, volta para a floresta. O séquito não protegerá o herói na cidade.
Após brincar com algumas cunhãs, filhinhas da mandioca:
“A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira... Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentana saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!... A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não. Eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina.(...) Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar.
Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? Nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! Bem guaçu de desdém, tó! Batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.(...)[16]
Macunaíma recém chegado à cidade, encara com estranheza todas as inovações tecnológicas presentes. O herói põe nomes de animais nas “máquinas”, já que seu conhecimento de mundo rural não engloba tantas inovações tecnológicas. A vida nas metrópoles, cercada de máquinas, é algo muito diferente da vida no campo, ou seja, na cultura. Na metrópole, o homem perde suas raízes culturais. Para Spengler: “também a cidade é um ser vegetal, e como toda evolução de uma linguagem de formas superiores, está sempre ligada à paisagem. Somente a Civilização com as suas metrópoles imensas menospreza tais raízes da alma e acaba desprendendo-se delas.”[17]Se voltarmos ao texto de Macunaíma, perceberemos que ele, ainda influenciado pela cultura, neste momento ainda mantém suas raízes, porém, logo as perderá.
Macunaíma resolve ir brincar com a máquina, afinal para se tornar “imperador do mato virgem” também brincara com Ci, se brincasse com a máquina, tornaria-se imperador da metrópole também. Porém, ficou sabendo que não podia brincar com a máquina “porque ela mata”. Percebemos no texto, a incredulidade das cunhãs da cidade em relação aos deuses pertencentes à cultura: “as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata”. Para Spengler: “a alma de todas as culturas vivas é religiosa, tem religião, dê-se isso conta ou não. Mas o homem das metrópoles é irreligioso. Toda religiosidade urbana é uma ilusão”[18]. É este sentimento de incredulidade às crenças antigas que está retratado no trecho retirado de Macunaíma.
Voltando ao livro:
“Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:
- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.
(...) De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma lua: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.”[19]
Macunaíma chega às conclusões acima, pois percebe que o homem, criador da máquina, é ao mesmo tempo submisso a ela. Na metrópole tudo é feito para satisfazer as necessidades da indústria. Segundo Spengler, o “mundo econômico da indústria mecanizada” requer “obediência do industrialista tanto como do operário de fábrica. Ambos são escravos e não donos da máquina, que só agora demonstra o seu secreto e diabólico poder”[20]. Por isso para Macunaíma: “Os homens é que eram máquinas”, isto é, os escravos e “as máquinas é que eram homens”, ou seja, os patrões.
Macunaíma, exposto ao cenário civilizado, vai aos poucos sofrendo uma descaracterização de sua cultura rural. A vida na metrópole vai, aos poucos, denegrindo as raízes da personagem. Se continuarmos a leitura do texto, poderemos perceber elementos que denunciam essa perda de identidade. Esta visão Spengleriana de que a metrópole destruía as raízes do povo rural era muito propícia ao presente de Mário de Andrade. Pois a aceleração da industrialização, assim como a urbanização, foram trazidas pela atividade dos italianos instalados na capital paulista.
Perceberemos, com a leitura de alguns trechos abaixo, que até mesmo os elementos da tradição brasileira vão deixando de apoiar o imperador do Mato-Virgem, este aos poucos vai perdendo o seu trono.
“Caiu dormindo embaixo duma palmeira guairô muito aromada onde um urubu estava encarapitado.
Ora o pássaro careceu de fazer necessidade, fez e o herói ficou escorrendo sujeira de urubu. (...)
Então passou Cuianogue, a estrela-da-manhã. Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o carregasse pro céu. Caiuanogue foi se chegando porém o herói fedia muito.
- Vá tomar banho! Ela fez. E foi-se embora.
Assim nasceu a expressão “Vá tomar banho!” que os brasileiros empregam se referindo a certos imigrantes europeus.
Vinha passando Capei, a Lua. Macunaíma gritou pra ela:
- Sua benção, dindinha Lua!
- Uhum... que ela secundou.
Então ele pediu pra Lua que o carregasse pra ilha de Marajó. Capei veio chegando porém Macunaíma estava mesmo fedendo por demais.
- Vá tomar banho! Ela fez. E foi-se embora.
E a expressão se fixou definitivamente.
Macunaíma gritou pra Capei que pelo menos desse um foguinho pra ele aquecer.
