Breno BringelI; Enara EchartII
IPesquisador do Departamento de Ciência Política III e do Grupo de Estudos Contemporâneos da América Latina da Universidade Complutense de Madri - Espanha. Facultad de Ciencias Políticas y Sociología. Campus de Somosaguas s/n - 28223. Pozuelo de Alarcón - Madri - Espanha. brenobringel@hotmail.com
IIDoutora em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri. Professora e Pesquisadora do Instituto Universitário de Desenvolvimento e Cooperação (IUDC) da Universidad Complutense de Madrid. Instituto Universitario de Desarrollo Cooperación. Calle Donoso Cortés, 65 - Planta 6 - 28015. Madri - Espanha. enaraem@pdi.ucm.es
INTRODUÇÃO
A democracia não é algo que foi inventado em um lugar determinado e de forma definitiva. É a reinvenção contínua da política. É um processo histórico e conflituoso, sujeito a diferentes processos de ampliação ou retração (Lefort, 1981). Ainda que a democracia seja uma criação histórica do mundo grego-ocidental, isso não significa que pertença a esse mundo como um bem privativo, e muito menos que tenha que se desenvolver seguindo categorias ou modelos pré-definidos. Para Castoriadis (1986), a essência da vida político-democrática da Grécia antiga não é seu "modelo", mas sim seu processo histórico instituinte, ou seja, as atividades e as lutas que se desenvolveram em torno da transformação das instituições, a autoinstituição explícita da pólis como processo permanente. Além disso, como lembra Mignolo (2005), o fato de os gregos terem inventado o pensamento filosófico não quer dizer que tenham inventado "O Pensamento".1 Existem outras epistemologias, outras formas de pensar a democracia, a maioria delas silenciadas e, inclusive, perseguidas pelo liberalismo democrático dominante.
A democracia evoluiu historicamente através de intensas lutas sociais e, com frequência, foi também sacrificada em muitas dessas lutas. As tensões sobre seus rumos e significados estão arraigadas em conflitos históricos, como aqueles que enfrentaram as convicções liberais contra a tirania e os Estados absolutos no século XVI; as lutas pelos direitos humanos no final do século XVIII; as lutas pelo acesso ao sufrágio universal durante o século XIX; ou os conflitos mais contemporâneos, plasmados, em grande medida, nos debates entre as perspectivas tecnocráticas, elitistas, pluralistas e radicais. De uma forma geral, na história de enfrentamentos pelos sentidos da política democrática, subjaz a luta por determinar se a democracia significa, por um lado, algum tipo de poder popular - uma forma de vida em que os cidadãos participam no autogoverno e na autorregulação -, ou se, por outro lado, trata-se simplesmente de uma contribuição à tomada de decisões - um meio de legitimar as decisões dos eleitos, de vez em quando, por votação (os "representantes"), para exercer o poder (Held, 1996, p. 20).
Essas duas formas de pensar a democracia nos levam, em última instância, a disputas incessantes entre uma definição substancial e uma definição procedimental, à pugna entre um plano descritivo (o que é a democracia) e um plano prescritivo (o que deve ser a democracia), que não podem transitar por caminhos separados. Entre o crescente prestígio do ceticismo pós-moderno, a debilidade dos horizontes universalistas e as contradições da globalização, este artigo propõe revisar e ampliar as perspectivas teóricas de análise das lutas dos movimentos sociais que reinventam e ressignificam continuamente a política e a democracia, partindo do suposto de que existe uma série de "fronteiras" que limitaram, e continuam limitando, os estudos e as interações entre movimentos sociais e democracia, quando se analisa, na atualidade, o aprofundamento democrático. Entendemos que nem todos os movimentos sociais promovem a democracia ou contribuem para a democratização, mas há uma tendência contemporânea para que muitos deles incorporem uma dimensão renovada de luta democrática, que se expressa em diferentes paisagens materiais e simbólicas, contribuindo para a reinvenção das práticas e teorias democráticas.
Apesar do notável avanço no debate sobre os limites da democracia representativa, a crise dos partidos políticos e a emergência de novos atores sociais e formas de contestação política, a maioria das abordagens continua circunscrita a dimensões específicas. Neste artigo buscaremos analisar e superar, a partir de um enfoque multidimensional e relacional, algumas dessas dimensões ou "fronteiras", a saber: a fronteira da ciência (incorporando um diálogo interdisciplinar com saberes historicamente marginalizados nas teorias democráticas e dos movimentos sociais); a fronteira do Estado-nação (estabelecendo as conexões entre diferentes escalas, do local ao global, que interferem nos processos de democratização a partir da espacialidade da política); a fronteira institucional (entendendo a política como o espaço da experiência, para pensar também o universo instituinte das práticas democráticas, para além do instituído); e a fronteira do momento histórico (questionando as transições democráticas como referência fundamental para os estudos entre movimentos sociais e democracia).
FRONTEIRA 1: o olhar da ciência
Uma primeira fronteira que limita as possibilidades de interpretação das relações entre os movimentos sociais e a democracia é a da ciência, que se refere, principalmente, às barreiras disciplinares, mas também às epistemológicas e metodológicas.
No que diz respeito aos campos disciplinares, é importante observar que a maioria das análises dos movimentos sociais, e, em particular, aquelas que avaliam sua relação com a democracia, tem como ponto de partida a sociologia, a história e, posteriormente, a ciência política. No entanto, devido à crescente complexidade das sociedades contemporâneas, as ferramentas teórico-metodológicas oferecidas por essas disciplinas não são suficientes para interpretar o mapa atual das ações coletivas e dos movimentos sociais. Dimensões importantes das práticas e teorias democráticas e dos movimentos sociais que emergem no novo século exigem um esforço de superar essa fronteira, incorporando outras disciplinas, outrora marginalizadas, entre elas a geografia (fundamental para entender as relações entre protesto, natureza e território e a construção de espaços de democracia radical baseados nas práticas espaciais dos movimentos) e as relações internacionais (que permitem aprofundar o estudo da dimensão global, das redes e ações coletivas transnacionais, etc.). Observe-se que apostamos não somente por ampliar as possibilidades de novas abordagens disciplinares, mas também por avançar rumo a um diálogo inter e transdisciplinar. As convergências entre as ferramentas críticas oferecidas pela geografia política e o olhar mais ampliado das relações internacionais servirão para ilustrar as possibilidades de articular movimentos sociais e democracia para além dos enfoques disciplinares habituais, em um contexto onde se observam duas tendências que se aprofundam: uma que revitaliza o local, a partir do "lugar", entendido não só como um espaço geográfico concreto, mas como espaço político, como manifestação de experiência e sentido, como os marcos formais e informais dentro dos quais se formam as interações sociais quotidianas (Bringel, 2006; Jelin, 2003); e outra que caminha em direção à globalização e à transnacionalização, aos fenômenos de escala planetária nas comunicações, nos interesses econômicos, aos perigos ambientais, aos acordos e desacordos internacionais (Echart; López; Orozco, 2005).
Dentro da teoria social ocidental, houve uma constante marginalização do "lugar", o que acarretou muitas consequências na nossa compreensão da cultura, do conhecimento, da natureza e da economia, nublando formas subalternizadas de pensamento, organização e modalidades locais e regionais de configurar o mundo (Escobar, 2005). Contudo, o "lugar" adquiriu uma renovada visibilidade na medida em que a globalização, em seus movimentos contraditórios, deixou mais à vista lugares antes ocultos. Como afirma Dirlik,
... os lugares oferecem não apenas uma vantagem para uma crítica fundamental do globalismo, mas também locações para novos tipos de atividades políticas radicais que reafirmam as prioridades da vida cotidiana contra o desenvolvimento abstrato da modernidade capitalista (1999, p. 40).
A geografia crítica, dialogando com outros campos como a antropologia ou a ecologia política, cumpre um papel fundamental nessa nova interpretação da política do lugar, que é visto não como um cenário estático, mas influenciado por relações específicas de classe, gênero, etnia, raça, onde se manifesta um novo utopismo de caráter explicitamente espaço-temporal (Harvey, 1989; Massey, 1994); não se trata de um espaço como dado contextual, mas de um espaço criado da organização e das produções sociais, como espacialidade de base social (Soja, 1993); como um campo político e ideológico, aberto e híbrido, sempre provisório, onde se expressam as relações sociais e de poder, mas também onde se reage contra elas (Lefebvre, 1970).
