Como era feita a farinha de mandioca no Brasil do século XVI:
Capítulo XXXVIII
QUE TRATA DAS RAÍZES DA MANDIOCA E DO PARA QUE SERVEM
As raízes da mandioca comem-nas as vacas, éguas, ovelhas, cabras, porcos e a caça do mato, e todos engordam com elas comendo-as crua, e se as comem os índios, ainda que sejam assadas, morrem disso por serem muito peçonhentas; e para se aproveitarem os índios e mais gente dessas raízes, depois de arrancadas, raspam-nas muito bem até ficarem alvíssimas, o que fazem com cascas de ostras, e depois de lavadas ralam-nas em uma pedra ou ralo, que para isso têm, e, depois de bem raladas, espremem esta massa em um engenho de palma, a que chamam tapeti, que lhes faz lançar a água que têm toda fora, e fica essa massa toda muito enxuta, da qual se faz a farinha que se come, que cozem em um alguidar para isso feito, no qual deitam esta massa e a enxugam sobre o fogo, onde uma índia a mexe com um meio cabaço, como quem faz confeitos, até que fica enxuta e sem nenhuma umidade, e fica como cuscuz, mas mais branca, e desta maneira se come, é muito doce e saborosa. Fazem mais desta massa, depois de espremida, umas filhós, a que chamam beijus, estendendo-a no alguidar sobre o fogo, de maneira que ficam tão delgadas como filhós mouriscas, que se fazem de massa de trigo, mas ficam tão iguais como obréias, as quais se cozem neste alguidar até que ficam muito secas e torradas.
Destes beijus são mui saborosos, sadios e de boa digestão, que é o mantimento que se usa entre gente de primor, o que foi inventado pelas mulheres portuguesas, que o gentio não usava deles. Fazem mais desta mesma massa tapiocas, as quais são grossas como filhós de polme e moles, e fazem-se no mesmo alguidar com os beijus, mas não são de tão boa digestão, nem tão sadios; e querem-se comidas quentes; com leite têm muita graça; e com açúcar clarificado também.
Capítulo XXIX
EM QUE SE DECLARA QUÃO TERRÍVEL PEÇONHA É A ÁGUA DA MANDIOCA
Antes de passarmos avante, convém que declaremos a natural estranheza da água da mandioca que ela de si deita quando a espremem depois de ralada, porque é a mais terrível peçonha que há nas partes do Brasil, e quem quer que a bebe não escapa por mais contra-peçonha que lhe dêem; a qual é de qualidade que as galinhas em lhe tocando com o bico, e levando uma só gota para baixo, caem todas da outra banda mortas, e o mesmo acontece aos patos, perus, papagaios e a todas as aves, pois os porcos, cabras, ovelhas, em bebendo o primeiro bocado dão três e quatro voltas em redondo e caem mortos, cuja carne se faz logo negra e nojenta; o mesmo acontece a todo gênero de alimária que a bebe; e por esta razão se espreme esta mandioca por curtir em covas cobertas, e em outras partes, aonde não faça nojo às criações, e se estas alimárias comem a mesma mandioca por espremer, engordam com ela e não lhes faz dano. Tem esta água tal qualidade que, se metem nela uma espada ou cossolete, espingarda ou qualquer outra coisa cheia de ferrugem, lha come em vinte e quatro horas, de maneira que ficam limpas como quando saem da mó, do que se aproveitam algumas pessoas para limparem algumas peças de armas da ferrugem que na mó se não podem alimpar sem entrar pelo são. Nos lugares onde se esta mandioca espremem, se criam na água dela uns bichos brancos como vermes grandes, que são peçonentíssimos, com os quais muitas índias mataram seus maridos e senhores, e matam a quem querem, do que também se aproveitavam, segundo dizem, algumas mulheres brancas contra seus maridos; e basta lançar-se um destes bichos no comer para uma pessoa não escapar, sem lhe aproveitar alguma contra-peçonha, porque não mata com tanta presteza como a água de que se criam, e não se sente este mal senão quando não tem remédio nenhum.