- Peça no vizinho! Ela fez apontando pra Sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se embora.”[21]
Podemos inferir, que a Estrela-da-Manhã e Capei, a Lua, representantes da tradição brasileira, não favorecem nem reconhecem mais Macunaíma pois o herói já está descaracterizado de suas raízes devido a convivência na metrópole.
Prosseguindo no mesmo capítulo, teremos um representativo episódio.
“E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sempre dera presentinhos de bolo-de-aipim pra Sol lamber secando.
Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor-de-ferrugem pintada com muruci e fez as três filhas limparem o herói, caçarem os carrapatos e examinarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaíma ficou alinhado outra vez. (...)
Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela porque afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bolo-de-aipim pra ela chupar secando, falou:
- Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí.
Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele.(...)”[22]
Vei, a Sol queria fazer Macunaíma casar com uma de suas filhas, ou seja, uma das grandes civilizações tropicais, “China, Índia, Peru, México, Egito, filhas do calor.”[23] Por esse casamento ela daria a Macunaíma “Oropa França e Bahia”. O herói, enquanto representante do povo brasileiro, tinha a possibilidade de se tornar genro da Sol. Isso significa que o Brasil aliando-se a uma cultura tropical poderia dominar o mundo. Poderíamos ter a partir daí uma cultura de caráter próprio, como revelam as teorias de Keyserling. Mas,
“Nem bem Vei com as três entram no cerradão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunhã. Acendeu um cigarro e a vontade foi subindo. Lá por de debaixo das árvores passavam muitas cunhãs cunhé cunhé se mexemexendo com talento e formosura.
- Pois que fogo devore tudo! Macunaíma exclamou. Não sou froxo agora pra mulher me fazer mal!
- POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!”[24]
Note-se aqui, que Macunaíma, brasileiro formado pela mescla de três raças tristes e por isso dominado por “dois sentimentos tirânicos: sensualismo e paixão do ouro”[25], não tem nenhum caráter, quebra sua promessa e sai a procura de uma cunhã pra brincar. Segundo Mário de Andrade, Macunaíma assim como o brasileiro: “Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas, ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma.”[26]
A falta de caráter de Macunaíma pode também ser percebida quando analisamos a frase: “POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!”. Macunaíma assume que os males do Brasil são causados por fatores externos e esquece-se que ele próprio está, ao não preservar sua cultura, sendo causa da decadência do Brasil.
“(Macunaíma) Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo Antônio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhãs por aí. Logo topou com uma que fora varinha lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e ainda cheirava nomais! Um farum bem de peixe. Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.”[27]
Macunaíma, ou seja, o Brasil, prefere se unir as culturas européias, as quais já estão em decadência. Macunaíma brinca com uma portuguesa, porque, de tão descaracterizado só se sente interessado pelas filhinhas da mandioca, desprezando a aliança com as culturas tropicais.
“Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a boca-da-noite as moças que vinham na frente encontraram Macunaíma e a portuguesa brincando mais. Então as três filhas de luz se zangaram (...)
Então a Sol se queimou e ralhou assim:
- Ara ara, ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em cima de nenhuma cunhã não!... Falei sim! E inda por cima você brinca com ela na jangada minha e agora estão se rindo um pro outro!
- Estava muito tristinho! Macunaíma repetiu.
- Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.
Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou:
- Si eu subesse...
- O “si eu subesse” é santo que nunca não valeu pra ninguém, meus cuidados! Você o que é mas é muito safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das minhas filhas não!
Daí Macunaíma pisou nos calos também:
- Pois nem eu queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez!”[28]
Depois da traição de Macunaíma, Vei, a Sol, desiste definitivamente de protegê-lo e de dar uma de suas filhas para ele se casar. Por causa da traição o herói irá ficar “pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.” O Brasil, portanto, Spenglerianamente, formado por três raças tristes, “Estava muito tristinho”, devido a sua aliança com civilizações européias já em estado de decadência e irá ter um desenvolvimento de cultura tolhido pela decadência da civilização européia.
“Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças pra darem o passeio na baía e encontraram Macunaíma com a portuguesa inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez presente da pedra Vató pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente quer. E lá se foi a Sol com as três filhas da luz. (...)
No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.”[29]
Perceba-se que Macunaíma não guarda nem o presente da Sol, prefere trocá-lo por algo civilizado, ou seja, a aparição de sua foto no jornal. Algo extremamente urbano.
