sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Entre arte e propaganda: fotografia e fotomontagem na vanguarda soviética

Annateresa Fabris
Escola de Comunicações e Artes da USP

Em meados da década de 1910, os dadaístas de Berlim, ao aderirem aos processos de montagem – combinação de imagens fotográficas de diferentes proveniências –, proclamam de uma só vez a morte da arte (tradicional) e a realidade do caos do mundo moderno, introduzindo em suas obras a experiência do choque. Derivada das características fundamentais da metrópole capitalista, tal experiência permite transpor para o interior da obra a percepção de uma transformação cada vez mais veloz, de uma comunicação simultânea, de um hibridismo não alheio à confusão entre real e artístico. A forma, como lembra Manfredo Tafuri, não deve ser mais buscada além do caos, e sim em seu interior, pois é dele que brota uma nova técnica de comunicação, capaz de conferir um novo valor a um universo considerado antes "sem qualidades"2.

Também Adorno detecta a experiência do choque na utilização da montagem, mas a reporta não à vivência urbana, e sim à ação empreendida pelos artistas contra a "unidade orgânica" da obra. A negação da unidade, da síntese e, logo, do princípio configurador coloca em xeque a aparência de reconciliação entre o homem e a natureza que estava na base da concepção orgânica anterior ao cubismo. Ao admitir em seu interior as "ruínas literais" do mundo empírico, a arte, a partir das colagens cubistas, dá início ao processo contra a obra como "nexo lógico", infligindo "vistosas cicatrizes" ao sentido, que acaba sendo negado no momento em que a unidade é questionada pelo uso de elementos díspares. Adorno encontra uma explicação política para o uso maciço das técnicas de montagem que reporta à consciência da "impotência" da arte diante da totalidade do capitalismo tardio e à vontade de abolir essa dimensão graças à negação da aparência de um continuum3.

Uma outra visão de fotomontagem

A existência de um elo profundo entre as técnicas de montagem e a sociedade capitalista, sublinhada por Tafuri e Adorno, não deve fazer esquecer que um recurso como a fotomontagem é amplamente utilizado na Rússia pós-revolucionária, ganhando significados diferentes em relação às experimentações dos artistas ocidentais.

Essa diferença é afirmada no âmbito soviético por Gustav Klutsis, que discrimina duas correntes no interior da técnica: a fotomontagem formal, derivada do exemplo da publicidade norte-americana, própria dos dadaístas e dos expressionistas; e a fotomontagem militante e política, criação exclusiva da União Soviética. O artista fazia brotar o caráter único da fotomontagem militante de sua conexão com a política revolucionária, o progresso industrial e tecnológico e as novas formas da cultura de massa. Afirmava ainda que o uso da fotomontagem como novo método de arte datava de 1919-1920, estabelecendo uma prioridade em relação às experiências alemãs4.

Ao fazer esse tipo de afirmação, Klutsis advoga para si o papel de pioneiro da nova técnica: apresenta Cidade dinâmica como a obra em que a fotomontagem foi "utilizada pela primeira vez como elemento de textura e figuração, de acordo com o princípio das diferentes divisões". Christina Lodder lembra que há na obra uma inscrição que demonstra o papel pioneiro que Klutsis atribuía a seu trabalho: "Suprematismo volumetricamente espacial + fotomontagem. A derrocada da não-objetividade e o nascimento da fotomontagem como forma artística independente". O uso do termo fotomontagem numa obra datada de 1919 leva a autora a formular duas hipóteses: Klutsis redigiu a inscrição na época da realização de Cidade dinâmica, demonstrando conhecer as experiências alemãs, nas quais seu trabalho se basearia; ou a inscrição pode ter sido acrescentada posteriormente, o que comprovaria que o artista se limitou a tomar de empréstimo o termo, tendo desenvolvido sua pesquisa de maneira independente5.

Dawn Ades, por sua vez, reporta uma informação de Vassili Rakitin, segundo o qual Klutsis teria usado a fotomontagem pela primeira vez em 1918 no projeto de um painel para o V Congresso dos Sovietes em Moscou. Alexei Gan também teria feito experiências com a técnica no mesmo ano, mas é possível, segundo a autora, que nada disso tenha vindo a público, como demonstraria a ausência de cartazes russos feitos a partir da fotomontagem na revista internacional Das Plakat6.

Existem duas versões de Cidade dinâmica: uma lança mão da fotomontagem; a outra é um quadro executado em 1919-1920, no qual Klutsis explora a textura material da superfície pictórica graças ao uso de areia, vidro e aparas de metal. Para além desse aspecto, que remete à idéia de faktura, isto é, ao tratamento do material na superfície da tela, que acaba por determinar a forma da obra7, é possível determinar um princípio comum às duas versões de Cidade dinâmica: a opção por uma composição planimétrica, articulada aos princípios do suprematismo dinâmico e das composições Proun de El Lissitzki, que fazem com que Klutsis privilegie o uso de uma forma esférica central a partir da qual se projeta um eixo diagonal.

Na fotomontagem alguns planos geométricos são substituídos por fragmentos icônicos: a superfície de um arranha-céu norte-americano, um arranha-céu completo e imagens de trabalhadores. As formas geométricas que persistem no eixo diagonal sugerem vigas de aço, enquanto a esfera pode ser vista como o elemento unificador da composição por englobar a idéia da construção de um novo mundo graças ao socialismo. A colocação das figuras dos trabalhadores em diferentes posições é provavelmente uma evocação daqueles elementos flutuantes que caracterizavam as obras do suprematismo dinâmico. Ao mesmo tempo ela imprime um ritmo rotatório à composição, que poderia ser vista de todos os lados, como o próprio Klutsis recomenda numa inscrição8.

A estrutura utilizada em Cidade dinâmica está na base de outras fotomontagens realizadas por Klutsis no final dos anos 1910 e no começo dos anos 1920: O velho mundo e o mundo que está sendo construído agora (1920), A eletrificação de todo o país (1920) e Esporte (1922). A concepção radial está presente nas três obras que denotam uma adesão mais franca à lógica fotográfica. No caso das duas primeiras imagens há uma explicação para o predomínio dos elementos icônicos, visto tratar-se de projetos para cartazes de propaganda. Em O velho mundo e o mundo que está sendo construído agora, a estrutura radial ocupa o fundo da fotomontagem, no qual se destacam dois círculos: o menor contém símbolos do regime tsarista (cadeia, correntes, chicote) enquanto o maior abriga imagens de derivação construtiva. Se o círculo do passado evoca uma realidade estática, o círculo construtivo, ao qual corresponde a imagem de Lenin, é uma forma dinâmica a sugerir um movimento de rotação (Figura 1).


Lenin é também protagonista de A eletrificação de todo o país, sugerida pela apresentação de seu Plano para a Eletrificação no VIII Congresso dos Sovietes. Klutsis concebe uma composição capaz de dar conta do programa de industrialização e modernização formulado pelo líder político: a imagem de Lenin carregando uma espécie de andaime metálico, do qual sobressai uma estrutura arquitetônica, domina a parte superior da fotomontagem. Olhando para a frente, Lenin adentra num círculo do qual se irradiam formas geométricas que simbolizam o progresso.

A idéia de dinamismo confiada à diagonal, que fora determinante em Cidade dinâmica, é retomada em Esporte. Diversos círculos concêntricos, que se irradiam do fundo, no qual a palavra "esporte" está grafada com tipos góticos, acolhem a diagonal formada pelo encontro de dois aparelhos de ginástica. O efeito óptico sugerido pelos círculos imprime um forte movimento rotatório à composição, evocando a possibilidade daquela visualização não unívoca que já caracterizava Cidade dinâmica.

Uma opção estratégica

Para compreender as razões do predomínio cada vez maior de elementos icônicos nas fotomontagens de Klutsis é necessário analisar o papel conferido à fotografia pela vanguarda soviética. Um artigo dedicado à fotomontagem, publicado em 1924 na revista de vanguarda Lef, fornece uma visão significativa daquilo que os artistas da União Soviética demandavam à nova técnica. Partindo da definição da fotomontagem como "a utilização do instantâneo fotográfico como meio visual", o artigo logo assinala sua superioridade em relação às técnicas tradicionais:

A combinação de instantâneos toma o lugar da composição numa representação gráfica. Essa substituição significa que o instantâneo fotográfico não é o esboço de um fato visual, mas seu registro preciso. Essa precisão e o caráter documentário do instantâneo têm um impacto no observador que nenhuma representação gráfica consegue atingir9.

A importância conferida à natureza factual da fotografia como instrumento de construção de uma visualidade comprometida com a causa revolucionária está também presente num texto de Varvara Stepanova datado de 1928. Ao conceder primazia às fotomontagens realizadas por Aleksandr Rodtchenko a partir de fotografias de própria autoria, a artista estabelece uma relação precisa entre essa tendência, que busca "uma totalidade independente e completa", e o valor documentário da fotografia, capaz de fornecer uma "informação precisa" sobre o tempo e o lugar das imagens apresentadas. Stepanova não deixa de assinalar um problema provocado por esse tipo de produção: "a necessidade de uma técnica para expressar a realidade em termos característicos e explícitos"10.