Revitaliza-se o pensamento de Lefebvre e, em particular, sua concepção da produção do espaço como possibilidade privilegiada de exploração de estratégias alternativas e emancipatórias, em um contexto onde a tendência é que os lugares se unam verticalmente (por exemplo, através de créditos internacionais cuja utilização está subordinada aos mandatos do capital). Porém os lugares também podem se unir horizontalmente, resistindo e reconstruindo uma base de vida comum (Santos, 2002). Nesse sentido, a espacialização das ações coletivas pode ser uma importante variável para se analisar a democratização, já que permite ampliar o seu estudo a práticas espaciais localizadas nos âmbitos locais, regionais, nacionais e globais, e não somente a territorialidades circunscritas à institucionalidade do Estado-nação. Para Slater (1998, p. 47; 2000, p. 529), ao viver uma era marcada pela intensificação e aceleração das relações através do espaço, aquelas relações que não se limitam necessariamente a nenhuma esfera (como a democratização) devem ser interpretadas como parte de um "interior" e um "exterior" entrelaçados, de tal forma que o global, o regional e o local podem ser interpretados como profundamente imbricados com a noção de "fronteirização" do mundo, sublinhando a fragilidade das ordens espaciais estabelecidas.
Como consequência disso, não é possível negar a dimensão global no estudo dos movimentos sociais contemporâneos e sua relação com a democracia, entre outras razões, pelos impactos da globalização; o afastamento dos centros de tomada de decisões e seu traslado a âmbitos globais; a necessidade de identificar esses novos interlocutores políticos e responsáveis no âmbito internacional a quem dirigir as demandas; os limites do aprofundamento da democracia no âmbito estatal, que levam a uma exigência de maior democratização também das relações internacionais; a crescente organização e atuação transnacional dos próprios movimentos sociais, etc. Desse modo, o global aparece como uma variável fundamental para o estudo dos movimentos sociais, e as relações internacionais se configuram como um novo campo de análise para levar a cabo essa tarefa.
No entanto, apesar da importância do estudo dos movimentos sociais a partir das relações internacionais, as teorias clássicas dessa área de conhecimento não incorporaram os movimentos sociais globais como um ator. Para a compreensão do atual sistema internacional, torna-se, então, necessária uma revisão dos conceitos clássicos utilizados para definir essa realidade, em particular o de "ator internacional". A redução das relações internacionais às relações interestatais deixa de fora um número considerável de forças que atuam e influem nesse âmbito, e, entre essas forças, os movimentos sociais adquirem uma relevância cada vez maior, potencializando o debate e incidindo nas estratégias dos demais atores (Echart, 2008). Desse modo, as relações internacionais, apesar da ortodoxia ainda predominante, apresentam-se como um campo fértil, já que pode oferecer um enfoque mais integral que o de outras disciplinas, oferecendo uma visão a partir de um ângulo internacionalista. Nesse sentido, sem negar a importância dos estudos centralizados no local ou no estatal, é preciso oferecer perspectivas analíticas mais amplas. As relações internacionais oferecem uma perspectiva holística, sem que isso implique desconsiderar teorias ou aportes de outras disciplinas. O fator determinante para a escolha de uma disciplina não é tanto o objeto de estudo, mas sim a perspectiva com que se pretende analisar, nesse caso a das relações internacionais.
Um enfoque integrador entre as perspectivas críticas da geografia e das relações internacionais permite, assim, uma resistência a um puro estadocentrismo e a articulação de alternativas para aquém e para além desse âmbito, considerando o sentido global do lugar, já que, como afirmara Milton Santos (2002, p. 161), "hoje, certamente mais importante que a consciência do lugar, é a consciência do mundo, obtida através do lugar". Insere também uma imaginação geográfica que intervém na política internacional, ou o que Agnew (2006) considera uma das tendências mais relevantes de convergência entre alguns geógrafos e teóricos das relações internacionais: a reorientação da discussão sobre a espacialidade da política mundial, distanciando-se de uma divisão entre território versus redes e (ou) fluxos, para considerar sua influência recíproca. No âmbito concreto do estudo dos movimentos sociais e a democracia, a partir dessa influência mútua, é possível tecer várias articulações como aquela proposta num artigo recente por Conway (2008), em que a autora estuda a Marcha Mundial das Mulheres, a partir de ferramentas teóricas provenientes das relações internacionais (tomando como eixo as redes transnacionais de movimentos de mulheres) e da geografia (as práticas espaciais dessas redes). Uma das idéias-chave que subjaz é que as separações rígidas entre o interior e o exterior, as forças de abaixo e de acima, impedem ver a imbricação entre as diferentes escalas, nublando as forças democratizantes translocais: é difícil falar de uma "globalização a partir de cima", sem notar seus efeitos locais, da mesma forma que seria um erro falar do papel de democratização dos movimentos sociais numa esfera global, sem considerar suas interações com o local.
No entanto, além de superar a divisão disciplinar, é preciso também superar uma fronteira mais ampliada que engloba o próprio sentido do estudo, a própria visão de ciência, ou do científico, no desafio de estudar os movimentos sociais: os pressupostos epistemológicos de onde partem os processos de pesquisa sobre os movimentos sociais. Esses pressupostos epistemológicos incidem no desenvolvimento de uma pesquisa, na medida em que há diferentes formas de abordar e conhecer o mundo. Alguns desses pressupostos fazem referência, por exemplo, ao problema da influência dos valores, ao problema ontológico da relação entre ação e estrutura, ou, ainda, ao problema da dicotomia entre explicação e compreensão na analise das variáveis. Nesse sentido, o problema dos valores, amplamente debatido nas ciências sociais (Weber, 1978), começa a ser superado. Diante do positivismo, reconhece-se a construção social do conhecimento e a consequente impossibilidade de uma ciência neutral, desprovida de valores, onde o objeto de estudo pudesse permanecer absolutamente desvinculado do sujeito que observa a partir de uma percepção inócua (Linklater, 1996). Essa perspectiva analítica vem permitindo uma série de novos estudos sobre movimentos sociais realizados a partir de uma perspectiva militante ou ativista. No que se refere ao problema ontológico, relacionado à análise do objeto de estudo, frente à dicotomia entre a dimensão dos atores (baseada num individualismo metodológico: teorias da mobilização de recursos, a escolha racional ou a ação coletiva) e a do contexto (que determinaria a atuação dos movimentos sociais, oferecendo oportunidades ou constrições: teorias sobre o comportamento coletivo, a estrutura de oportunidade política, os ciclos de protesto, etc.), observam-se avanços no sentido de uma superação na tradição crítica dialética (Ritzer, 1993): as estruturas podem condicionar, mas não determinar a ação, que pode ocorrer, ou não, dependendo dos recursos (materiais e simbólicos), da capacidade mobilização, da existência de uma identidade coletiva, etc.
Articulados a essas preocupações, vários autores, na última década - considerando a ciência como um dos principais motores da racionalidade moderna ocidental -, reivindicam a necessidade de se considerar a existência de outras racionalidades alternativas a partir de "experiências silenciadas ou desperdiçadas", de uma "epistemologia do Sul" (Santos, 2006). Ou da "descolonização do pensamento" de regiões como a América Latina que, com o fim do colonialismo, permaneceram expostas à colonialidade do poder - colonialidade da política e da economia -, do saber - em termos epistêmicos, filosóficos e científicos - e do ser - entre outras coisas, da sexualidade e das subjetividades (vide os autores do projeto modernidade e colonialidade como Dussel, Escobar, Mignolo, Quijano e outros). Trata-se de uma sugestiva proposta para pensar o estudo dos movimentos sociais e suas experiências democráticas, cujas práticas nem sempre foram "traduzidas" adequadamente.2
Isso nos leva, finalmente, a um último problema inter-relacionado, o metodológico, que se refere ao dilema entre um enfoque explicativo ou compreensivo do objeto de estudo (Freund, 1993). Se partirmos de uma hipótese explicativa, o objetivo principal seria verificar empiricamente certas dimensões, ou seja, os fatos. Contudo, essa perspectiva assume o risco de limitar os movimentos sociais à sua dimensão de mobilização, às suas manifestações públicas ou ações coletivas desenvolvidas, à parte visível, sem ter em conta o sentido dessas atuações. Como afirmam Clemens e Hughes (2002, p. 212), "... em várias de suas dimensões, os movimentos sociais são como icebergs, com muitas de suas ações ocorrendo abaixo da superfície visível". Nesse sentido, a partir de uma hipótese compreensiva, é possível visualizar as dimensões mais esquivas à verificação empírica, mas que são fundamentais para a compreensão do objeto de estudo: intuições, práticas internas, convicções, subjetividades coletivas. Poder-se-iam analisar, assim, o sentido da mobilização, suas simbologias, práticas internas e sua incidência, nesse caso, na democratização.
