sábado, 3 de outubro de 2009

OS ÍNDIOS “GOYÁ”, Os Fantasmas e NÓS


OS ÍNDIOS “GOYÁ”, Os Fantasmas e NÓS

Antón Corbacho Quintela

“São noites somente
da pátria formosa,
do índio goyá”.
Noites goianas, Joaquim Bonifácio & Joaquim Santana

É muito provável que todos os que residem em Goiás, e aqueles que por aqui passaram, se tenham perguntado por que este Estado da hinterlândia se chama Goiás. Sempre há, quer um texto, quer um cicerone que dissipa a incógnita revelando que este Estado recebeu o seu nome do gentílico de um povo indígena que morava neste território quando os bandeirantes o invadiram. Nesse sentido, tanto panfletos de caráter informativo geral quanto os documentos oficiais e a maioria dos trabalhos acadêmicos reiteram a explicação consistente em associar o nome do Estado de Goiás à designação utilizada para identificar uns índios que povoavam as terras da nascente do rio Vermelho e a região próxima da Serra Dourada. Todavia, a justificativa da origem do topônimo “Goiás” fica com freqüência relegada a esse tradicional tópico. Assim, embora a vinculação do topônimo a essa suposta tribo ou nação aborígine do Centro-Oeste formada pelos silvícolas denominados “goyazes”, “goiases”, “guayazes”, “guaiás”, “guoyá”, “goyá” ou “goiá” goze de bastante aceitação, geralmente não vai acompanhada de uma explanação que ilumine o cidadão curioso com dados a respeito desses nativos. Pouco mais se menciona além de que os goyá tinham seu principal assentamento no Mato Grosso goiano, concretamente na região que foi escolhida como a paragem idônea por Bartolomeu Bueno da Silva, o filho, para a fundação do Arraial ou Povoado de Sant’Anna.

De supetão, os índios “goyazes”, “goiases”, “guayazes”, “guaiás”, “guoyá”, “goyá” ou “goiá” ter-se-iam misteriosamente extinguido, em pouquíssimos anos após a chegada do Anhangüera II, ora dizimados pelo violento embate com os sertanistas dessa primeira grande bandeira de
ocupação e exploração, ora miscigenados com esses intrépidos paulistas, ávidos de riquezas. Dos goyá não há atualmente nenhum vestígio; sumiram da região onde está encravada a antiga capital do Estado apagando todas as suas pegadas, seja na forma de restos arqueológicos ou de etnotextos, seja na forma de empréstimos ao português de palavras da sua língua. Pode parecer uma empreitada delirante, portanto, ousar reconstruir traços da sua história ou da sua identidade. De todas as formas, é inevitável supor que sua influência, real ou simbólica, sobre os primeiros colonizadores deve ter sido impactante, pois fez com que esta parte do sertão desbravado recebesse a denominação de “Goiás”.

Apesar de os goyá serem o povo indígena goiano menos conhecido de qualquer ótica científica, são os índios que, precisamente, mais foram mitificados sob o ponto de vista folclórico, além de terem sido incorporados à parafernália indigenista que integra o imaginário construído en torno do nosso volk-geist.

Reunindo algumas das escassas referências a eles na documentação histórica, pode-se tentar esboçar o seu retrato, mas temos de estar advertidos de que os esvaecidos contornos deste acabam apresentando uma imagem amorfa.

A explicação clássica de base historiográfica, e impressionista, mais extensa sobre os goyá figura na exposição realizada por Diogo de Vasconcellos em sua História antiga das Minas Gerais. Através da recopilação de supostos documentos esparsos e da interpretação de depoimentos orais, Vasconcellos reconstruiu diacronicamente a transumância do povo goyá até chegar aos sertões do Centro-Oeste.

O autor menciona a nascente do rio Orenoco como o seu hábitat primitivo. Esse primeiro emprazamento teria sido abandonado em uma época remota devidoà pressão exercida por outras tribos. Vasconcellos expõe que os goyá eram pacatos, iniciados na agricultura e na cerâmica, e teriam francamente atingido a posição imitativa dos maias, sob cuja influência remota despertaram, se em meio da evolução não fossem bruscamente interrompidos pela invasão dos caraíbas. Os goyá, aterrorizados, largaram então em grandes massas a terra do Orenoco, e transpuseram o Amazonas, vindo se instalar no Araguaia, onde proliferaram e possuíram a região, que ficou também se chamando Goiás. Tendo em parte cruzado com os antigos tupis deram origem à raça goianá (goiá-parente), que foi a primeira introduzida no amálgama do povo mineiro. Por outro lado, uma breve alusão aos índios goyá é introduzida por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Ele menciona que era crença corrente no primeiro século da colonização que as partes centrais na América do Sul eram habitadas por uma fabulosa nação de pigmeus, identificada mais tarde com os goyá.