Uma visão bem mais articulada das possibilidades da fotografia pode ser encontrada no livro A arte de hoje, publicado por Nikolai Tarabukin em 1925. Nessa coletânea de ensaios, em que são analisadas as artes do cotidiano – publicidade, design, cartazes, estamparia, produção gráfica –, Tarabukin concede um espaço privilegiado à problemática da fotomecânica, atraído por suas qualidades reprodutivas e, sobretudo, pela possibilidade de desnaturalizar o naturalismo e de colocar as novas imagens a serviço da agitação e da propaganda.

Interessado nas imagens técnicas que negam a fotografia "cruamente naturalista", o autor enfatiza em seu ensaio as diferentes estratégias de superação da verossimilhança, entre as quais a fotomontagem. Definindo a fotomontagem como "UM ESTÁGIO NA PINTURA, que começou a utilizar o poder mecânico da câmara em lugar de um desenho feito 'pela mão'", Tarabukin não hesita em sublinhar sua relação intrínseca com as tendências artísticas "de esquerda", sobretudo com o princípio planimétrico.

Uma outra observação presente no ensaio fornece elementos para compreender a opção feita por artistas como Klutsis, Rodtchenko e El Lissitzki:

A fotomontagem só apareceu na frente da arte de esquerda quando a abstração já tinha feito seu curso [...]. A fotomontagem veio à luz através do aspecto de agitação da arte moderna. Mas o artista a usou de um modo diferente do naturalista. O fotomontador não vê a arte representativa como um fim, como o naturalista, mas apenas como um meio. Por essa razão torna-se mais uma vez um artista representativo, mas, sem por isso, virar a casaca. Seu caráter representativo constitui formalmente um novo elemento na obra de arte que, de modo algum, coincide com o papel estético da representação nos quadros dos naturalistas11.

O uso recorrente do termo "naturalismo" merece uma explicação. Tarabukin reserva a palavra "realismo" para os trabalhos da vanguarda russa, sobretudo os de derivação construtivista, caracterizados pela ênfase dada à forma da obra:

O artista constitui nas formas de sua arte sua própria realidade e concebe o realismo como consciência do objeto autêntico, autônomo em termos de forma e conteúdo. Esse objeto não é uma reprodução das coisas do mundo exterior, mas é construído, de ponta a ponta, pelo artista fora das linhas de projeção que poderiam vinculá-lo à realidade12.

Embora defenda as razões do realismo contra as do naturalismo, Tarabukin não se furta a assinalar em Do cavalete à máquina (1922) a crise pela qual estava passando a arte contemporânea, motivada pela percepção da "inconsistência" da "forma pura desprovida de todo conteúdo". Numa sociedade em que a democratização estava pondo fim à separação em classes, não havia mais razão para a existência do quadro "como forma típica de arte visual". O público de massa, que havia surgido do processo revolucionário, não pedia à arte "as variações sem fim, a dispersão e a individualização", próprias do quadro feito no ateliê. Ao contrário, "exige da arte formas que expressem as idéias das massas, da sociedade, do povo em seu conjunto". Diante dessa nova realidade, o papel do artista modifica-se substancialmente: cabe-lhe produzir "objetos justificados socialmente por sua forma e utilidade"13.

Partidário da plataforma produtivista, Tarabukin acredita que a função do artista acabará por coincidir com a organização do trabalho produtivo. Por isso defende a "mestria produtivista", na qual "a arte e a técnica se confundem. A técnica transforma-se em arte quando se tende conscientemente à perfeição. [...] A mestria produtivista é funcional, construtivista em sua forma e coletivista no ato processual-criador"14.

Por isso também localiza em Cor vermelha pura (1921), de Rodtchenko, a destruição da pintura:

Era uma pequena tela quase quadrada, completamente coberta de uma única cor vermelha. Essa obra é extremamente significativa da evolução seguida pelas formas artísticas no decorrer dos últimos 10 anos. Não se trata mais de uma etapa, mas do último passo, o passo final de um longo caminho, a última palavra depois da qual a pintura deverá guardar silêncio, o último "quadro" executado por um pintor. Essa tela demonstra eloqüentemente que a pintura como arte da representação – o que sempre foi até o presente – chegou ao final do caminho. Se o quadrado negro sobre fundo branco de Malevitch continha, apesar da pobreza de seu sentido estético, uma certa idéia pictórica que o autor havia chamado de "economia", "quinta dimensão", a tela de Rodtchenko, ao contrário, está desprovida de todo conteúdo: é um muro cego, estúpido e sem voz. [...] Ao deixar de ser representativa, a pintura perdeu seu sentido interno. O trabalho de laboratório sobre a forma pura encerrou a arte num círculo estreito, deteve seu progresso e a levou ao empobrecimento15.

A afirmação de Tarabukin não pode ser dissociada de sua crença na natureza representativa do construtivismo. O autor, de fato, detectava nas construções planas realizadas pelos construtivistas "a representação de um mecanismo ou de um sistema construtivo que podia ser realmente construído". Ao contrário, a cor, elemento informe, não se incluía em nenhuma forma de representação16, daí Cor vermelha pura, Cor amarela pura e Cor azul pura, apresentadas por Rodtchenko na exposição "5 x 5 = 25" (1921), serem consideradas atestados de morte da pintura.

Rodtchenko, de resto, vinha se afastando da pintura de cavalete desde 1919, voltando-se para a construção de formas matérico-tridimensionais, ou pesquisando as qualidades autônomas dos pigmentos. Entre 1920 e 1921 realiza uma série de construções plástico-arquitetônicas – estruturas geométricas suspensas no espaço, feitas de materiais como madeira, papelão e compensado – que propõe uma troca de função entre arte e decoração. Nesse momento, declara a superação do pincel e a necessidade de lançar mão dos "novos instrumentos da técnica moderna" para a configuração da arte do futuro, isto é, da arte de uma sociedade transformada pela industrialização. Rodtchenko está propondo, desse modo, um projeto artístico articulado ao crescimento tecnológico da sociedade comunista: por isso é necessário que o artista se liberte da pintura tradicional e do uso decorativo da forma para engajar-se num sistema de trabalho criativo, no qual a forma está associada à matéria e a seus usos estruturais e funcionais.

As telas apresentadas na exposição de setembro de 1921 – superfícies monocromáticas, nas quais é afirmada a pureza analítica do material – confrontam o espectador com o limite máximo da pintura não-objetiva. Com elas, Rodtchenko demonstra que numa superfície plana só pode ser aplicada uma única cor, sem qualquer forma, posto que ela própria é forma. Ao mesmo tempo em que abre caminho para uma nova concepção de pintura, dissociada de todo símbolo psicológico e de todo sentimento pictórico, avessa a toda concepção mimética, o artista declara o fim da arte pura como possibilidade de uma prática revolucionária17.

A atitude de Rodtchenko está profundamente enraizada no debate cultural que se havia instaurado na Rússia depois da Revolução de outubro de 1917. A condenação do quadro de cavalete não é apenas uma tomada de posição contra uma forma de arte considerada ultrapassada e inadequada a representar a nova realidade revolucionária. O quadro de cavalete é atacado por uma razão bem mais precisa: a necessidade de mudar a propriedade dos meios de produção. Boris Arvatov demonstra claramente a impossibilidade da existência de um quadro de cavalete proletário em função da origem classista desse tipo de suporte:

Um quadro de cavalete, independente de seu conteúdo, será sempre um produto da arte burguesa, mesmo que o tenha pintado um proletário; por ser de cavalete e por ser quadro, nunca se transformará em proletário.
Pensar no impacto ideológico proletário de um quadro de cavalete é um erro, precisamente pela forma do quadro. Impossível de ser fabricado em série, de ser multiplicado, desligado de toda função social prática, situado de maneira totalmente casual, o quadro é organicamente incapaz de surtir o efeito que dele se espera, portanto não vale a pena pintá-lo. Delacroix, que pintou uma barricada, prestou o mesmo serviço ao movimento revolucionário francês que Géricault com seus cavalos de corrida18.

Fiel a esse pressuposto, Arvatov não hesita em apontar o erro dos artistas construtivistas no período que antecedeu a revolução. Interessado na transformação artística dos materiais, o artista novo acredita ser "criador de um mundo independente de formas, quando, na verdade, se atola cada vez mais no mundo do objetivo em si, sempre preso ao cavalete". Após a revolução, percebeu, porém, a tarefa que lhe cabia: a transformação dos materiais será "uma grande força organizadora se for aplicada à criação de formas necessárias, utilitárias de objetos"19.

Rodtchenko engaja-se ativamente naquela vertente de produção artística que Arvatov denomina de "industrialismo", desejoso, antes de tudo, de conferir uma função social à arte. Nessa perspectiva, a arte não pode estar dissociada do processo produtivo, daí a condenação do quadro de cavalete como relíquia do sistema artesanal. Inserido numa nova realidade, o artista terá como tarefa primordial a construção da vida diária, participando da produção dos "meios de consumo produtivo", ou seja, dos transportes, das construções, do vestuário, dos utensílios de cozinha, da literatura prática, etc. Integrante do processo produtivo, o artista será um "engenheiro desenhista", capaz de elaborar uma nova linguagem a partir dos novos meios de produção20.