Uma análise completa sobre os movimentos sociais supõe incluir essas duas hipóteses para abordar a realidade social como uma totalidade, manifestando seus antagonismos estruturais e suas contradições. No campo dos movimentos sociais, notam-se muitos avanços nessa linha analítica, como o que Klandermans e Staggenborgh (2002) consideram uma ausência de um dogmatismo metodológico nesse campo, que contribui para a realização de pesquisas empíricas mais ricas e inovações metodológicas. De fato, os estudiosos dos movimentos sociais vêm realizando tanto estudos quantitativos como qualitativos, utilizando entrevistas em profundidade e enquetes, estudos de arquivos e observação participante, estudos de casos singulares e desenhos comparativos bastante complexos, simulacros matemáticos e análise de eventos de protesto, estudos ecologistas de campos multiorganizacionais ou narrações de histórias de vida, análises de discurso e estudos de narrativas; incorporando ferramentas e técnicas de diversos campos do saber, o que contribui para a superação das fronteiras disciplinares.
Esses avanços analíticos, em suma, fazem emergir um vasto campo de possibilidades, caso sejam ampliados os olhares científicos, que podem enriquecer o entendimento das dinâmicas dos movimentos sociais e suas relações com a democracia ou democratização.
FRONTEIRA 2: o Estado-Nação
A dupla tendência de globalização e transnacionalização, por um lado, e de revitalização do "lugar", por outro, assinalada anteriormente, supõe um importante ponto de inflexão e ruptura tanto para as teorias das ações coletivas como para as teorias democráticas. No que se refere às teorias das ações coletivas e dos movimentos sociais, a partir dos estudos de diferentes escolas que emergiram principalmente a partir da década de 1960, o Estado-nação se constituiu como o marco interpretativo e articulatório central da ação coletiva. Os teóricos políticos da democracia também se centraram em analisar a democracia baseados na concepção de uma "democracia territorial", sustentada por uma teoria política intra-Estado, que tendeu a opor as "questões internas" (como direitos, justiça, comunidade, obrigação, identidade e legitimidade) às "questões externas" (como segurança, guerra, violência, cooperação, etc.), que seriam mais próprias de uma teoria política inter-Estados (Connolly, 2002). Dentro dessa lógica, como lembra Slater,
... os movimentos sociais estão ligados ao domínio político mediante seu impacto sobre as políticas públicas ou sobre as prioridades dos partidos políticos, mas qualquer conexão com a política global é feita com a mediação do sistema político interno (2000, p. 508).
Contudo, durante a última década, houve um avanço fundamental tanto dentro das teorias das ações coletivas e dos movimentos sociais como das teorias democráticas, que acompanharam a crescente complexidade das sociedades contemporâneas com os processos de globalização, buscando superar as fronteiras do Estado-nação de forma a se pensarem as relações entre os movimentos sociais e a democracia. Porém, é importante matizar que, da mesma forma que antes nem tudo era estatizado, nem tudo o que emerge é transnacionalizado. Assim, o Estado continua sendo uma referência fundamental nas relações entre movimentos sociais e democracia, já que, entre outras funções, ele detém o monopólio legítimo da violência (com repercussão direta na sua função repressora sobre os movimentos sociais) e continua sendo um importante interlocutor político e receptor de muitas demandas (Bringel; Falero, 2008; Echart; López; Orozco, 2005).
No caso dos "teóricos dos movimentos sociais", estudos como os de Keck e Sikkink (1997), Smith, Chatfield e Pagnucco (1997), Della Porta, Kriesi e Rucht (1999) ou, mais recentemente, de Della Porta e Tarrow (2005), Tarrow (2005) e Echart (2008), lançaram discussões pioneiras sobre um novo ativismo sem fronteiras. Por outro lado, dentro dos "teóricos da democracia", autores como Anderson (2002), Connolly (2002), Held (1995), Kaldor (2005) ou McGrew (1997) também advertiram sobre esse processo de abertura, a partir de estudos inovadores que levaram à proposição de conceitos como "democracia cosmopolita" (Held), "democracia transnacional" (Anderson) ou "sociedade civil global" (Kaldor). Apesar do caráter eminentemente normativo dessas propostas, é interessante notar como, nessas construções teóricas, converge a idéia de que forças globais rompem com os pressupostos fundamentais de uma teoria democrática hegemônica, restritas ao marco liberal-representativo, aos Estados soberanos, à integridade e jurisdição territorial e às comunidades nacionais independentes.
Uma aposta complementar, que une perspectivas da geografia e das relações internacionais, é a de analisar a espacialização da democracia e da democratização e a conexão entre descentralização governamental e democracia territorial (Slater, 1998, 2000), assim como aprofundar a articulação entre os aspectos políticos das práticas espaciais e as abordagens pós-estruturalistas das teorias democráticas, em particular aquelas ligadas à política radical. Até que ponto uma sensibilidade espacial, em constante crescimento nas ciências sociais e humanas, contribuiria para repensar a questão democrática e suas conexões glocais? Essa é uma questão aberta que aparecerá durante várias passagens deste artigo.
Frente à hegemonia estadocêntrica dos estudos sobre as relações entre movimentos sociais e democracia, é fundamental introduzir a dimensão global, com suas relações e implicações com o local, por três razões principais: em primeiro lugar, no atual contexto de globalização, muitas das decisões políticas que afetam a vida quotidiana das pessoas já não são tomadas no âmbito do Estado-nação, mas em organizações internacionais. Isso torna necessária a identificação de novos interlocutores políticos no âmbito internacional, a quem dirigir certas demandas. Em segundo lugar, e em consonância com isso, os movimentos sociais também começam a atuar no plano inter e transnacional, transcendendo as fronteiras estatais. Assim, os movimentos sociais, mesmo tendo bases estatais, incluem a dimensão internacional (por exemplo, em lutas contra a aplicação de políticas econômicas ou comerciais impostas por algumas organizações internacionais) e criam redes transnacionais com outros movimentos afins (caso do movimento antiglobalização, mas também de redes de camponeses, mulheres, ambientalistas, etc.) para aparecer com maior força no cenário internacional. Em terceiro lugar, e como consequência dos dois pontos anteriores, o "global" converte-se em uma variável fundamental quando analisamos os movimentos sociais contemporâneos, ao mesmo tempo em que "o lugar" também se revitaliza. A frase "atuar localmente e resistir globalmente" é o maior símbolo dessa tendência, incorporada ao discurso e à prática de muitos movimentos sociais contemporâneos.
Desse modo, a análise da relação entre movimentos sociais e democracia, tendo em conta a "fronteira do Estado-nação", implica pensar como os movimentos sociais se organizam para atuar no cenário internacional, quais são as atividades e vias de participação abertas nesse contexto, qual é o seu novo repertório de ações coletivas e, ainda, quais são as influências ou impactos desses movimentos sociais nas relações internacionais, e, em concreto, na democratização dessas relações. Nesse sentido, é fundamental adaptar a esse contexto algumas das variáveis e marcos de referências que são utilizados para se estudarem os movimentos sociais no âmbito nacional. A união em movimentos e redes transnacionais implica mudanças em relação à sua "estrutura clássica": as relações sociais que constroem a ação coletiva no cenário internacional são mais informais e descentralizadas para que possa ser incluída toda a heterogeneidade derivada da conexão de diferentes lutas sociais. Nesse ponto, é notável a importância de adaptação da dimensão local para a ação coletiva transnacional, que varia desde repertórios mais clássicos e (ou) informais (como manifestações ou campanhas de denúncia e sensibilização) à criação de marcos mais estruturados (como os espaços de encontro próprios - Fórum Social Mundial e outros - e a participação em encontros e fóruns oficiais). Por outro lado, também mudam as estruturas de oportunidades políticas, que Tarrow (1998) define como aquelas dimensões do entorno político que proporcionam incentivos para a ação coletiva, afetando suas experiências de êxito ou fracasso. Para autores como Smith, Chatfield e Pagnucco (1997) ou Kaldor (2005), é justamente a existência de estruturas nacionais relativamente rígidas, ou com pouco poder de decisão real, o que leva as forças sociais a dirigirem-se ao cenário internacional, onde podem ter maior incidência e onde começam a abrir canais de participação cidadã.