A primeira relação extensa das nações indígenas de Goiás está contida na Memória sobre o descobrimento, governo, população e coisas mais notáveis da capitania de Goiás, da autoria do Pe. Luiz Antônio da Silva e Souza. Ao ser uma descrição elaborada em 1812, estando o processo de chegada das primeiras grandes bandeiras ainda vivo na memória transmitida pela tradição oral, a obra de Souza e Silva tem o valor de confirmar que, desde a criação da Capitania de Goiás, a“nação dos Goyazes” somente existia como uma vaga lembrança no imaginário coletivo. Silva e Souza compôs o verbete que condensa a definição que, desde o século XIX, é dedicada geralmente para o temo goyá: “Nação mais branca que o ordinário dos índios desta capitania, e domiciliária no lugar da vila e pelas vizinhanças da Serra Dourada, pacífica e já extinta”.

O intelectual cuiabano Joaquim Francisco de Mattos estruturou uma inovadora argumentação, bastante provocadora e radicalmente oposta às expostas. O autor é do parecer de que o nome guayazes/goyazes foi dado erradamente pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, filho, aos índios kayapó. Segundo ele, esta confusão teria seus alicerces em uma crendice que circulava entre os bandeirantes paulistas consistente em supor que na margem mineira do rio Grande existiria uma tribo tupi de nome “Guayana”. Mattos não nega a existência dos goyá, mas situa seu hábitat entre a boca do sertão – a região de Campinas, SP – e o rio Grande. Além disso, baseando-se em Taunay, o autor acredita que os goyá teriam sido praticamente extintos no século XVI devido a sucessivos andaços de cólera. Assim, a anedota surgida quando Bartolomeu Bueno da Silva, pai, usou do estratagema de prender fogo na aguardente para ameaçar o gentio teria sucedido na região limítrofe com São Paulo do atual Estado de Minas Gerais e não nas beiras do rio Vermelho.

Por sua vez, em História da terra e do homem no Planalto Central, Paulo Bertran comenta, sem muita convicção, o significado etimológico do gentílico goyá, salientando que a raiz semântica guayá e goyá vem do tupi“gente da mesma raça”, “parecido”, “indivíduo semelhante”. Destarte, o termo goyá é apresentado como contraposto a tapuia, sendo ambos de origem lingüística tupi. O índio goyá seria o indivíduo semelhante aos tupis enquanto que por meio da denominação genérica tapuia ficariam englobados todos os povos indígenas de procedência não tupi-guarani– principalmente aqueles do interior – ou todos aqueles grupos tribais cujas línguas pertenciam a outro tronco lingüístico.

Da sumária relação de referências aos goyá exposta aqui, pode-se inferir o grau de paciência e dedicação que deverá ter aquele indivíduo que decida saber por que o Estado em que mora se chama Goiás.

Em primeiro lugar, esse indivíduo terá de esclarecer se os tupis do litoral possuíam dois termos, um para se referirem ao povo com o qual encontravam afinidades lingüísticas, gentílicas e etnológicas – os goyá – e outro – tapuia – em que incluíam ao gentio bárbaro ou inimigo, ao gentio de língua travada. Em segundo lugar, terá de ponderar se é pertinente acreditar que os índios classificados como goyá se reconheciam a si mesmos na denominação “gente da mesma raça”, ou se goyá era tão só o nome mediante o qual os tupi os identificavam. Terá, por outro lado, de explicar-se como era possível que houvesse uma ilhota de índios sertanejos de idiossincrasia tupi cercada pelos kayapó do sul, de língua jê, no Brasil Central. Finalmente, será necessário que resolva a contradição de que sendo os goyá, ademais de poucos, pacíficos, pudessem conviver com os kayapó, índios indômitos e temidos por todos os grupos tribais do Mato Grosso goiano. Perante esse leque de empecilhos, pode ser que conclua que este problema de se os índios goyá existiram ou não é
uma questão que ainda requer bastantes esclarecimentos.

Professor da Faculdade de Artes Visuais da UFG

Revista UGF

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