Muitos artistas filiados ao Instituto de Cultura Artística de Moscou, entre os quais Rodtchenko, aderem à plataforma produtivista, abandonando o terreno da arte pura para trabalhar em contato direto com a indústria. O entusiasmo dos artistas é, de certo modo, refreado pelas diretrizes da Nova Política Econômica (1921-1927), que permite reconstruir o aparato industrial e a rede de transportes e comunicações anteriores à revolução, reservando, porém, um espaço ainda pequeno ao planejamento sistemático do desenvolvimento futuro. Uma vez que o objetivo fundamental da política econômica é a "acumulação originária", a população não pode contar, de início, com um incremento do consumo, pois faltava o que era essencial nesse sentido: novos métodos de produção industrial e de distribuição. No campo cultural, a falta desses requisitos básicos é explicitamente reconhecida por Arvatov, que localiza os maiores resultados do industrialismo na literatura, no teatro, na cinematografia (por não necessitarem tanto de instalações tecnológicas) e na arquitetura (em virtude do esforço construtor que estava tomando conta do país). Se o atraso da indústria e as dificuldades financeiras do Estado haviam sido um obstáculo ao desenvolvimento das artes plásticas, assim mesmo Arvatov enumera um conjunto de realizações expressivas: cartazes, cenografia e poligrafia, nas quais foi criado "um estilo de montagem"21.

Além das dificuldades advindas de um sistema industrial pouco desenvolvido, que acaba levando os artistas plásticos apenas para o design, os produtivistas vêem-se às voltas, a partir de 1922, com a doutrina do "realismo heróico", formulada pela Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária. Os objetivos do grupo, apresentados na Declaração de junho de 1922, embora genéricos, eram claramente políticos. Os artistas da associação não só propunham a representação da vida atual, como tinham focos bem determinados: o Exército Vermelho, os operários, os camponeses, os líderes revolucionários, os heróis do trabalho. Além da vida desses personagens, estavam voltados para a representação do "dia da Revolução" e do "momento da Revolução" nas "formas monumentais do estilo do realismo heróico". Apresentando-se como os porta-vozes da "vida espiritual do povo", os pintores da associação estavam determinados a oferecer "um retrato verdadeiro dos fatos, e não tramas abstratas desmerecendo nossa Revolução diante do proletariado internacional". Esses propósitos estão claramente explicitados nas várias exposições organizadas pelo grupo que tiveram como tema a industrialização (1923), o Exército Vermelho (1922, 1923 e 1928), a vida revolucionária e o trabalho (1922, 1924 e 1925), entre outros. A aproximação com o renascido grupo dos Errantes, igualmente contrário às tendências anti-realistas, propiciou, por outro lado, a retomada da retratística e das cenas de gênero22.

A polêmica contra os produtivistas tem um de seus maiores representantes em Eugeni Katsman. Ele não só os considera "pintores de pequeníssimos grupinhos", como coloca em dúvida seus propósitos revolucionários, por serem discípulos de mestres como Cézanne, Picasso, Matisse e Marinetti, "ideólogos de grupúsculos de intelectuais burgueses do período de tensão capitalista, de contradições nervosas, do período em que 'o martelo do antagonismo capitalista' forjou a consciência individualista"23.

A ofensiva realista contra o produtivismo não é um fato isolado, vem amparada pela hostilidade contra os movimentos modernos que se tornava cada vez mais evidente no âmbito oficial da revolução. Já em 1920 Lenin polemiza com as tendências da arte moderna e com sua plataforma futurista, pois acreditava que a cultura estava enraizada dialética e organicamente no passado. Só explorando ao máximo o legado da cultura burguesa era possível construir uma cultura proletária, isto é, uma cultura que pertencesse ao povo e que fosse compreendida pelo homem médio. Uma vez que as vertentes modernas, entre as quais o construtivismo, não eram acessíveis a esse homem, Lenin considera-as totalmente inadequadas para a configuração da arte marxista. Além disso, a arte abstrata negava a significação do mundo material da natureza e da sociedade humana que, em sua visão, integravam uma única realidade.

A opção por uma linguagem realista, inspirada pelo realismo progressista da segunda metade do século XIX, não responde apenas a um gosto pessoal. Se Anatoli Lunatcharski lembra que Lenin gostava dos clássicos russos e do "realismo na literatura, na pintura, etc.", o que é de fato determinante na adoção de uma plataforma realista é a função propagandística em termos sociais e partidário que o líder revolucionário atribuía à arte24.

Essa diretriz é claramente explicitada na política cultural do governo bolchevique por meio de um porta-voz como Lunatcharski, comissário do povo para a Instrução Pública. Num artigo intitulado "A revolução e a arte" (1922), Lunatcharski confia à revolução a tarefa de salvar a arte do "pior tipo de decadência" – o formalismo –, devolvendo-lhe "seu destino autêntico: a poderosa e contagiosa expressão das grandes idéias e das grandes vivências". Se a revolução é um precioso auxiliar da arte, esta, por sua vez, deve ajudar o estado a "difundir o gênero revolucionário de idéias, de sentimentos e de ações por todo o país". O que significa que a arte deve converter-se em propaganda:

Quem não conhece a força da propaganda? O que é a propaganda, em que se diferencia da clara, mas um tanto fria publicidade, da exposição objetiva e metódica de fatos e de construções lógicas?
A propaganda diferencia-se da publicidade por, antes de tudo, inquietar os sentimentos de quem a ouve ou lê, e influir diretamente sobre sua vontade. Em outras palavras, exalta o conteúdo da mensagem revolucionária e o obriga a resplandecer com todas as cores. [...] o grande propagandista coletivo que é o Partido Comunista deve dispor de todos os meios da arte que, dessa forma, se converterá em poderoso esteio da propaganda. Não só os cartazes, mas também, de uma forma menos fugaz e contendo idéias mais profundas, os quadros e as esculturas podem resultar, por assim dizer, no meio patente para a assimilação da verdade comunista25.

A associação entre arte e propaganda faz com que Lunatcharski, embora não negando a qualidade das obras produzidas pelos artistas de vanguarda, as considere inadequadas à revolução. Os trabalhos dos artistas das novas tendências "eram mais adequados à indústria e à ornamentação artística" e "impotentes para expressar o novo conteúdo ideológico da revolução", a exigir "uma expressão realista, uma forma transparente, saturada de idéias e de sentimentos". O interesse do governo em promover uma arte de fácil decodificação leva-o a desenvolver duas ações paralelas: a salvaguarda do "que havia de melhor na arte antiga, pois sua assimilação é necessária aos futuros passos da arte renovada" e o apoio a toda inovação "que seja útil ao desenvolvimento das massas populares"26.

Esse clima cultural, no qual a arte é concebida como "ilustração político-social", como propaganda, a não ser nos momentos em que está a serviço da indústria27, é propício à revalorização de uma pintura objetual e realista, que se opõe ao experimentalismo técnico-formal graças a uma figuração nitidamente antivanguardista. Diante dessa campanha sistemática contra as novas tendências, condenadas por se afastarem do "discurso humano"28, a opção de Klutsis pela fotomontagem demonstra ser uma escolha acertada, pois lhe permitia salvaguardar algumas conquistas fundamentais das vanguardas soviéticas e satisfazer ao mesmo tempo a demanda por uma arte ideológica de caráter icônico. Seu exemplo será seguido por outros artistas de vanguarda que se voltam para a fotografia e sobretudo para a fotomontagem como uma maneira de reintroduzir a iconicidade na representação plástica sem que fossem necessários o retorno de uma figuração naturalista e a mediação de velhas técnicas29.

Nesse contexto não faltam críticas à Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária, cujas pretensões realistas haviam sido colocadas em xeque pela fotografia. Ossip Brik estabelece uma clara distinção entre a tarefa do fotógrafo, que é a de documentar a vida, e a do pintor, que consiste em recriar o objeto a partir de leis puramente pictóricas. Por isso, a pintura realista parece-lhe um esforço vão, embora motivado por três fatores sociais: o interesse por uma documentação da nova vida, o alto índice de desemprego dos pintores, a decadência do nível artístico do público "incapaz de distinguir entre uma representação precisa da natureza e outra muito aproximada". Em sua defesa extrema da fotografia, Brik não deixa de atribuir-lhe uma funcionalidade que deveria colocá-la ao abrigo das novas investidas da pintura: "O fotógrafo registra a vida e os acontecimentos de um modo mais barato, mais rápido e mais preciso que o pintor. Nisso residem sua força, sua grande significação para a sociedade. Nenhuma recaída nos primitivos métodos pictóricos o apavora."30

Os artistas das novas tendências, mesmo contribuindo para a construção de uma arte popular e nacional, que respondia à necessidade de representar um conteúdo "amplo, monumental, espontâneo, eterno e grandioso"31, guardam em suas composições fotográficas ou de derivação fotográfica muitos dos princípios construtivistas, que aplicam a cartazes, capas de revistas e de livros, publicidade, entre outros.

Rodtchenko e a fotomontagem

As primeiras experiências de Rodtchenko com a fotomontagem estão, entretanto, mais próximas dos princípios construtivistas do que de uma retórica popular. É o caso do projeto da capa do número um e dois da revista Lef (1923), determinada por uma organização de caráter construtivo. Um retângulo preto aberto na base serve de moldura a dois dos instrumentos que revolucionaram a comunicação moderna: uma máquina de escrever e, em primeiro plano, uma objetiva ladeada à esquerda por uma câmara. A objetiva e a câmara são colocadas entre os algarismos 1 e 2 reproduzidos em vermelho, formando um contraste cromático com eles, uma vez que são pretas por sua origem fotográfica. O contraste cromático é retomado no nome da revista, preto na parte superior e vermelho na inferior. Esse tipo de solução gráfica já havia sido ensaiado pelo artista nas capas de Kino-fot (1922), nas quais as letras são usadas como elementos construtivos. É nessa revista que Rodtchenko divulga seu primeiro trabalho com a técnica da fotomontagem: a capa para o livro de poesias de Ivan Aksionov, intitulado As colunas de Hércules (1920).