De acordo com Tarrow (2005), um dos grandes êxitos dos movimentos sociais transnacionais é a definição de seus marcos interpretativos, que cumprem três funções básicas: explicativa, de articulação e de mobilização. Isso é possível pela criação de "marcos multi-temáticos" (multi-issue frames), que não estão focalizados em um único tema ou ideia, devido à existência de objetivos comuns oferecidos pelo internacionalismo (alvos como o FMI, a OMC, a União Européia ou os Estados Unidos) e que condensam numa única imagem, uma ampla gama de objetivos. Isso permite o surgimento de "identidades coletivas tolerantes", que juntam as diferenças através da união frente à luta contra a globalização, fonte de problemas globais, mas com impactos locais, o que amplia, ainda mais, a conexão glocal. Com isso, consegue-se estender ao imaginário coletivo uma explicação dos efeitos negativos da globalização, juntamente com a identificação de responsáveis na cena internacional e com certa legitimação social dos protestos, que impulsionam e ampliam a mobilização com a ruptura discursiva de um "outro mundo é possível".
Nesse sentido, os movimentos sociais, em suas lutas pela democratização das relações internacionais, contribuem com várias atividades e recursos (Smith, Chatfield; Pagnucco, 1997) imbricados entre si, entre os quais podemos identificar: a criação de redes transnacionais (que ajudam a criar vínculos entre diferentes realidades sociais e a mobilizar recursos materiais e simbólicos no cenário internacional); a difusão de informação e sensibilização cidadã (ao incrementar o pluralismo informativo, os movimentos sociais contribuem para a compreensão dos problemas globais e, em última instância, para o aprofundamento democrático); a participação nas arenas políticas multilaterais (através de estratégias de participação e incidência, que vão desde uma "participação por convite" em espaços institucionalizados - são os "insiders" (Keck; Sikkink, 1997; Tarrow, 2005), que atuam a partir de dentro, para contribuir para a democratização do sistema político -, a uma "participação por irrupção" em espaços alternativos - os "outsiders", que atuam a partir de fora, desafiando as políticas das instituições internacionais, com uma participação política mais rupturista); o alargamento do espaço público (com o amplo leque de participação citado, os movimentos sociais contribuem para ampliar a esfera pública: conseguem, com isso, uma maior transparência e accountability, anteriormente escassas no cenário internacional, mudanças discursivas e a abertura de espaços para uma "participação por convite"); e a incorporação de temas sociais no debate internacional (na pugna pela definição do atual marco de discussão global, inserem continuamente novas sensibilidades: os aspectos de gênero, meio ambiente, direitos humanos, democracia, etc.).
No entanto, essas diferentes reivindicações não se limitam à sua incorporação, muitas vezes desvirtuada, nas agendas, devido a uma reapropriação discursiva das elites, mas levam também à proliferação de um imaginário geral de justiça social e de democracia participativa, que serve como base para uma nova consciência global. Os movimentos sociais globais cumprem, assim, nas relações internacionais, uma função de controle cidadão e de democratização, fatores que podem mudar a configuração das relações internacionais.
Ainda assim, se espacializarmos o repertório de ações coletivas dos movimentos sociais para além do âmbito estatal, é possível também analisar as repercussões dos projetos globais nas histórias locais (Mignolo, 2003). Inclusive, nos casos das redes e movimentos sociais transnacionais, o local constitui-se em base material e de socialização. É interessante notar o que muitos autores (na sua maioria, europeus e norte-americanos) consideram já uma "crise" ou o "fim" do movimento antiglobalização, devido à perda de visibilidade de seu conjunto de protestos, com o "ciclo de contra-cúpulas" (iniciado em Seattle em 1999 e que teve seu momento auge em 2001 em Gênova) e o início de certo esgotamento de suas propostas (com as críticas sobre a capacidade articuladora de espaços como o FSM). Trata-se, na verdade, de um "recolhimento" ao local de um repertório transnacional que antes tinha maior intensidade e visibilidade no cenário internacional. Nesse sentido, o movimento antiglobalização vive um momento de redefinição, com uma revalorização do lugar, um maior protagonismo das redes sociais do Sul global - principalmente através do ativismo agrário e indígena -, um refluxo do impacto nos meios de comunicação convencionais e uma crescente importância de determinados eixos temáticos, como as migrações ou a soberania alimentar (Bringel; Echart; López, 2008). Observa-se, assim, que certas demandas, como a soberania alimentar - que surgiu em 1995, no seio da Via Campesina, como alternativa à proposta de segurança alimentar discutida pela FAO -, continuam sendo demandadas globalmente, mas são construídas localmente, a partir das espacialidades dos movimentos sociais que conformam essa rede, como, por exemplo, o MST no Brasil, a Federação Bartolina Sisa na Bolívia, ou a União Nacional de Camponeses (UNAC) em Moçambique, enfrentando-se assim as especificidades da construção dessa demanda (ou de sua "des-construção local") nos diferentes contextos locais, nacionais e regionais.
FRONTEIRA 3: a institucionalidade
Na maioria das análises sobre as relações entre os movimentos sociais e a democracia, outra fronteira claramente identificável, além das duas anteriores, é dada pela institucionalidade. Na sua relação com a democracia, os movimentos sociais respondem a uma dinâmica complementar, de dupla direção: a dialética entre o âmbito do instituído e o âmbito do instituinte. No âmbito do instituído, o eixo analítico central é o impacto da atuação dos movimentos sociais nas "democracias realmente existentes" (antes citávamos alguns deles, como a ampliação do pluralismo informativo, a ampliação dos espaços de participação institucional, a inserção de novos temas nas agendas políticas, a incidência nas políticas públicas, etc.). Por outro lado, no âmbito do instituinte, o eixo fundamental constitui-se no potencial de criação de novas experiências democráticas, que vão além do âmbito do instituído, tensionando com ele (é o caso dos espaços de democracia radical, que desenvolveremos logo a seguir).
Há uma tendência, nos estudos contemporâneos sobre movimentos sociais e democracia, a priorizar o âmbito do instituído, as inovações institucionais e a participação de atores sociais em novos espaços deliberativos. Isso é especialmente válido no caso brasileiro, frente à emergência de novos atores sociais nos espaços institucionais participativos, como o orçamento participativo e os conselhos gestores de políticas públicas, os quais, muitas vezes, nublam a dimensão mais autônoma dos movimentos sociais e (ou) seu caráter instituinte. Ainda assim, boa parte desses estudos considera que essas novas práticas participativas e os novos atores sociais "substituem" os enfoques e abordagens anteriores sobre a ação coletiva no país, sobretudo aqueles mais difundidos no contexto de transição política. Assumir essa assertiva supõe olhar somente um lado da fronteira da institucionalidade - o lado do instituído -, analisando um determinado tipo de participação - a institucionalizada -, e deixando de lado outras perspectivas mais rupturistas, de caráter instituinte, criadoras de novos marcos democráticos, que estão intrinsecamente ligadas e em constante tensão.
A fronteira da institucionalidade está ligada aos diferentes locus de enunciação e de criação de novas experiências democráticas. Ainda que, em muitos casos, seja difícil traçar uma divisão rígida entre o instituído e o instituinte, é fundamental considerar a democracia para além da esfera vinculada às instituições, a um regime político liberal, baseado na realização de eleições livres, na concorrência entre partidos, etc. A democracia significa também a possibilidade de criar novas determinações, através de um imaginário criador, instituinte. Para Castoriadis (2007), a democracia é uma autoinstituição explícita, um processo de autonomia que não se esgota no instituído. Consequentemente, a democratização não pode ser entendida somente na sua dimensão política, vinculada a um lado da fronteira, como aqueles avanços dentro da esfera do sistema político que permitem, por exemplo, um aperfeiçoamento no funcionamento dos mecanismos institucionais. A construção de instituições político-democráticas sólidas ou a realização de eleições são requisitos necessários, porém não exclusivos nem suficientes da democratização, que significa também a busca da igualdade nos grupos de status, um processo imbuído nas relações sociais, nas ações coletivas e na cultura política.