Capítulo XL
QUE TRATA DA FARINHA QUE SE FAZ DA MANDIOCA
O mantimento de mais estima e proveito que se faz da mandioca é a farinha fresca, a qual se faz destas raízes, que se lançam primeiro a curtir, de que se aproveita o gentio; e os portugueses, que não fazem a farinha de mandioca crua, de que atrás temos dito, senão por necessidade.
Costumam as índias lançar cada dia destas raízes na água corrente ou na enxarcada, quando não têm perto a corrente, onde está a curtir até que lança a casca de si; e como está dessa maneira, está curtida; da qual traz para casa outra tanta como lança na água para curtir, as quais raízes encascadas ficam muito alvas e brandas, sem nenhuma peçonha, que toda se gastou na água, as quais se comem assadas e são muito boas.
E para se fazer a farinha destas raízes se lavam primeiro muito bem, e depois, desfeitas à mão, se espremem no tapeti, cuja água não faz mal; depois de bem espremidas, desmancham esta massa sobre uma urupema, que é como joeira, por onde se coa o melhor, e ficam os caroços em cima e o pó que se coou lançam-no em um alguidar que está sobre o fogo, aonde se enxuga e coze da maneira que fica dito, e fica como cuscuz, a qual em quente e em fria é muito boa e assim no sabor como em ser sadia e de boa digestão. Os índios usam destas raízes tão curtidas que ficam denegridas e a farinha, azeda. Os portugueses não a querem curtida mais até dar a casca, à qual mandam misturar algumas raízes de mandioca crua, com o que fica a farinha mais alva e doce; e desta maneira se aproveitam da mandioca, a qual farinha fresca dura sem se danar cinco a seis dias, mas faz-se seca; e quem é bem servido em sua casa, come-a sempre fresca e quente.
Estas raízes da mandioca curtida têm grande virtude para curar postemas, as quais se pisam muito bem sem se espremerem; e, feito da massa um emplasto, posto sobre a postema a molefica de maneira que a faz arrebentar por si, se não a querem furar.
(SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587.)
GABRIEL SOARES DE SOUZA chegou ao Brasil em 1569. Foi senhor de engenho na Bahia. O seu Tratado descritivo do Brasil em 1587 é uma das mais valiosas fontes de informação sobre o Brasil do seu tempo. A história deste trabalho é curiosa. De seu irmão João Coelho de Souza, destemido sertanista falecido às margens do Paraguaçu, recebeu Gabriel Soares de Souza um famoso roteiro, revelador de misteriosas riquezas no setor da mineração. Deslumbrado pelas perspectivas de imensos descobrimentos, planejou uma expedição em grande escala, metodicamente organizada. Era preciso, porém, obter do rei certos favores. Para isso transportou-se Gabriel Soares de Souza para a corte de Madri, onde permaneceu largo tempo na via-sacra dos ministérios e tribunais. Foi ali que escreveu este Tratado descritivo, chamando a atenção do rei e dos ministros para os valores da terra e para os perigos de perdê-la. Obtidos os favores e honrarias, voltou à Bahia e iniciou a expedição, infelizmente malograda.
Não se conhece o original da obra. Mas há dela muitos apógrafos, todos anônimos. Foi publicada pela primeira vez, parcialmente, por frei José Mariano da Conceição Veloso, no princípio do século XIX. Em seguida apareceu o texto completo em publicação da Academia Real das Ciências em Lisboa. Em 1839 Francisco Adolfo de Varnhagen identificou definitivamente o autor em trabalho célebre. Em 1851 o mesmo historiador fez a edição integral e expurgada do texto completo, reeditado em 1879.
(extraído de notas biográficas feitas por Américo Jacobina Lacombe)
Revista Jangada Brasil - 2
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