A geometrização rígida, que está na base dessa primeira experiência, não é a marca distintiva de seu trabalho mais bem sucedido com a nova técnica: a capa e as ilustrações para o poema de Vladimir Maiakóvski, Sobre isso (1923). Embora Rodtchenko retome um aspecto fundamental de sua poética construtivista – o uso da linha como elemento que delimita os planos e propicia uma construção bidimensional –, o resultado é uma composição fluida, para a qual convergem imagens de diferentes proveniências: anúncios publicitários, material de revistas e jornais e fotografias pessoais de Maiakóvski e Lília Brik, a inspiradora do poema.

O autor das imagens pessoais de Maiakóvski e Lília Brik não é Rodtchenko, mas um fotógrafo profissional, Abram Shterenberg, que atua sob a direção do artista. Por isso, a imagem da capa, que é antes uma colagem do que uma fotomontagem, é reportada por Andrei Nakov à militância não-objetiva de Rodtchenko, patente na perfeita simetria da composição, na frontalidade absoluta assumida por Lília Brik e na bidimensionalidade obtida com a eliminação do plano de fundo32.

O uso de fotografias do poeta e da amante, entremeadas por imagens contextuais, é motivado pelo caráter profundamente pessoal de Sobre isso, no qual Maiakóvski faz a defesa da liberdade pessoal numa sociedade revolucionária e dá livre vazão a seu amor por Lília Brik. De acordo com Victor Margolin, Rodtchenko concebe o poema como um texto teatral, do qual ele seria o diretor. Maiakóvski e Lília Brik são fotografados em vários momentos por serem os atores da peça, para a qual o artista traz elementos realistas estabelecendo um elo com a vida do poeta33. Um elemento realista são, por exemplo, os algarismos 67-10, que comparecem na segunda prancha, pois correspondem ao número telefônico de Lília Brik.

A justaposição de imagens realizada por Rodtchenko não é casual nem arbitrária. Em termos estruturais, é possível perceber a presença de um princípio organizador graças a uma linha (invisível) que estabelece um elo entre o acúmulo de imagens e o fluxo do texto, ilustrado num sentido não convencional. Rodtchenko tenta interpretar de maneira dinâmica as imagens que a leitura do poema evoca: o dinossauro e os ursos polares, que figuram na segunda e na terceira pranchas, correspondem a trechos específicos do poema, nos quais Maiakóvski faz referência aos ciúmes provocados por Lília Brik, que transformam sua fala ao telefone num "monstro dos tempos trogloditas" e convertem o amante num urso. O tamanho dado ao telefone e ao dinossauro, que sobrepujam as imagens do poeta e da empregada, é aproximado por Margolin da montagem de atrações, proposta por Eisenstein no mesmo período. Se é próprio da montagem de atrações produzir a construção de uma ação, Rodtchenko propõe ao leitor não um mergulho no trabalho de Maiakóvski, e sim um conjunto paralelo de elementos que lhe permitiriam perceber as tensões e direções do poema. No caso específico da segunda prancha, isso seria proporcionado pelo tamanho díspar das imagens e pela presença incongruente do dinossauro ao lado do poeta que gerariam um efeito de distanciamento34 (Figura 2).

As fotomontagens concebidas para Sobre isso, por não se pautarem por um desenvolvimento coerente em termos visuais e narrativos, podem ser aproximadas das experiências dadaístas. Rodtchenko lança ainda mão da técnica para executar algumas capas de livros. Para Mudança de tudo (1924), coletânea de poemas construtivistas, propõe uma composição tridimensional, caracterizada por diferenças de escala bem marcantes. Para Sífilis (1926), de Maiakóvski, utiliza a imagem negativa de um rosto masculino, à qual sobrepõe um círculo branco atravessado pelo título, na altura dos cabelos, para sublinhar a crítica do poeta à sociedade capitalista. Para Materialização do fantástico (1927), de Ilya Ehrenburg, realiza um outro tipo de experiência: trabalha simultaneamente com uma imagem positiva e uma imagem negativa da esposa Varvara Stepanova. A imagem positiva constitui a base da fotocomposição. A ela, na parte central, sobrepõe uma faixa em negativo, o que lhe permite realçar o nariz e a boca e criar um efeito de estranhamento nos olhos. Na capa e na contracapa de um outro livro de Maiakóvski, Para Sergei Essenin (1926), vale-se de suas próprias fotografias experimentais de imóveis e pontes de ferro. Como Essenin fora um cantor da vida camponesa, as fotomontagens realizadas por Rodtchenko sublinham o conflito entre a vida natural e a vida urbana transformada pela tecnologia graças à sobreposição de um feixe de espigas a uma ponte ferroviária e de uma casa de campo a um detalhe de um edifício moderno visualizado em diagonal. Nenhum desses trabalhos responde aos pressupostos de uma arte ideológica. Todos eles desnorteiam o leitor com seus saltos ou com uma proposta alegórica, longe da idéia de uma visualidade de fácil decodificação.

Se o engajamento político e social não é a nota dominante dessas primeiras fotomontagens, Rodtchenko tem condições de provar sua proximidade das diretrizes oficiais numa série de trabalhos publicitários e na produção de cartazes e de capas para livros de apelo popular. Em colaboração com Maiakóvski, realiza entre 1923 e 1925 cartazes para empresas estatais e para a loja de departamentos GUM, lançando as bases dos "primeiros anúncios realmente soviéticos, que se voltavam contra as cabecinhas, as flores e outros ouropéis, em voga no período da Nova Política Econômica"35. Nesses trabalhos, reproduzidos em litografia e off-set, Rodtchenko lança geralmente mão de um desenho simplificado, não raro rudimentar, para atingir uma comunicação imediata e sem qualquer tipo de ambigüidade. Em alguns momentos, quando utiliza um procedimento como a colagem, consegue efeitos mais dinâmicos, que evocam o fluxo visual das fotomontagens. A simplificação do desenho, bem como a planaridade da superfície cromática, a separação entre texto e imagem e a introdução de pontos de exclamação e flechas visam a proporcionar uma maior clareza formal e comunicativa. Em busca de um impacto visual imediato, o artista abandona a representação perspéctica, propondo imagens absolutamente bidimensionais.

Embora a lógica da fotomontagem não esteja ausente de muitos trabalhos publicitários, caracterizados pelo uso de um fluxo de imagens ligadas entre si por elementos gráficos, Rodtchenko utiliza explicitamente a técnica no cartaz de Cine-olho (1924), de Dziga Vertov, e nas capas dos livros da série Mess Mend (1924), de Jim Dollar (pseudônimo de Marietta Chaguinian). Tanto o cartaz do filme de Vertov quanto as capas dos livros de detetive distinguem-se pelo uso de um padrão de derivação construtivista. As imagens fotográficas são inseridas numa estrutura equilibrada, na qual os elementos gráficos são controlados em termos de tamanho e de disposição para não entrarem em choque com os elementos icônicos. Em Cine-olho, a imagem do olho humano se metamorfoseia com a do olho da câmara, sendo o elemento determinante da composição. Para a série Mess Mend, Rodtchenko concebe uma capa padronizada: um hexágono, no qual são inseridas, a cada vez, imagens fragmentárias que compõem uma narrativa visual de apelo imediato, encimada por flechas direcionais, pelo número do volume, pelo título e pelo nome do autor. Os elementos gráficos ajudam a reforçar o efeito icônico, agem como uma espécie de moldura a realçar um fluxo de imagens sem um centro determinado e sem um princípio hierárquico organizador. Uma vez que o artista não encontra nas revistas ilustradas todo o material necessário à construção dos diversos momentos da narrativa de Dollar, que tem como protagonistas operários norte-americanos empenhados em desvendar um complô internacional anti-soviético, utiliza como modelos para a confecção do material complementar a mãe, a esposa e os amigos, além de ele próprio encarnar a figura do detetive que comparece na capa do oitavo volume (Figura 3).


Esse tipo de produção demonstra que Rodtchenko está tentando fazer de cartazes e capas instrumentos de configuração de uma nova visualidade, não distante de preocupações de transformação social. Uma nova modalidade de fotomontagem, porém, o aproxima ainda mais das diretrizes oficiais. A partir de 1924, o artista torna-se fotógrafo e começa a utilizar suas próprias imagens na realização das fotomontagens. Cria, assim, uma nova modalidade de composição: deixa de lado a fragmentação das primeiras experiências e estrutura suas fotomontagens a partir da combinação de fotografias ou conjuntos de fotografias individuais. Varvara Stepanova apresenta uma justificativa ideológica para esse novo momento:

O próprio artista deve realizar suas fotografias. Ele busca aquele instantâneo particular que satisfará seus objetivos – pois montar as fotografias de outrem não preencheria suas necessidades. Por isso, o artista abandona uma montagem artística de fragmentos fotográficos em prol da própria tomada peculiar da realidade36.