É interessante observar que autores clássicos, como Alain Touraine e Charles Tilly, que teorizaram sobre os movimentos sociais desde os anos 1960, passaram a incorporar, de forma crescente, aos seus estudos a questão democrática face às ações coletivas, nem sempre pensando os limites da fronteira da institucionalidade. No caso de Tilly, em obras como Contention and Democracy in Europe, 1650-2000 (2004), Trust and Rule (2005) e, a mais recente, Democracy (2007), subjaz a preocupação de explicar como as lutas sociais afetam os processos de democratização através de um variado repertório de ação coletiva. Partindo de idéias-chave desenvolvidas na escola norte-americana, como "interesses", "repertórios" e "oportunidades", Tilly relaciona os movimentos sociais com os "processos políticos", chegando à conclusão de que as ações dos movimentos sociais favoreceram historicamente, tanto em termos quantitativos como qualitativos, os processos de democratização (o que seria verificável em determinadas conjunturas históricas). Por outro lado os processos de democratização também contribuiriam para o desenvolvimento dos movimentos sociais. Analisando as condições sob as quais os movimentos sociais contribuiriam para a promoção de democracia (Tilly, 2003), esse autor argumenta que não há condições unidirecionais e que o processo depende de um amplo campo de tensões e alianças dos movimentos sociais com as elites e outros atores políticos.
Ainda que possamos estabelecer certos planos de conexão, o enfoque que Alain Touraine propõe para pensar os movimentos sociais e a democracia dista bastante daquele de Tilly. Enquanto a escola norte-americana acabou consolidando um enfoque mais "institucionalista", centrado nas estruturas das organizações dos sistemas sociopolítico e econômico, as abordagens provenientes da Europa transitaram por terrenos de caráter mais "autonomista", revisando o marxismo e buscando explicações mais conjunturais, localizadas no âmbito político e nos microprocessos da vida quotidiana (Gohn, 2006, 2008; Neveu, 1996). Essas diferentes concepções repercutem sobre como cada um desses autores delimita a discussão sobre democracia e democratização, e o papel que dão aos movimentos sociais, nesses processos. Se Tilly se preocupa com uma análise mais macro, de cunho histórico-sociológico, buscando os motivos pelos quais os atores sociais se mobilizam, as alianças tecidas e seus impactos nos sistemas políticos, Touraine lança um enfoque mais endógeno, buscando entender a dinâmica de um determinado processo social que conta com a presença dos movimentos. Enquanto Tilly está mais preocupado em avaliar como a atuação dos movimentos sociais contribui para a democratização política (e vice-versa), Touraine prefere analisar a democratização social a partir da ação dos movimentos sociais. Da mesma forma que Tilly (2007), Touraine (1994) também dedicou um livro inteiro sobre a questão democrática e suas relações com os sujeitos sociais. Para Touraine, o sujeito e a democracia são forças inseparáveis de mediação na sociedade, e os movimentos sociais têm um papel central na construção democrática, através da defesa de seus interesses coletivos, mas isso vai além das mobilizações coletivas de atores sociais, já que são expressões de poder dentro da sociedade civil. Para Touraine (1997), o social não pode estar subordinado ao político na aspiração do aprofundamento democrático, já que, quanto mais um poder político domina um movimento social, mais difícil é o caminho da construção de uma sociedade democrática.
A interpretação crítica e o diálogo entre algumas de suas obras conduzem a pensar uma dupla face da democracia, a partir de suas relações com os movimentos sociais: de um lado, a democracia como demanda e, de outro, a democracia como criação social. A primeira baseia-se numa perspectiva exógena, baseada nas ações coletivas que estão orientadas para incluir novos conteúdos e dimensões para a democratização política. A segunda privilegia uma perspectiva mais endógena - e mais abandonada pelos teóricos dos movimentos sociais e da democracia -, cujo epicentro são as práticas quotidianas dos atores sociais, sua composição e organização interna, a horizontalidade nos espaços deliberativos, a igualdade de gênero, etc. Mais que ações coletivas que buscam incidir na democratização política, são ações e práticas dirigidas à democratização social, através da base educativa, cultural e social interna desses sujeitos participantes.
A democracia como demanda considera um amplo leque de possibilidades para precisar as vias e em que medida os movimentos sociais contribuem para melhorar o funcionamento das "democracias realmente existentes". Por exemplo, em que medida os movimentos sociais podem alargar o campo comunicativo, participativo ou das políticas públicas (Barcena; Ibarra; Zubiaga, 1998). Mas, além do marco das "democracias realmente existentes", é necessário observar em que medida os movimentos sociais adotam referências, geram discursos e criam práticas espaciais de resistência, nas quais a democracia aparece como uma criação coletiva, como a instituição de um novo imaginário, de tensão permanente entre projetos e territorialidades. Trata-se de captar como as práticas contestatórias dos movimentos sociais (ligadas ao espaço que configuram os âmbitos de atividade dos sujeitos sociais, os quais estão intimamente vinculados com as experiências das vidas quotidianas) constituem espaços de democracia radical, analisando as temporalidades e dinâmicas internas da mobilização social, em vez de sua interação com o sistema político.
Aqui podemos exemplificar com as práticas espaciais desenvolvidas pelos zapatistas mexicanos, os movimentos do El Alto boliviano, os acampamentos e assentamentos do MST do Brasil, as organizações dos bairros periféricos de Santiago do Chile, as fábricas recuperadas da Argentina ou as comunidades do Pacífico colombiano (Zibechi, 2007). São só alguns dos vários movimentos sociais que vêm construindo, na América Latina (com experiências efêmeras ou mais duradouras), contrapoderes e espaços de democracia radical, que desafiam, através do conflito, os poderes instituídos, demonstrando que um poder democrático não se inventa somente a partir dos poderes instituídos, mas também contra e em tensão permanente com eles.
Outra questão importante, que se relaciona com a dinâmica dos limites das fronteiras da institucionalidade, refere-se às representações políticas. Vários estudos da ciência política contemporânea vêm insistindo sobre os déficits da representação política, na distância entre representantes e representados, na criação de mecanismos para suprir ou harmonizar essa convivência, por exemplo, a partir do controle dos representantes. A maioria desses enfoques tende a incorporar uma visão entre representante e representado, baseada no âmbito do instituído. No entanto, se recolocamos a questão da representação da perspectiva dos movimentos instituintes, a noção de "representação política" se torna mais ampliada, associada a uma semântica de "representações" (também políticas) vinculadas às dinâmicas "movimentistas", o que Lefebvre (1974, 1980) - inspirado não só na restritiva acepção democrático-representativa, mas sim em uma significação estética e filosófica mais aberta - denominou "representações do espaço" e "espaços de representação". As representações do espaço se referem aos espaços concebidos, derivados de certos códigos, signos, saberes técnicos. Para Oslender (2000), são os "espaços legíveis" e representações normalizadas que existem nas estruturas estatais, na economia e na sociedade civil. Essa "legibilidade" funciona como uma simplificação do espaço (reduzido a uma superfície transparente), oferecendo uma visão normalizada que nubla as lutas sociais, as ambiguidades e outras formas de ver e imaginar o mundo. Já os espaços de representação seriam os "espaços vividos", que mudam com o tempo, e representam formas de conhecimentos locais menos formais, dinâmicas, simbólicas e saturadas de significados.
No caso brasileiro, o MST é um exemplo paradigmático. Uma das principais características do MST, ao cumprir já vinte e cinco anos, é o processo de reconstrução continuado de suas linhas de atuação, reiventando-se a partir das suas lutas e experiências. Na atualidade, suas demandas vão além da reforma agrária, e seu âmbito de atuação vai além do Estado brasileiro, trafegando entre o local e o global. Suas lutas pela democracia não estão restritas à democratização do uso da terra ou das instituições políticas, mas arraigadas na democratização política e social em um sentido mais amplo. Em primeiro lugar, participa em várias ações coletivas (principalmente ocupações, concentrações e marchas) através das quais interpela o poder político quanto à necessidade de tornar mais operativa a "democracia realmente existente". Em segundo lugar, contribui para alargar o campo comunicativo, com o uso de rádios comunitárias, circulação de jornais, revistas e vários outros projetos "contra-informativos" em parceria com outros atores sociais, diversificando o fluxo da informação controlado pelos meios de comunicação hegemônicos. Em terceiro lugar, o MST contribui para ampliar o espaço participativo não somente através da sua presença na cena política local, nacional e internacional, mas também através de iniciativas paralelas, como a proposta de consultas populares, a exemplo do Plebiscito Popular sobre a estatização da Vale do Rio Doce, em setembro de 2007. Em quarto lugar, o movimento influencia a decisão e a definição de agendas políticas e políticas públicas, como no caso recente do debate público sobre os agrocombustíveis como nova matriz energética. Em todas essas dimensões, o MST contribui para a democratização, pensando a democracia como demanda a partir da exteriorização de suas ações.