O herói, na cidade, tenta resgatar a muiraquitã, de várias formas, em corridas desesperada atrás de Venceslau Pietro Pietra, que agora se descobre, é o gigante Piaimã, comedor de gente. Os meios utilizados pelo herói para conseguir realizar sua tarefa são vários: veste-se de mulher, vai a uma macumba... Até que um dia...
“Então Piaimã fez pra ele (Macunaíma) como fizera pro chofer, carregou o herói nas costas de cabeça pra baixo prendido os pés nos buracos das orelhas. Macunaíma aprumou a sarabatana e assim de cabeça pra baixo era ver um atirador malabarista de circo, acertando nos ovinos do alvo. O gigante ficou muito incomodado virou e percebeu tudo.
- Faz isso não, Patrício!
Tomou a sarabatana e jogou longe. Macunaíma agarrava quanto ramo caía na mão dele.
- Que você está fazendo? Perguntou o gigante ressabiado.
- Não vê que os ramos estão batendo na minha cara!
Piaimã virou o herói de cabeça para cima. Então Macunaíma fez cócegas com os ramos nas orelhas do gigante. Piaimã dava grandes gargalhadas e pulava de gozo.
- Não amola mais, patrício! Ele fez.
Chegaram no hol. Por debaixo da escada tinha uma gaiola de ouro com passarinhos cantadores. E os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos. Macunaíma pulou na gaiola e principiou muito disfarçado comendo cobra. Piaimã convidava-o pra vir no balanço porém Macunaíma engolia cobras contando:
- Falta cinco...
E engolia mais outra bicha. Afinal as cobras se acabaram e o herói cheio de raiva desceu da gaiola com o pé direito. Olhou cheio de raiva pro gatuno da muiraquitã e rosnou:
- Hhhn... que preguiça!
Mas Piaimã insistia pro herói balangar.
- Eu até que nem não sei balançar... Milhor você vai primeiro, que Macunaíma rosnou.
- Que eu nada, herói! É fácil que-nem beber água! Assuba na japecanga, pronto: eu balanço!
- Então aceito porém você vai primeiro gigante.
Piaimã insistiu mas ele sempre falando pro gigante balançar primeiro. Então Venceslau Pietro Pietra amontou no cipó e Macunaíma foi balançando cada vez mais forte. Cantava:
Bão-ba-lão
Senhor capitão,
Espada na cinta
Ginete na mão!
Deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou. A caapora lá em baixo não sabia que aquela sangueira era do gigante dela e aparava a chuva na macarronada. Molho engrossando.
- Pára! Pára! Piaimã gritava.
- Balança que vos digo! Secundava Macunaíma.
Balançou até o gigante ficar bem tonto e então deu um arranco fortíssimo na japecanga. Era porque tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau Pietro Pietra caiu no buraco berrando cantando:
- Lem lem lem... si desta escapar, nunca mais como ninguém!
Enxergava a macarronada fumegando lá embaixo e berrou pra ela:
- Afasta que vos engulo!
Porém jacaré fastou? Nem tacho! O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticoticos da cidade e o herói teve uma sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esforço gigantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:
- Falta queijo! Exclamou...
E faleceu.
Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.
Macunaíma quando voltou da sapituca foi buscar a muiraquitã e partiu na máquina bonde pra pensão. E chorava gemendo assim:
- Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você mas não vejo ela!...”[30]
Macunaíma, numa luta, mostra sua sagacidade, mata o gigante Piaimã, comedor de gente e retoma a muiraquitã. Se a tensão principal do Romance fosse a perseguição de Macunaíma ao gigante, teríamos, neste momento, o desfecho do livro. Porém o livro avança, indicando que a verdadeira tensão é o conflito entre a Natureza (tradição) e Civilização (cidade).
O herói retoma a muiraquitã, a esperança de um Brasil com um desenvolvimento próprio, porém a cidade tanto o descaracterizou, que agora ele não conta mais nem com a ajuda de Vei, a Sol, ou seja, não é mais “Imperador do Mato Virgem”.
Rumo ao Campo Vasto do Céu.
XV. A Pacuera do Oibê
XVI. Uraricoera
XVII. Ursa Maior
“Então os três manos voltaram pra querência deles.(...)
(...)
- Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são...
(...)