Fotomontagem e política: Klutsis

Rodtchenko não é o único artista a voltar-se para esse novo vetor da fotomontagem, que dá preferência à combinação de imagens integrais para compor uma narrativa politicamente engajada. Também El Lissitzki, que se aproxima da fotografia a partir de experiências com a fotomontagem37, propõe em 1926 "uma nova forma estética" para a nova linguagem, "claramente determinada em termos sociais". Ao defender o uso de "fotografias acabadas, integrais" como elementos a partir dos quais é possível construir "uma totalidade", o artista não só propugna a existência de "leis de formação" específicas para a fotomontagem, como estabelece uma relação intrínseca entre ela e o público de massa forjado pela revolução de 1917. Por isso, não hesita em reportar as experiências dadaístas ao âmbito estritamente artístico, abrindo uma única exceção para a Alemanha, em cujas produções reconhece a presença de "objetivos políticos"38.

Essa concepção de fotomontagem, na qual os elementos icônicos adquirem uma importância decisiva, tem um exemplo paradigmático no fotoafresco A tarefa da imprensa é a educação das massas (1928). Concebido para o Pavilhão Soviético da Exposição Internacional da Imprensa e da Editoria (Colônia, 1928), o fotoafresco, realizado com a colaboração de Sergei Senkin, é formado por uma compilação de imagens dispostas numa grade irregular. O efeito do conjunto é altamente dinâmico, uma vez que Lissitzki e Senkin justapõem em alternância diferentes ângulos de visão, close-ups e tomadas longas, proporcionando uma imagem cinemática das realizações soviéticas no campo do jornalismo e da editoria39 (Figura 4).


Em seus trabalhos Rodtchenko e Lissitzki demonstram, de maneira inequívoca, que a arte deve ser concebida como propaganda, isto é, como tomada de posição e alinhamento com as exigências do momento histórico. Lissitzki já havia deixado isso bem claro na conferência sobre arte russa, proferida em Berlim e Amsterdã em 1922. A revolução de outubro havia confrontado os artistas com uma questão fundamental: "que papel desempenha a arte na nova sociedade, na qual o campo da atividade criadora se torna propriedade comum?"40. A resposta dada por ambos os artistas não deixa dúvidas sobre sua adesão às exigências do momento histórico: a opção pela imagem fotográfica é uma maneira de satisfazer as necessidades de um público de massa, em grande parte semi-analfabeto.

Na década de 1920, a adesão mais evidente à propaganda é, sem dúvida, a de Klutsis, que se dedica à produção de cartazes políticos de derivação fotográfica. Como lembra Margarita Tupitsyn, desde A eletrificação de todo o país, o artista estava preocupado com a relação visual entre o líder revolucionário e as massas. Ao primeiro líder, Lenin, além das produções já analisadas, Klutsis dedica uma série de fotomontagens em 1924, apresentando-o como uma força inspiradora a animar diferentes atividades sociais. Essa exaltação da figura individual sofrerá uma transformação a partir de 1928, quando é lançado o Primeiro Plano Qüinqüenal: nesse momento entra em cena um herói coletivo, as massas soviéticas41.

Mesmo ao representar o novo ator social, Klutsis não deixa de lado os pressupostos construtivistas de suas primeiras fotomontagens, sobretudo o recurso à diagonal. Em A realização nos transportes do Primeiro Plano Qüinqüenal (1929), a combinação de elementos icônicos e visuais, dispostos em diagonal, confere um aspecto dinâmico ao conjunto, enfatizando o esforço industrializador empreendido pelo país (Figura 5). O mesmo recurso é utilizado em Pagaremos a dívida do carvão do nosso país (1930), no qual as diagonais formadas pelas pernas das três figuras de mineradores em movimento emprestam à imagem uma idéia de dinamismo e coesão; e no projeto de Trabalhadores e trabalhadoras, todos à eleição dos Sovietes (1930), para o qual o artista concebe uma diagonal em progressão, a partir dos diferentes tamanhos das mãos espalmadas. A ela contrapõe-se uma outra diagonal, formada por imagens de uma multidão de mãos erguidas, de maneira a enfatizar a importância política do evento e o papel da coletividade42. Klutsis adota uma solução semelhante em Vamos realizar o plano das grandes obras (1930), no qual a uma grande mão espalmada se sucedem mãos de diferentes tamanhos e cenas de trabalhadores formando uma única diagonal. Nesse cartaz, destinado à divulgação do Primeiro Plano Qüinqüenal, a mão reveste-se de um significado global: a adesão dos trabalhadores ao projeto governamental desdobra-se na representação do principal instrumento e símbolo do trabalho.


As fotomontagens políticas da década de 1930 passam por um processo de "normalização". Klutsis abranda o uso da diagonal em prol de uma composição baseada na simetria, como demonstra A luta pelo aquecimento e pelo metal (1933), dedicada à mineração. Para esse cartaz, o artista concebe uma estrutura vertical dominada pelas figuras de dois mineradores. O resultado da mineração – o pleno funcionamento da produção industrial e do sistema de transportes – integra-se harmoniosamente com as duas figuras gigantescas, gerando uma imagem equilibrada, para a qual contribui também o empuxo vertical das chaminés das fábricas, simetricamente dispostas.

O uso da diagonal não é abandonado de todo. Quando ela aparece, no entanto, não desempenha mais uma função dinâmica. Em A luta pela colheita bolchevista é a luta pelo socialismo (1931), as duas diagonais formadas pelo campo geram linhas de fuga que projetam o espaço da composição ao infinito. Em A realidade do nosso programa é o povo verdadeiro, somos você e eu (1931), a disposição dos grupos e dos caracteres gráficos apresenta uma direção diagonal, sem que isso perturbe o equilíbrio do conjunto e o ritmo coeso do avanço dos trabalhadores capitaneados por Stalin.

O novo líder político torna-se o protagonista absoluto dos cartazes realizados por Klutsis na década de 1930, levando-o a buscar a relação visual correta entre ele e as massas. Stalin, em geral, sobressai da multidão, ao ganhar uma dimensão monumental, que contribui para a mitologização de sua figura e da realidade do país. Mesmo a relação com outros membros do Partido Comunista é regida pela monumentalidade da escala: numa fotomontagem realizada para o jornal Pravda (1935), a imagem de Stalin impõe-se sobre um retrato de Lenin, situado em segundo plano. A pose confiante assumida por ele é reforçada pelo uso de imagens que remetem ao poderio do país (fábricas, colheitadeiras, aviões e dirigíveis) e à satisfação de seu povo43.

O culto de Stalin é paralelo ao poder autocrático exercido por ele no momento em que a União Soviética opta por uma política industrial baseada nos planos qüinqüenais, com a conseqüente primazia da indústria pesada e de bens de produção, e pela coletivização forçada da economia agrária. O planejamento industrial não responde apenas à necessidade de modernizar o país e de estabelecer relações de propriedade socialistas a fim de fazer frente à diferenciação social que ainda imperava no campo. O avanço do fascismo na Europa Central e, sobretudo, a ascensão do nazismo na Alemanha faziam aumentar o perigo de uma guerra de agressão contra a Rússia, o que motiva a urgência de constituir uma indústria bélica nacional.

A defesa do país passava também pelo aniquilamento da base econômica dos kulaks, que haviam se apropriado de grandes latifúndios durante a revolução de 1917, sujeitando os camponeses mais pobres. Os kulaks – e mesmo os camponeses médios – eram considerados perigosos porque se temia que pudessem tornar-se aliados de uma intervenção anticomunista vinda do estrangeiro, a fim de defender seus interesses econômicos.

Longe da imagem de união e felicidade divulgada pela propaganda oficial, a sociedade soviética vivia um momento particularmente difícil: o nível de vida do operariado industrial havia piorado em virtude do escasso desenvolvimento da indústria de bens de consumo; a aplicação violenta da coletivização forçada no campo teve como conseqüências uma drástica redução da produção agrícola e a oposição à política governamental de quase todos os camponeses, inclusive aqueles das camadas inferiores.

A técnica da manipulação torna-se difusa, pois o Partido Comunista da União Soviética não tolerava debates internos, nos quais poderiam vir à tona os contrastes existentes no interior da sociedade e, muito menos, que tais controvérsias chegassem à opinião pública. Por isso, em 1933-1934 é suprimida a democracia interna, com a transformação da doutrina leninista do "centralismo democrático" na doutrina stalinista do "caráter monolítico do partido"44.

Para assegurar que as obras de arte responderiam aos requisitos de legibililidade e comunicação direta com as massas, o Estado, que era o único intermediário entre os artistas e o público, passa a exercer um controle rigoroso sobre a produção cultural. Os planos qüinqüenais necessitavam de um apoio propagandístico para poderem firmar-se junto à opinião pública, razão pela qual não poderiam mais ser permitidas todas as divergências entre artistas e intelectuais que haviam pontuado a década de 1920. Requeria-se, ao contrário, a convergência de todos os esforços para operações que trouxessem um apoio concreto à linha do partido. Por isso, em 1932, é promulgado um decreto oficial que põe fim a todos os grupos artísticos e literários, prevendo sua reorganização em diversas federações centrais, de acordo com a própria especialidade. No caso das artes plásticas, é fundado o Sindicato dos Artistas Criadores. A par disso, o partido passa a exercer um controle crescente sobre os estilos e os temas das obras de arte, a fim de garantir a eficácia propagandística de quadros e cartazes45.