No entanto, o MST atua também como "criador" de novos espaços de democracia radical, em seus acampamentos e assentamentos. São espaços de luta, resistência e socialização política, onde o movimento constrói a base de sua política contestatória. São espaços de formação e aprendizagem dialógicas, em um sentido freireano. São espaços de solidariedade e renovação da cultura política: espelhos do plano normativo da democracia pela qual lutam e buscam ampliar. Se analisarmos esses espaços a partir de sua tensão permanente e de contestação com as relações de poder e saber dominantes, e se entendemos a geografia como uma "geo"grafia (como ato de marcar, "grafar", a terra, como propõe Porto-Gonçalves, 2001), pode-se interpretá-los como espaços intrinsecamente ligados ao terreno político e ao processo de criação de um magma de significações (e "representações políticas"), entre as quais se encontra a ressignificação da democracia. Desse modo, um dos principais motivos do "êxito" do MST como movimento social é que ele não se restringiu a lutar pela democracia como proposta, em suas interações políticas, mas buscou criar espaços próprios de exercício da democracia (radical) em suas práticas sociais e espaciais, articulando habilmente ambas as dimensões.
Alguns autores poderiam interpretar essa abordagem como uma espécie de volta ao "basismo". Contudo, a criação de espaços de democracia em um contexto de fortes transformações globais faz com que essas práticas se articulem a partir de uma perspectiva contraditória e renovada para a política radical, baseada, por exemplo, na intensificação dos debates sobre "diferença" e "reconhecimento", uma maior heterogeneidade das demandas, uma revalorização do território, a transnacionalização da política e da ação coletiva e o retorno - ainda que ressignificado - de conceitos-chave, como "desenvolvimento" e "emancipação".
Existe um forte vínculo glocal do efeito democratizador das ações coletivas e práticas contestatórias do MST, que leva a que suas práticas contestatórias locais distem muito da volta a um basismo. Ao articular-se, no plano regional, com a Coordenadora Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) e, num plano internacional, com a Via Campesina, além de tecer várias alianças táticas no cenário internacional,3 os sem-terra trazem, ao debate local e nacional, muitas das discussões e subjetividades vividas num plano internacional e vice-versa, numa retroalimentação que tem suas consequências na construção dos discursos e práticas do movimento. Assim, essa fronteira da institucionalidade também converge com a do Estado-nação, ao limitar a atuação dos atores sociais à participação mais institucional. Um exemplo, na política internacional, poderia ser a análise das formas de participação de algumas organizações sociais em grandes instituições internacionais, e de como dita participação pode contribuir para a democratização de certas estruturas, como nos casos de algumas cúpulas da União Européia ou do Mercosul. Como assinalamos na seção anterior, as formas de participação dos atores sociais são muito mais amplas e variadas. Existem vários espaços próprios de protesto e deliberação (caso dos Fóruns Sociais Mundiais, regionais, nacionais ou locais, mas também de Conferências Internacionais de vários movimentos sociais, como a última da Via Campesina, realizada em outubro de 2008 em Moçambique, que se constituem como instância máxima de deliberação política para o movimento) que permitem experimentar novas formas de entender a democracia, a partir da auto-organização, da autonomia e do transnacionalismo, sendo essa a grande novidade nos dias de hoje.
Em suma, a democracia e os movimentos sociais, analisados da perspectiva da institucionalidade, respondem tanto a uma dinâmica "externa" (que inclui as reivindicações de uma democracia mais social e participativa, vinculadas às práticas institucionais), como "interna" (por cultivarem práticas democráticas vinculadas às sociabilidades e espacialidades). Desse modo, a democracia aparece tanto como pano de fundo das lutas sociais, como também como práticas significantes no plano normativo sobre o que significa a democracia, utilizando, em alguns casos, as próprias práticas do movimento ou, pelo menos, um horizonte de construção dessas práticas.
FRONTEIRA 4: o momento histórico
Finalmente, a perspectiva dominante no debate sobre as relações entre os movimentos sociais e a democracia acabou construindo uma quarta "fronteira", a do momento histórico, ao limitar, em grande medida, o papel democratizante dos movimentos sociais a uma conjuntura histórica específica: a das transições políticas. Desse modo, os processos de transição democrática vividos em vários países latino-americanos, do Sul e Leste da Europa, entre outros, receberam uma atenção especial dos teóricos dos movimentos sociais, que analisaram como os práticas e discursos desses movimentos contribuíram para a passagem de regimes autoritários a regimes democráticos "mais ou menos consolidados" (Ibarra, 2003, p. 2). No caso brasileiro, vários estudos como os de Kowarick (1987), Moisés (1982), Sader (1988), Scherer-Warren e Krischke (1987), entre muitos outros, também abordaram, a partir de diferentes perspectivas, a ação dos movimentos sociais no contexto de transição para a democracia.
De forma paralela, a literatura internacional abordou a relação entre movimentos sociais e democracia a partir de grandes "ciclos de protesto", ferramenta interpretativa proposta por Tilly (1978, 1984) e desenvolvida principalmente por Tarrow (1991, 1998). Esse autor retoma a idéia, já presente em teóricos sociais e da cultura, em historiadores políticos e econômicos, de que sistemas inteiros experimentam mudanças cíclicas, para examinar não tanto a progressão entre os diferentes ciclos, mas sim verificar a estrutura e a dinâmica do próprio ciclo, que seria o que produz os efeitos externos que alimentam e transformam os movimentos. Para Tarrow, um ciclo de protesto é uma fase de intensificação dos conflitos e do enfrentamento entre atores no sistema social, o que inclui uma rápida difusão da ação coletiva dos setores mais mobilizados aos menos mobilizados, um ritmo de inovação acelerado nas formas de confronto, marcos novos ou transformados para a ação coletiva. Trata-se de uma combinação de participação organizada e não organizada e algumas sequências de interação intensificada entre dissidentes e autoridades (Tarrow, 1998, p. 144-150). Assim, esses estudos sobre ciclos de ação coletiva, da mesma forma que aqueles da transição à democracia, têm como eixo analítico períodos de alta agitação política e social, em que a democracia representativa é questionada a partir de intensas lutas sociais.
No entanto, como reivindica Ibarra (2003), são escassos os enfoques que postulam o "papel central" (deveríamos adicionar "contínuo") dos movimentos sociais no jogo democrático. Para além dos valiosos estudos sobre os movimentos sociais em momentos históricos específicos, é necessário esboçar um enfoque multidimensional, em que os movimentos sociais sejam considerados não somente "impulsores" de processos de democratização, mas também "protagonistas" de uma contínua reinvenção da política democrática (Bringel, 2008; Ibarra, 2003). Para levar isso a cabo, é fundamental que nos afastemos do que Marilena Chauí, em prefácio à obra de Eder Sader (1988), denomina "historiografia dos mitos fundadores", que consideraria os movimentos sociais populares das décadas de 1970 e 1980 a origem exclusiva das lutas democráticas em vários países latino-americanos, entre eles o Brasil. Tão importante quanto o cuidado com os "mitos fundadores", é o distanciamento dos movimentos da periodização histórica oficial, em que a democracia apareceria como sinônimo de "processo de redemocratização", nos marcos de uma transição criada a partir de cima. Nesse sentido, os "teóricos da transição", sob uma hegemonia de olhares restritivos da ciência política (onde se destacam os estudos de Linz e Stepan, de 1999, ou a clássica trilogia organizada por O' Donnell, Schmitter e Whitehead, de 1986), limitaram, em grande medida, o estudo da democratização ao âmbito institucional, reduzindo o debate sobre a democracia à sua oposição ao autoritarismo. Eleições livres e periódicas, garantia de direitos civis ou restauração da ação política sem coerção passaram a se constituir em variáveis exclusivas.
A partir da década de 1990, vários enfoques críticos começaram a assinalar os limites da "transitologia" e da "consolidology", localizando o debate sobre democracia e democratização dentro de seu contexto sócio-histórico específico, partindo das transformações na matriz de relações entre Estado, política e sociedade, e rejeitando tanto as análises puramente abstrato-formais como os enfoques reducionistas do liberalismo democrático (Nun, 1987; Garretón, 1995); ou, a partir de prismas mais sociológicos, apontando que a vigência da democracia implica a incorporação de valores democráticos nas práticas quotidianas, nas relações sociais, na cultura política, numa nova subjetividade coletiva (Avritzer, 1996; Moisés, 1995). Apesar da contribuição desses enfoques para se pensar a democratização não como um momento de transição, mas como um processo permanente e inacabado de concretização da soberania popular (Rossiaud; Scherer-Warren, 2000), resta um longo caminho por aprofundar, no estudo da complexa relação entre movimentos sociais e democracia, quando pensamos na abordagem de diferentes momentos históricos, passando, por exemplo, pela recuperação da memória histórica e das lutas democráticas passadas, hoje silenciadas pelo liberalismo democrático e pelos consensos oficiais.