Depois de muito refletir, Macunaíma gastara o arame derradeiro comprando o que mais o entusiasmara na civilização paulista. Estavam ali com ele o revólver Smith-Wesson o relógio Patek e o casal de galinha Legorne. Do revólver e do relógio Macunaíma fizera os brincos das orelhas e trazia na mão uma gaiola com o galo e a galinha. Não possuía mais nem um tostão do que ganhara no bicho porém balangando no beiço furado pendia a muiraquitã.”[31]
Macunaíma volta a sua terra, porém leva como lembrança da cidade o revólver, o relógio e o casal de galinhas mencionados, todas essas coisas tem origem estrangeira. Além disso, o revólver e o relógio são produtos da civilização das máquina. O herói perdeu sua íntima relação com a floresta. Tanto é verdade que “(Macunaíma) Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio. Logo o silêncio do Uraricoera, que fora um dos fatores responsáveis pelo nascimento dele”.
Macunaíma após perder seus irmãos, terminou seus dias deitado numa rede e contando seus “causos” a um papagaio. Até que numa feita, Macunaíma enfeitiçado pela Uiara é devorado e perde a muiraquitã. Segundo Mário de Andrade:
“(...) ‘Era malvadeza da vigarenta ( a velha Vei, a sol) só por causa do herói não ter se amulherado com uma das filhas da luz’, isto é, as grandes civilizações tropicais, China, Índia, Peru, México, Egito, filhas do calor. A alegoria está desenvolvida no capítulo intitulado “Vei, a Sol”. Macunaíma aceita se casar com uma das filhas solares, mas nem bem a futura sogra se afasta, não se amola mais com a promessa, e sai a procura de mulher. E se amulhera com uma portuguesa, o Portugal que nos herdou os princípios cristãos-europeus. E, por isso, no acabar do livro, no capítulo final, Vei se vinga do herói e o quer matar. Ela que faz aparecer a Uiara que destroça Macunaíma. Foi vingança da região quente solar. (O herói “perde” outra vez a muiraquitã). Macunaíma não se realiza, não consegue adquirir um caráter. E vai pro céu, viver o ‘brilho inútil das estrelas’.”[32]
Macunaíma foi destroçado pela Uiara, perdeu toda sua dignidade. A muiraquitã foi tomada pela Natureza, ou seja, a esperança de um desenvolvimento próprio para o Brasil continua com a Natureza tropical, porém não foi realizado por Macunaíma, herói de nossa gente.
Epílogo
“Acabou-se a história e morreu a vitória.
(...)
A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subirá pro céu (e se transformara na Ursa Maior), porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.
Tem mais não.”[33]
Mário de Andrade, em Macunaíma, colocou-se como um contador de causos. Utilizou-se para isso de uma linguagem simples. Tentou aproximar-se ao máximo da oralidade popular. Além disso, misturou os léxicos de várias regiões do país. Tudo isso fez para consolidar a idéia de que o Brasil possui um idioma próprio. Para Spengler:“ Os idiomas, por sua vez, são formações causais, a atuarem pela polaridade dos seus meios. Uma planta tem raça, mas somente os animais são capazes de receber impressões da raça. A vigilância de seres do reino animal é sempre um ato de falar, seja qual for o meio empregado. Ao lado de tal idioma de comunicação, que pretende ser compreendido por determinadas criaturas. Aquele pressupõe apenas uma vigilância; este requer ainda uma ligação de consciências vigilantes.” Desta forma, Mário de Andrade utilizando-se de um idioma popular tenta fundar a identidade do Brasil, enquanto Nação, pelo idioma.
No capítulo IX, Mário de Andrade satiriza a escrita empolada do intelectuais da época, confirmando suas intenções em expressar-se por meio de um idioma próximo ao popular:
“Quanto ao caso da Carta prás Icamiabas, tem aí um milhão de intenções. As intenções justificam a carta porém não provam que ela seja boa, é lógico e reconheço. Primeiro: Macunaíma como todo brasileiro que sabe um poucadinho, vira pedantíssimo. O maior pedantismo do brasileiro atual é o escrever português de lei: academia, Revista de Língua Portuguesa e outras revistas, Rui Barbosa etc. desde Gonçalves Dias. Que ele (Macunaíma) não sabe bem a língua acentuei pelas confusões que faz (testículos da Bíblia por versículos etc. e o fundo sexual dele se acentua nas confusões testículos, buraco por orifício, etc). Escreve pois pretenciosíssimo e irritante. Pra que escreve? Única e tão somente pra pedir dinheiro. Coisa que já serve de provérbio a respeito de brasileiro que mora no estrangeiro: pedir dinheiro pros patrícios em viagem. Isso pode ser vezo de outras raças também, pouco me importa, coincidência não prova que isso não é bem brasileiro. Agora: como pedir dinheiro? Sorrateiramente, subrepticiamente. É o que ele faz dando como função da carta, contar coisas de São Paulo. Conta. Como? O fundo sexual dele está claro pela abundância de preocupações carnais e por começar por elas. Agora a ocasião era boa pra eu satirizar os cronistas nossos (contadores de monstros nas plagas nossas e mentirosos a valer) e o estado atual de São Paulo, urbano, intelectual, político, sociológico. Fiz tudo isso, meu caro. Fiz tudo isso em estilo pretensioso, satirizando o português nosso, e pleiteando subrepticiamente pela linguagem lépida, Sincera.”[34]
“Tem mais não.”