Nesse contexto, os cartazes realizados por Klutsis na década de 1930 podem ser vistos como peças de propaganda muito eficazes: ocultam as tensões que agitavam a União Soviética por trás da imagem de uma sociedade unida num esforço comum, sob a segura liderança de Stalin. Bastaria lembrar a serena ordenação geométrica de A luta pela colheita bolchevista é a luta pelo Socialismo, graças à qual as diversas colheitadeiras dão a idéia de um trabalho harmônico e coordenado. A organização dada à imagem não pode ser dissociada da importância que o tema da coletivização adquire na arte soviética. Os novos camponeses, em virtude do uso das máquinas agrícolas, eram considerados pela ideologia stalinista como parte integrante do processo de industrialização, isto é, do processo que tendia para o desenvolvimento do ponto de vista da classe proletária46.

Outros exemplos de eficácia propagandística podem ser localizados na visualização de uma comunidade coesa, empenhada numa tarefa comum, própria de Trabalhadores e trabalhadoras, todos à eleição dos Sovietes e de A realidade do nosso programa é o povo verdadeiro, somos você e eu. Ou na exaltação da industrialização de A luta pelo aquecimento e pelo metal, na qual as duas figuras de trabalhadores desempenham o papel do homem novo necessário à construção do socialismo, do herói sólido e positivo, firmemente engajado no devir da sociedade.



União Soviética em construção (USSR na stroike)

O trabalho de propaganda do regime é também confiado a publicações, entre as quais a revista USSR na stroike (1930-1941), destinada a difundir uma imagem favorável do país no estrangeiro. Publicada em alemão, inglês, francês e espanhol, a revista é também difundida na União Soviética, pois promovia uma visão otimista do Primeiro Plano Qüinqüenal. Inspirada no exemplo das revistas ilustradas alemãs da década de 1920 e da AIZ, USSR na stroike pretende "refletir na fotografia o objetivo geral e a variedade do trabalho de construção que está ocorrendo na URSS". A preferência pela imagem técnica responde a uma razão precisa. A fotografia é escolhida como "um método para ilustrar a construção socialista", uma vez que ela "em muitos casos, fala de uma maneira muito mais convincente que o artigo escrito do modo mais brilhante". De acordo com essa premissa, a revista conta com a colaboração dos principais fotojornalistas do período – entre os quais Abram Shterenberg, que havia realizado as fotografias de Sobre isso – e de artistas como El e Sophie Lissitzki, Rodtchenko e Varvara Stepanova. Também John Heartfield, que realizava fotomontagens para AIZ, órgão do Partido Comunista Alemão, colabora com USSR na stroike. Quando visita Moscou em 1931, elabora uma fotografia composta de Lenin, na qual o líder se sobrepõe a uma vista aérea da cidade (no número de setembro), concebe o layout e a capa do número de dezembro, dedicado à indústria do petróleo, e publica também a conferência sobre fotomontagem, proferida no Instituto Poligráfico da capital47.

A presença de Lissitzki e Rodtchenko é determinante para imprimir uma nova feição visual à revista. Até outubro de 1932, ela tinha uma estrutura bastante simples: era ainda praticamente uma seqüência de imagens acompanhadas de textos explicativos. Ao projetar o número de outubro de 1932, dedicado à usina hidrelétrica e à represa do rio Dnieper, Lissitzki concebe-o como uma narrativa visual na qual lança mão das técnicas da arte moderna e da tipografia: letras arrojadas, fotomontagens, cores fortes, entre outras48.

O mito do líder político é a nota dominante da narrativa elaborada por Lissitzki. Lenin é evocado inicialmente pelo lema que estivera na base do cartaz de Klutsis de 1920 ("Comunismo é governo dos Sovietes + eletrificação de todo o país." V. I. Lenin) (Figura 6). O programa de eletrificação do país é apresentado em seu estágio final graças à fotografia de duas mãos gigantescas empenhadas na abertura das comportas da represa. Desse modo, o artista cria um elo simbólico entre a ideologia da industrialização e a participação dos trabalhadores na construção do futuro do país, recorrendo a uma imagem muito empregada na iconografia da esquerda – a mão produtora e configuradora de um novo mundo.



A imagem de Lenin está presente em mais duas fotomontagens. Na primeira, Uma conversa entre dois mundos, Lissitzki propõe um contraponto entre a concretização do projeto do líder, tipificada pela presença de um trecho da rede elétrica surgida com o empreendimento do Dnieper, e a visão negativa do escritor H. G. Wells, que colocara em dúvida a capacidade da Rússia levar adiante uma iniciativa tão ambiciosa. Victor Margolin chama atenção para os recursos utilizados pelo artista para criar o contraste: diferença de escala entre Wells e Lenin, presença de uma página de Russia in the shadows em formato gigantesco nas mãos do escritor e contraposição entre um vilarejo do passado e a rede elétrica que se destaca num céu cheio de nuvens, símbolo das potencialidades ilimitadas do país49 (Figura 7).



Na segunda fotomontagem, VIII Congresso dos Sovietes, Lissitzki sobrepõe a imagem de Lenin discursando no encontro de 1920, durante o qual apresentara seu plano para a eletrificação do país, a um mapa da Rússia. Neste é destacado o lugar de construção da represa e da hidrelétrica. Uma flecha pontilhada atravessa o mapa para indicar as águas do rio que seriam represadas. A fotografia de Lenin escolhida pelo artista é bem significativa: o líder parece estar olhando para a futura realização de seu projeto, havendo uma correspondência entre a direção de seu olhar e a flecha que atravessa o mapa.

Se Lenin é a figura dominante do conjunto do Dnieper, Lissitzki não poderia deixar de lembrar Stalin, que transformara em realidade o projeto do primeiro. A fotomontagem A corrente é ligada associa a imagem de Stalin a uma mão gigantesca que aciona o dispositivo da hidrelétrica e à usina iluminada. Um feixe de raios diagonais que se irradia de diversos pontos da hidrelétrica cria uma conexão entre a mão do trabalhador e a efígie de Stalin numa retomada do dispositivo simbólico que estivera na base da primeira composição do conjunto.

Em outras fotomontagens dedicadas à usina, Lissitzki coloca em cena a capacidade soviética de concretizar um projeto utópico e sua relação intrínseca com a construção do socialismo. Em Projeto da construção do Dnieper – Construção do Dnieper concluída, a estratégia visual articula-se em quatro momentos: a apresentação do projeto pelo engenheiro Krzkizkanoski, à qual se sobrepõe a imagem dos apontamentos que serviram de base à sua elaboração; o estudo dos desenhos por uma comissão; a maquete da represa e a represa em funcionamento. Para onde vai a corrente funciona como a conseqüência lógica do empreendimento: a rede elétrica espalha-se para os quatro pontos cardeais, nos quais são destacados estabelecimentos industriais que se beneficiaram da usina50.

O conjunto finaliza-se numa imagem que enfeixa simbolicamente o significado da eletrificação da União Soviética (Bolcheviques). Lissitzki conjuga no mesmo espaço a imagem de uma manifestação política com a de diversas torres de energia para criar um efeito de correspondência entre o povo e as realizações do regime. O efeito é reforçado pela presença de uma grande faixa horizontal que une os dois planos com o dizer "Bolcheviques"; graças a ela o artista confere um ulterior significado ao povo soviético, que é visto também como beneficiário de um empreendimento tão grandioso (Figura 8).


Embora os elementos icônicos tenham o predomínio nesse conjunto de fotomontagens, elas se caracterizam também pelo emprego de alguns recursos visuais que remetem à poética do construtivismo: uso de diagonais (A corrente é ligada e a capa da revista URSS na stroike, que utiliza a mesma imagem da usina), do círculo como elemento integrador (Para onde vai a corrente), da flecha como metáfora do progresso (VIII Congresso dos Sovietes), da horizontal como plano que estrutura a composição reforçando sua frontalidade (Bolcheviques).

A colaboração de Lissitzki a USSR na stroike é bastante intensa depois de 1932 e abarca diversas temáticas: o 15º aniversário do Exército Vermelho (fevereiro de 1933), a conquista do Ártico (setembro de 1933), o 15º aniversário da indústria petrolífera do Azerbaijão (maio de 1935), o 15º aniversário da Geórgia soviética (abril-maio de 1936), a região autônoma de Kabardino-Balkarian (outubro de 1936), o povo do território de Orjonikidze (março de 1937), a Constituição de Stalin (setembro-dezembro de 1937), Ucrânia ocidental e Bielo-Rússia ocidental (fevereiro-março de 1940).

A avaliação dessa faceta de Lissitzki é bastante controvertida na historiografia artística. Benjamin Buchloh utiliza o termo "distorção" para a postura daqueles historiadores que detectam no envolvimento de Lissitzki e Rodtchenko em USSR na stroike um sacrifício em relação ao momento abstrato. O autor, ao contrário, advoga uma precisa identidade política para os dois artistas, pois considera sincero e entusiasta seu engajamento na causa stalinista. Sua atitude, aliás, é fundamental para o entendimento de um dos mais profundos conflitos da arte moderna: a dialética histórica entre a autonomia individual e a representação de uma coletividade por intermédio de sínteses visuais51.