É o que acontece, por exemplo, no caso espanhol. No dia 06 de dezembro de 2008, quando a Constituição espanhola cumpria 30 anos, vários atores sociais questionaram o caráter exemplar da transição, como havia sido (e continua sendo) considerada pelo discurso oficial e pela ciência política hegemônica. De fato, autores espanhóis exportaram para vários países, entre eles o Brasil, a visão de um modelo a seguir. Na convocação da Jornada ¿Transición ejemplar? De la Constitución de 78 a la recuperación de la memoria histórica, realizada em Madri, é possível ler:
Enquanto se celebram trinta anos da aprovação da Constituição de 1978, alguns dos resultados do denominado "consenso" - atitude política que primou no trânsito da ditadura franquista à democracia representativa - começam a ser questionados, abrindo um debate sobre as políticas da memória [...] Uma nova geração de espanhóis começa a questionar a exemplaridade de uns acordos elitistas, vitoriosos para adequar uma economia semiperiférica ao entorno geopolítico ocidental e para ampliar certas liberdades civis e políticas, mas que não frearam as dinâmicas mais depredadoras da ordem socioeconômica capitalista consolidada com o franquismo [...]. Estreitamente relacionada com essa questão aparece o silêncio oficial sobre nosso incômodo e conflituoso passado, que nos obriga a esquecer as lutas que levaram às mudanças durante a II República, a resistência antifascista durante a Guerra Civil e a ampla oposição clandestina anti-franquista, furtando, assim, a narrativa da nossa democracia.4
As transições políticas para a democracia não são momentos históricos tão exemplares, tampouco o único momento em que os movimentos sociais podem atuar, de forma decisiva, na ampliação dos espaços democráticos. A "fronteira" da transição política para a democracia, como "momento histórico referencial", contribuiu para obviar uma série de práticas, momentos históricos e experiências, de intensidade democrática inclusive superior, e que haviam sido violentamente silenciadas pela imposição de regimes autoritários, como no caso da II República espanhola (1931-1939).
De fato, se "cruzarmos" essa fronteira com as duas anteriores, notaremos que o enfoque da "transitología" também deixa de fora toda a atuação situada à margem do Estado-nação e do âmbito institucional, já que não permite analisar as práticas democráticas existentes fora desse modelo concreto de democracia (tanto no âmbito local como no global) nem o papel dos movimentos sociais em sua constante reinvenção. No âmbito internacional, por exemplo, onde não são aplicáveis os esquemas clássicos de um modelo político democrático, e onde não é possível falar de "transições", torna-se ainda mais importante o papel dos movimentos sociais na democratização das relações internacionais. Uma análise orientada pela espacialidade das ações coletivas que repercutem na política democrática permite, pelo contrário, conectar as dimensões locais e globais, dentro e fora tanto do Estado-nação como do marco institucional, analisando-se suas imbricações e contradições.
CONCLUSÕES
Buscou-se, neste artigo, explorar articulações teóricas e experiências democráticas normalmente pouco consideradas nas abordagens sobre as práticas e teorias democráticas contemporâneas. Racionalidades e abordagens muitas vezes ocultas (deliberadamente ou não) pelos saberes convencionais das ciências sociais. Nesse sentido, o artigo considera que um dos maiores desafios teóricos para as teorias democráticas é captar a ampliação de experiências democráticas, que consiste na definição de um horizonte de ampliação dessas experiências que não se confunda com a necessária preservação de certas conquistas democráticas (a que emerge, por exemplo, com a derrota dos regimes autoritários), mas que leve a uma ampliação dessas (tanto em termos políticos como sociais, macro e micro, dentro e fora do sistema político) e ao enquadramento de uma relação multidimensional entre os processos de democratização, os repertórios de ação coletiva e a criação de novas democracias.
Talvez uma das melhores maneiras para superar as fronteiras (e limitações) aqui enunciadas seja justamente "pensar na fronteira", a partir do "pensamento fronteiriço" (border thinking) sugerido por Mignolo (2003). O autor propõe pensar as lutas da periferia do sistema-mundo a partir da "periferia", ou seja, com uma postura epistêmica fronteiriça, que se localizaria na fronteira do sistema moderno-colonial. Ainda que não possamos discutir as polêmicas implicações desse conceito, se interpretado parcialmente como um lugar de enunciação que possa articular conhecimentos subalternizados, concordamos com Florez (2007) que Mignolo acaba oferecendo uma instigante ferramenta para uma interpretação renovada das experiências silenciadas dos movimentos sociais.
Neste artigo, damos um uso mais laxo ao termo "fronteira", ao postular quatro barreiras que devem ser superadas para uma análise mais complexa dos movimentos sociais com a democracia. Nossa intenção não foi a de esgotar as possibilidades teóricas de articulação, mas lançar pistas teóricas para questionar os limites do conhecimento produzido pelos próprios movimentos sociais, oferecendo algumas alternativas disciplinares e epistemológicas para repensar os movimentos sociais como objeto de estudo (fronteira da ciência); as possibilidades de conexão entre espaços do local e do global para além do Estado, a partir de uma espacialização da política e do repertório de ações coletivas (fronteira do Estado-nação); as alternativas, pontos de ruptura e tensão para construir outras democracias, a partir de práticas espaciais radicais e racionalidades alternativas, para além do marco de aprofundamento democrático habitual (fronteira da instituição); e a construção de novas narrativas democráticas que não tomem como ponto de referência histórico exclusivo as transições políticas, senão as inovações democráticas que emergem com a reinvenção contínua da política, respeitando as políticas das memórias (fronteira do momento histórico).
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792008000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
IPesquisador do Departamento de Ciência Política III e do Grupo de Estudos Contemporâneos da América Latina da Universidade Complutense de Madri - Espanha. Facultad de Ciencias Políticas y Sociología. Campus de Somosaguas s/n - 28223. Pozuelo de Alarcón - Madri - Espanha. brenobringel@hotmail.com
IIDoutora em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri. Professora e Pesquisadora do Instituto Universitário de Desenvolvimento e Cooperação (IUDC) da Universidad Complutense de Madrid. Instituto Universitario de Desarrollo Cooperación. Calle Donoso Cortés, 65 - Planta 6 - 28015. Madri - Espanha. enaraem@pdi.ucm.es
INTRODUÇÃO
A democracia não é algo que foi inventado em um lugar determinado e de forma definitiva. É a reinvenção contínua da política. É um processo histórico e conflituoso, sujeito a diferentes processos de ampliação ou retração (Lefort, 1981). Ainda que a democracia seja uma criação histórica do mundo grego-ocidental, isso não significa que pertença a esse mundo como um bem privativo, e muito menos que tenha que se desenvolver seguindo categorias ou modelos pré-definidos. Para Castoriadis (1986), a essência da vida político-democrática da Grécia antiga não é seu "modelo", mas sim seu processo histórico instituinte, ou seja, as atividades e as lutas que se desenvolveram em torno da transformação das instituições, a autoinstituição explícita da pólis como processo permanente. Além disso, como lembra Mignolo (2005), o fato de os gregos terem inventado o pensamento filosófico não quer dizer que tenham inventado "O Pensamento".1 Existem outras epistemologias, outras formas de pensar a democracia, a maioria delas silenciadas e, inclusive, perseguidas pelo liberalismo democrático dominante.
A democracia evoluiu historicamente através de intensas lutas sociais e, com frequência, foi também sacrificada em muitas dessas lutas. As tensões sobre seus rumos e significados estão arraigadas em conflitos históricos, como aqueles que enfrentaram as convicções liberais contra a tirania e os Estados absolutos no século XVI; as lutas pelos direitos humanos no final do século XVIII; as lutas pelo acesso ao sufrágio universal durante o século XIX; ou os conflitos mais contemporâneos, plasmados, em grande medida, nos debates entre as perspectivas tecnocráticas, elitistas, pluralistas e radicais. De uma forma geral, na história de enfrentamentos pelos sentidos da política democrática, subjaz a luta por determinar se a democracia significa, por um lado, algum tipo de poder popular - uma forma de vida em que os cidadãos participam no autogoverno e na autorregulação -, ou se, por outro lado, trata-se simplesmente de uma contribuição à tomada de decisões - um meio de legitimar as decisões dos eleitos, de vez em quando, por votação (os "representantes"), para exercer o poder (Held, 1996, p. 20).