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro. Simões Editora, 1958.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 2.ed. Belo Horizonte. Itatiaia. 1985.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Dimensões de Macunaíma: Filosofia, Gênero e Época. Tese de Mestrado. Campinas, UNICAMP, 1987.
BOSI, Alfredo (organizador). Cultura Brasileira: Temas e situações. 2. Ed. São Paulo. Ática, 1992.
CAMARA CASCUDO, Luis da. Dicionário do Folclore Brasileiro. 7 Ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro. Itatiaia. S/d.
GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3. Ed. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
HERMAN, Arthur. A idéia da decadência na história ocidental. Rio de Janeiro - São Paulo. Record. 1999.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. Macunaíma: a margem e o texto. São Paulo. HUCITEC, Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, 1974.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira. 9. Ed. São Paulo. Cia das Letras. 1998.
SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da História Universal. Edição condensada por Helmut Werner. 2. Ed. Rio de Janeiro. Zahar. 1973.
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[1] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo I.
[2] Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente, p. 96.
[3] Patrick GARDINER, Teorias da História, p. 44.
[4] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo III.
[5] MUIRAQUITÃ: Artefato de jade, que se tem encontrado no Baixo Amazonas, especialmente nos arredores de Óbidos e nas praias, entre as fozes dos rios Nhamundá e Tapajós, a que se atribuem qualidades de amuleto. Segundo uma tradição ainda viva, o muiraquitã teria sido presente que as amazonas davam aos homens em lembrança da sua visita anual. Conta-se que para isso, nas noites de lua cheia, elas extraíam as pedras ainda moles do fundo do lago em cuja margem viviam, dando-lhes a forma que entendiam, antes de ficarem duras com a exposição do ar. (...)”. (CAMARA CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, p.509)
[6] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo III.
[7] Essa filiação é perfeitamente possível, já que na primeira dedicatória não publicada do livro Macunaíma, há uma citação a José de Alencar: “A José de Alencar, pai dos vivos”.
[8] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo IV.
[9] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, cap. V.
[10] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, cap. V.
[11] Carlos E. O. BERRIEL, Dimensões de Macunaíma: Filosofia, Gênero e Época, p. 120. Apud.
[12] Ibid, p. 120. Apud.
[13] Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente, p. 94.
[14] Patrick Gardiner, Teorias da História, p. 236.
[15] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, cap. V.
[16] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Cáp. V.
[17] Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente, p. 280.
[18] Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente, p. 242.
[19] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo V
[20] Oswald SPENGLER, A Decadência do Ocidente, p. 438.
[21]MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo VIII.
[22] Ibid, capítulo VIII.
[23] Telê Porto Ancona LOPEZ, Macunaíma: a margem e o texto, p. 101. Apud.
[24] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo VIII.
[25] Paulo PRADO, Retrato do Brasil.
[26] Telê Porto Ancona LOPEZ, Macunaíma: a margem e o texto, p. 87. Apud.
[27] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo VIII.
[28] Ibid, capítulo VIII.
[29] Ibid, capítulo VIII.
[30] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, capítulo XIV.
[31] Ibid, capítulo XV.
[32] Telê Porto Ancona LOPEZ, Macunaíma: a margem e o texto, p. 101.
[33] MÁRIO DE ANDRADE, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, Epílogo.
[34] Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, p. 170-171.
UNICAMP
Um comentário:
Eduardo:
Interessantíssimo, mas tenho que ler aos poucos...Não me consigo concentrar ao ler textos grandes no computador.Defeito meu.
1 abraço
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