Essa visão positiva do engajamento de Lissitzki no aparelho de propaganda do Estado não é compartilhada por Yve-Alain Bois. Em desacordo com a hipótese de Buchloh, que atribui o novo rumo tomado pelos artistas de vanguarda desde a década de 1920 não só a uma crise da representação, mas também a uma redefinição da relação da produção artística com o público de massa, Bois qualifica o trabalho de propaganda de Lissitzki como a tentativa de transformar "a arte num mero instrumento, isto é, num artefato não crítico, a serviço do poder constituído"52.

Victor Margolin, por sua vez, não concorda com esse argumento, pois acredita que Lissitzki criou um novo estilo narrativo, capaz de satisfazer os objetivos retóricos dos editores de USSR na stroike. O que Margolin entende por novo estilo narrativo pode ser inferido de sua análise do trabalho dedicado à conquista do Ártico:

Lissitzki estava se tornando perito em combinar logotipos e patos, informação e emoção em seus layouts. Usando contrastes de escala, mapas, fotomontagens e amplos desdobramentos fotográficos, era capaz de descrever a história da expedição ao Ártico com inúmeros detalhes, sem deixar de infundir um senso do extraordinário no ordinário, que caracterizava um dos aspectos da produção artística soviética nos anos 3053.

O novo estilo narrativo, tipificado pelas primeiras colaborações com a revista, transforma-se em "narrativa épica" em meados dos anos 1930, quando Lissitzki se afasta das experiências de vanguarda. Segundo Margolin, esse novo momento

era caracterizado por seu alcance histórico e pelo modo com que juntava grandes quantidades de informação visual – sobretudo fotografias, fotomontagens, desenhos, pinturas e mapas numa estrutura coerente. Era também caracterizado por expedientes visuais tais como emblemas heráldicos, bandeiras e outras insígnias que davam dignidade ou nobreza ao tema. Esse estilo era caracterizado igualmente por um senso de fluxo visual, capaz de transmitir a diversidade de uma região e destacar, ao mesmo tempo, imagens e acontecimentos icônicos singulares como metáforas que a caracterizavam54.

Um exemplo paradigmático dessa nova direção pode ser localizado no número dedicado à Constituição de Stalin, no qual Lissitzki, auxiliado pela esposa Sophie, trabalha com materiais de arquivo, fotografias documentais, desenhos, gráficos e mapas. Para a página de rosto, é concebida uma fotomontagem que deveria simbolizar a superioridade da vida na União Soviética (Operário e camponesa de uma fazenda coletiva). Por isso, El e Sophie Lissitzki colocam no topo de um globo terrestre – no qual o contorno da União Soviética é delineado em vermelho – a escultura Operário e camponesa de uma fazenda coletiva, de Vera Mukhina, realizada para servir de coroamento ao Pavilhão Soviético na Exposição Universal de Paris de 1937.

A escolha dessa obra para simbolizar a vida na União Soviética de Stalin é bem significativa em termos ideológicos. O grupo escultórico não só respondia aos ditames do realismo socialista, que postulava que uma obra de arte deveria ser socialmente útil, dinâmica e didática, como era também uma representação da estrutura social do país posterior ao Primeiro Plano Qüinqüenal. O operário e a camponesa que avançam juntos, levando o martelo da indústria e a foice da agricultura, simbolizam a convicção de Stalin de que o sucesso da mecanização da agricultura havia provocado uma convergência entre os interesses do operariado industrial e os do campesinato. Embora o operário ainda liderasse o processo, os dois grupos caminhavam próximos, rumo à realização de uma sociedade sem classes, verdadeiramente comunista55.

Imagens da vida no país pontuam esse número especial de USSR na stroike. Em Artigo 12, um conjunto de fotografias, representando camponeses, militares, um operário, um cientista, um músico e um funcionário, tem por objetivo reconduzir a diversidade de tarefas socialmente úteis a um denominador comum que simboliza a união nacional. A presença de uma moldura formada por uma grinalda de folhas e bagas, além de fazer referência à fertilidade do solo, pode ser reportada a uma manifestação particular do realismo socialista: a valorização da arte folclórica como criação coletiva, na qual se manifestavam a um só tempo valores locais e universais56.

Em Artigo 126, os cidadãos da União Soviética comparecem como pano de fundo de uma representação glorificadora do papel do partido na vida do país: ser a vanguarda dos trabalhadores em sua luta pelo fortalecimento e desenvolvimento do sistema socialista. A diferença de escala entre os diversos representantes das repúblicas soviéticas, altos membros do partido e Stalin é bem significativa: a centralidade do líder não deriva apenas de sua colocação estratégica na fotomontagem, mas sobretudo do tamanho gigantesco que lhe é dado, graças ao qual sobrepuja as demais lideranças políticas (representadas num tamanho médio) e as cenas de multidão (às quais é reservado um formato pequeno).

Constituição stalinista, povo soviético feliz, que encerra a narrativa visual desse número, é uma peça retórica de grande eficácia, que só aparentemente não coloca em cena o líder personalista. A justaposição de mães sorridentes carregando seus filhos, atletas desfraldando bandeiras e crianças exibindo buquês de flores, tendo como traço de união o emblema do Estado e os dizeres "Constituição stalinista, povo soviético feliz", tem seu significado reforçado por uma declaração de Stalin, que contrapõe à "barbárie fascista" a "assistência moral" e o "apoio real" que a nova Constituição do país poderia dar a todos aqueles que se opunham ao totalitarismo (Figura 10). Essa declaração visava não apenas ao público interno, mas sobretudo aos países estrangeiros nos quais USSR na stroike circulava. O clima político-social que imperava no fim dos anos 1930 – tensões internacionais, persistência da crise econômica desencadeada em 1929 e ascensão do nazismo – era favorável a uma valorização geral da potência da União Soviética e à sua idealização pelos partidos integrantes da Internacional Comunista57.


Margolin considera esse número de USSR na stroike como o ápice do estilo narrativo de Lissitzki, que vai de uma "adulação altamente emocional de Stalin às sóbrias apresentações de estatísticas industriais". Ao lembrar que essa edição, publicada no apogeu dos expurgos, tinha por objetivo desviar as atenções internacionais deles, o autor mostra como Lissitzki cria uma narrativa comprometida com o governo, adaptando seu talento às necessidades retóricas do regime58.

Se bem que em escala menor, o mesmo pode ser dito de Rodtchenko, cuja colaboração à revista é também marcada, em alguns momentos, pela dissonância entre representação e realidade. Isso fica patente no número dedicado à construção do Canal do Mar Branco (Canal Stalin), no Báltico, em dezembro de 1933. O artista realiza três viagens à região entre 1931 e 1933, cujo resultado são mais de duas mil fotografias que registravam a construção de um vasto sistema de eclusas e canais num espaço de tempo bem reduzido. Na configuração de uma épica moderna, na qual a conquista da natureza por parte da organização e da tenacidade do homem soviético é dramatizada, Rodtchenko não leva em conta os custos humanos do empreendimento. Uma vez que o orçamento destinado à obra era reduzido, recorre-se ao trabalho de presos de direito comum e políticos, que morrem aos milhares durante a construção do canal, um dos maiores projetos do Primeiro Plano Qüinqüenal59.

O artista tem uma visão positiva do empreendimento, patente não apenas nas imagens que realiza, mas também num artigo publicado em 1936:

Era uma guerra entre o homem e a natureza selvagem. O homem veio e venceu, venceu e transformou-se. Tinha chegado abatido, castigado, amargurado e saiu de cabeça erguida, com uma medalha no peito e um passaporte para a vida. [...] Fotografei de maneira simples, sem pensar no formalismo. Eu estava surpreso com a acuidade e a real sabedoria com as quais as pessoas estavam sendo reabilitadas60.

O ataque à terra foi feito com enxadas e explosivos transmite essa impressão em termos visuais. Rodtchenko mostra homens orgulhosos do próprio trabalho, engajados ativamente numa série de tarefas necessárias à construção do canal: escavando com enxadas, levando materiais no carrinho de mão, usando furadeira e explosivos, construindo as comportas. O que o artista entende por "fotografar de maneira simples, sem pensar no formalismo" é evidenciado nessa imagem, em que são deixados de lado os diversos ângulos de visão e as tomadas em diagonal, que caracterizavam a série dos Pioneiros (1928-1930) e o registro de manifestações patrióticas. Se o que está na base dessa composição é a mesma idéia de um ritmo coletivo, Rodtchenko, no entanto, não o representa a partir de uma estrutura geométrica ou de um ponto de vista inovador. Prefere confiar o impacto da imagem a uma iconicidade não alheia a certos aspectos pictóricos, evidentes sobretudo nas figuras do primeiro plano que, com suas roupas escuras, criam um contraste cromático com a paisagem nevada (Figura 11).


Outras fotografias que integram o conjunto mostram, ao contrário, um Rodtchenko mais próximo dos pressupostos do construtivismo fotográfico. É o caso de uma imagem tomada em diagonal, que confere uma inclinação acentuada à composição, gerando um efeito dinâmico. A metáfora do trabalho coletivo como equivalente à harmonia de uma orquestra é acentuada por dois recursos: a imagem de dois músicos em primeiro plano e a presença de um texto que faz referência à regeneração pelo trabalho de "ex-ladrões, bandidos, kulaks, salteadores, assassinos [que] pela primeira vez tornaram-se conscientes da poesia do trabalho, do romance da tarefa de construção. Trabalharam para a música de sua própria orquestra". É o caso também da maior parte das tomadas do canal, regidas por uma visão formalista, que dá primazia a formas puras e gigantescas para simbolizar a vitória do homem sobre a natureza.

Em outros trabalhos para a revista, nos quais conta com a colaboração da esposa, Rodtchenko realiza algumas experiências visuais bem próximas de seu momento vanguardista. É o que acontece, por exemplo, no número de agosto de 1936, dedicado à exportação de madeiramento. Em O madeiramento chega aos portos de todas as partes da União Soviética, Rodtchenko e Stepanova apresentam uma fotomontagem regida por dois registros: um realista (trem, navio e parte superior de um edifício oficial), outro abstrato (as pilhas de madeira). Este último evoca as diagonais dinâmicas que Rodtchenko havia usado no trabalho gráfico dos anos 1920, além de trazer a marca daqueles ângulos de visão não usuais que haviam caracterizado sua primeira fotografia (Figura 12). Os mesmos parâmetros podem ser encontrados numa composição reproduzida em página dupla, na qual se destaca, primeiramente, uma imagem de troncos cortados, em fileiras cerradas, formando um padrão geométrico. Em cima deles, Rodtchenko e Stepanova colocam um semicírculo com a fotografia de um navio. A segunda parte da composição representa pilhas de madeira que criam uma estrutura geométrica e linear, às quais é sobreposta a imagem de uma serraria englobada num outro semicírculo. A fonte dessas imagens deve ser buscada no trabalho realizado por Rodtchenko com a equipe do documentário Exploração industrial da madeira, que não chegou a ser concluído (1931). Naquela ocasião, o artista havia realizado uma série de fotografias que remetem aos postulados do construtivismo fotográfico, pois se caracterizavam por tomadas em diagonal e por efeitos freqüentemente lineares e abstratos.


Múltiplos ângulos de visão e uma sutil estruturação geométrica conferem um aspecto dinâmico e, em certos momentos, abstrato à fotomontagem Abrindo seus pára-quedas e cobrindo o céu com eles... (dezembro de 1935). A imagem de Stalin, que se destaca no interior de um círculo, olhando para o alto, deve ter sido provavelmente inserida por motivos editoriais a fim de reforçar a idéia do vigor do temperamento soviético. Na apresentação do número há, com efeito, um editorial que propõe um elo simbólico entre o pára-quedismo e "nosso empenho stalinista, nossa vontade de voar mais alto, nosso desejo de ampliar o horizonte da vida, de fazê-la mais brilhante, mais vasta e mais alegre"61.



Pelo prisma do mito

O engajamento de Klutsis, Rodtchenko e Lissitzki na causa da revolução é marcado por alguns dos postulados-chave da estética oficial: preocupação com o realismo, o didatismo, a clareza da mensagem e a utilidade social; figuração do herói positivo; inserção da tese no espaço da composição; escamoteio de todo conflito, entre outros62. Diante desse quadro de referências, o que cabe discutir não é o "sacrifício" que esses artistas fizeram para servir à razão política, mas a decisão por eles tomada de desenvolver novas ferramentas visuais para disseminar a mensagem revolucionária. Margarita Tupitsyn não tem dúvidas de que o uso de fotografias e fotomontagens num suporte como o cartaz foi a última grande experiência da vanguarda soviética, tendo conseguido adaptar-se surpreendentemente às necessidades da propaganda visual de Stalin63.

Se for analisado o engajamento político dos três artistas, a adaptação de suas linguagens à propaganda stalinista não parecerá, contudo, surpreendente. No caso de Klutsis, é visível sua vontade de contribuir para a construção do mito do novo mundo e do papel desempenhado dentro dele pelo homem novo. A fotomontagem O velho mundo e o mundo que está sendo construído agora é exemplar nesse sentido, podendo ser analisada à luz do mito de origem. Se é próprio do mito de origem justificar uma situação nova, contando como o mundo foi modificado e enriquecido, a fotomontagem de 1920 enquadra-se em seus pressupostos, pois oferece uma visualização eloqüente de dois períodos da história soviética, a fim de melhor enfatizar o momento inaugural instaurado a partir de 1917. A contraposição entre o mundo do passado, aniquilado pela revolução, e a criação do novo mundo, representada por Lenin, inscreve-se plenamente na ordem do mito, não só por ser a narrativa de uma "história verdadeira", isto é, de uma história que se refere à realidade, mas também por lançar mão de uma dicotomia simbólica, na qual o elemento icônico desempenha uma função primária em relação àquele conceitual64.

Um outro aspecto mítico permeia a produção de Klutsis: a representação do herói nacional como modelo exemplar de vida e de comportamento65. É nessa dimensão que parece residir o elo entre o Klutsis engajado na vanguarda e o Klutsis propagandista de Stalin. Lenin e Stalin são alçados, de fato, a uma condição heróica, por terem salvado o povo da opressão e da fome, oferecendo-lhe um presente sereno e livre de tensões e um futuro brilhante. O Lenin de A eletrificação de todo o país e o Stalin de A realidade do nosso programa é o povo verdadeiro, somos você e eu, por exemplo, podem ser vistos como paradigmas dessa visão heróica pelas dimensões que lhes são dadas, ou pela simbologia de que vêm carregados: com um signo do progresso nas mãos, o primeiro; chefiando a marcha triunfal dos trabalhadores, o segundo.

Essa mesma dimensão heróica, pela qual a figura do líder emblema as conquistas sociais, enforma o trabalho de Lissitzki para o número de USSR na stroike dedicado ao empreendimento do Dnieper. Nesse, aliás, é também mobilizado o mito de origem, uma vez que Uma conversa entre dois mundos pode ser vista como uma contraposição entre a cegueira do passado (Wells) e a capacidade de escancarar o futuro graças a um gesto inaugural (Lenin).

Rodtchenko não está a salvo dos efeitos da mitologização da vida soviética, como comprova o discurso heróico que empresta à construção do Canal do Mar Branco. A documentação fotográfica produzida por ele pode ser inscrita no espaço do mito em virtude da estratégia adotada: ele não nega o emprego dos presos como mão-de-obra, pois lhe confere um significado regenerador. Desse modo, o artista fala do fato, mas o purifica, o inocenta, ao abolir toda complexidade e ao dar ao episódio uma clareza não alheia à naturalidade com o qual ele é apresentado66.

O engajamento dos artistas na causa revolucionária, que os leva a apresentar a vida do país pelo prisma do mito, de uma narrativa que confere prioridade à imagem e à metáfora, ajuda o regime a oferecer uma imagem positiva de si, livre das contradições internas que caracterizavam o período de Stalin. Esse engajamento, no entanto, não é suficiente para proteger alguns deles das vicissitudes políticas e, sobretudo, dos expurgos que estavam ocorrendo desde 1936. Klutsis será uma das vítimas da política de repressão instaurada por Stalin. Sua biografia de revolucionário da primeira hora, que participou da tomada do Palácio de Inverno, integrou a guarda militar de Lenin e pôs o próprio trabalho a serviço do regime, transforma-se em evidência negativa diante da reconstrução da revolução levada a cabo por Stalin. Acusado de pertencer a um grupo nacionalista da Letônia, é preso e executado em 193867.

É justamente nesse ano que Stalin publica a primeira edição de História do PCUS, cujos traços fundamentais são a falsificação e a manipulação dos eventos históricos e a invenção de tradições, de maneira a enfatizar o próprio papel heróico no âmbito da revolução. Rodtchenko participa desse clima de manipulação da memória: em sua cópia do livro Os dez anos do Uzbequistão – cujo projeto gráfico havia elaborado em 1934, em colaboração com Stepanova –, obscurece com nanquim os rostos de líderes que haviam caído em desgraça68. Após o fechamento de USSR na stroike em 1941, Rodtchenko e Stepanova continuam a produzir álbuns fotográficos de cunho oficial: De Moscou a Stalingrado (1943-1945); Os vinte e cinco anos do Cazaquistão (1945-1947); Cinco anos de reservas de trabalho (1945-1947). Além disso, o artista ocupa um cargo oficial: em 1944, é nomeado diretor artístico da Casa da Técnica de Moscou.

Diante desses fatos, é difícil aceitar os argumentos de alguns historiadores que tendem a minimizar, quando não negar, o real comprometimento de Rodtchenko com o regime stalinista. Alexander Laurientev, por exemplo, diz que a documentação da construção do Canal do Mar Branco era sujeita à censura: o artista só poderia fotografar cenas justificadas num plano de trabalho preliminar; o envio do material (negativos e provas) para publicação dependia de uma aprovação prévia. Esse argumento é bastante frágil, se for lembrado que o número especial de USSR na stroike e o álbum dedicado ao empreendimento do Báltico são publicados em 1933, enquanto a documentação, iniciada em 1931, estende-se por dois anos. Por outro lado, existem evidências de que Rodtchenko alterou várias fotografias para forjar alegorias de um trabalho não só produtivo como regenerador. Parece também frágil um outro tipo de argumento usado para justificar essa mesma colaboração, que acaba por contradizer a afirmação de Laurientev: tratar-se-ia de uma tentativa desesperada do artista para salvar a própria pele e para resgatar o próprio trabalho aos olhos das autoridades69.

Lissitzki, por sua vez, parece ter permanecido fiel ao regime até sua morte. Quando falece em dezembro de 1941, havia concluído o cartaz Produzam mais tanques, em apoio ao esforço bélico do país, dando mais uma demonstração de seu alinhamento à política simbólica oficial.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142005000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material - USP

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