Essas duas formas de pensar a democracia nos levam, em última instância, a disputas incessantes entre uma definição substancial e uma definição procedimental, à pugna entre um plano descritivo (o que é a democracia) e um plano prescritivo (o que deve ser a democracia), que não podem transitar por caminhos separados. Entre o crescente prestígio do ceticismo pós-moderno, a debilidade dos horizontes universalistas e as contradições da globalização, este artigo propõe revisar e ampliar as perspectivas teóricas de análise das lutas dos movimentos sociais que reinventam e ressignificam continuamente a política e a democracia, partindo do suposto de que existe uma série de "fronteiras" que limitaram, e continuam limitando, os estudos e as interações entre movimentos sociais e democracia, quando se analisa, na atualidade, o aprofundamento democrático. Entendemos que nem todos os movimentos sociais promovem a democracia ou contribuem para a democratização, mas há uma tendência contemporânea para que muitos deles incorporem uma dimensão renovada de luta democrática, que se expressa em diferentes paisagens materiais e simbólicas, contribuindo para a reinvenção das práticas e teorias democráticas.
Apesar do notável avanço no debate sobre os limites da democracia representativa, a crise dos partidos políticos e a emergência de novos atores sociais e formas de contestação política, a maioria das abordagens continua circunscrita a dimensões específicas. Neste artigo buscaremos analisar e superar, a partir de um enfoque multidimensional e relacional, algumas dessas dimensões ou "fronteiras", a saber: a fronteira da ciência (incorporando um diálogo interdisciplinar com saberes historicamente marginalizados nas teorias democráticas e dos movimentos sociais); a fronteira do Estado-nação (estabelecendo as conexões entre diferentes escalas, do local ao global, que interferem nos processos de democratização a partir da espacialidade da política); a fronteira institucional (entendendo a política como o espaço da experiência, para pensar também o universo instituinte das práticas democráticas, para além do instituído); e a fronteira do momento histórico (questionando as transições democráticas como referência fundamental para os estudos entre movimentos sociais e democracia).
FRONTEIRA 1: o olhar da ciência
Uma primeira fronteira que limita as possibilidades de interpretação das relações entre os movimentos sociais e a democracia é a da ciência, que se refere, principalmente, às barreiras disciplinares, mas também às epistemológicas e metodológicas.
No que diz respeito aos campos disciplinares, é importante observar que a maioria das análises dos movimentos sociais, e, em particular, aquelas que avaliam sua relação com a democracia, tem como ponto de partida a sociologia, a história e, posteriormente, a ciência política. No entanto, devido à crescente complexidade das sociedades contemporâneas, as ferramentas teórico-metodológicas oferecidas por essas disciplinas não são suficientes para interpretar o mapa atual das ações coletivas e dos movimentos sociais. Dimensões importantes das práticas e teorias democráticas e dos movimentos sociais que emergem no novo século exigem um esforço de superar essa fronteira, incorporando outras disciplinas, outrora marginalizadas, entre elas a geografia (fundamental para entender as relações entre protesto, natureza e território e a construção de espaços de democracia radical baseados nas práticas espaciais dos movimentos) e as relações internacionais (que permitem aprofundar o estudo da dimensão global, das redes e ações coletivas transnacionais, etc.). Observe-se que apostamos não somente por ampliar as possibilidades de novas abordagens disciplinares, mas também por avançar rumo a um diálogo inter e transdisciplinar. As convergências entre as ferramentas críticas oferecidas pela geografia política e o olhar mais ampliado das relações internacionais servirão para ilustrar as possibilidades de articular movimentos sociais e democracia para além dos enfoques disciplinares habituais, em um contexto onde se observam duas tendências que se aprofundam: uma que revitaliza o local, a partir do "lugar", entendido não só como um espaço geográfico concreto, mas como espaço político, como manifestação de experiência e sentido, como os marcos formais e informais dentro dos quais se formam as interações sociais quotidianas (Bringel, 2006; Jelin, 2003); e outra que caminha em direção à globalização e à transnacionalização, aos fenômenos de escala planetária nas comunicações, nos interesses econômicos, aos perigos ambientais, aos acordos e desacordos internacionais (Echart; López; Orozco, 2005).
Dentro da teoria social ocidental, houve uma constante marginalização do "lugar", o que acarretou muitas consequências na nossa compreensão da cultura, do conhecimento, da natureza e da economia, nublando formas subalternizadas de pensamento, organização e modalidades locais e regionais de configurar o mundo (Escobar, 2005). Contudo, o "lugar" adquiriu uma renovada visibilidade na medida em que a globalização, em seus movimentos contraditórios, deixou mais à vista lugares antes ocultos. Como afirma Dirlik,
... os lugares oferecem não apenas uma vantagem para uma crítica fundamental do globalismo, mas também locações para novos tipos de atividades políticas radicais que reafirmam as prioridades da vida cotidiana contra o desenvolvimento abstrato da modernidade capitalista (1999, p. 40).
A geografia crítica, dialogando com outros campos como a antropologia ou a ecologia política, cumpre um papel fundamental nessa nova interpretação da política do lugar, que é visto não como um cenário estático, mas influenciado por relações específicas de classe, gênero, etnia, raça, onde se manifesta um novo utopismo de caráter explicitamente espaço-temporal (Harvey, 1989; Massey, 1994); não se trata de um espaço como dado contextual, mas de um espaço criado da organização e das produções sociais, como espacialidade de base social (Soja, 1993); como um campo político e ideológico, aberto e híbrido, sempre provisório, onde se expressam as relações sociais e de poder, mas também onde se reage contra elas (Lefebvre, 1970).
Revitaliza-se o pensamento de Lefebvre e, em particular, sua concepção da produção do espaço como possibilidade privilegiada de exploração de estratégias alternativas e emancipatórias, em um contexto onde a tendência é que os lugares se unam verticalmente (por exemplo, através de créditos internacionais cuja utilização está subordinada aos mandatos do capital). Porém os lugares também podem se unir horizontalmente, resistindo e reconstruindo uma base de vida comum (Santos, 2002). Nesse sentido, a espacialização das ações coletivas pode ser uma importante variável para se analisar a democratização, já que permite ampliar o seu estudo a práticas espaciais localizadas nos âmbitos locais, regionais, nacionais e globais, e não somente a territorialidades circunscritas à institucionalidade do Estado-nação. Para Slater (1998, p. 47; 2000, p. 529), ao viver uma era marcada pela intensificação e aceleração das relações através do espaço, aquelas relações que não se limitam necessariamente a nenhuma esfera (como a democratização) devem ser interpretadas como parte de um "interior" e um "exterior" entrelaçados, de tal forma que o global, o regional e o local podem ser interpretados como profundamente imbricados com a noção de "fronteirização" do mundo, sublinhando a fragilidade das ordens espaciais estabelecidas.
Como consequência disso, não é possível negar a dimensão global no estudo dos movimentos sociais contemporâneos e sua relação com a democracia, entre outras razões, pelos impactos da globalização; o afastamento dos centros de tomada de decisões e seu traslado a âmbitos globais; a necessidade de identificar esses novos interlocutores políticos e responsáveis no âmbito internacional a quem dirigir as demandas; os limites do aprofundamento da democracia no âmbito estatal, que levam a uma exigência de maior democratização também das relações internacionais; a crescente organização e atuação transnacional dos próprios movimentos sociais, etc. Desse modo, o global aparece como uma variável fundamental para o estudo dos movimentos sociais, e as relações internacionais se configuram como um novo campo de análise para levar a cabo essa tarefa.
No entanto, apesar da importância do estudo dos movimentos sociais a partir das relações internacionais, as teorias clássicas dessa área de conhecimento não incorporaram os movimentos sociais globais como um ator. Para a compreensão do atual sistema internacional, torna-se, então, necessária uma revisão dos conceitos clássicos utilizados para definir essa realidade, em particular o de "ator internacional". A redução das relações internacionais às relações interestatais deixa de fora um número considerável de forças que atuam e influem nesse âmbito, e, entre essas forças, os movimentos sociais adquirem uma relevância cada vez maior, potencializando o debate e incidindo nas estratégias dos demais atores (Echart, 2008). Desse modo, as relações internacionais, apesar da ortodoxia ainda predominante, apresentam-se como um campo fértil, já que pode oferecer um enfoque mais integral que o de outras disciplinas, oferecendo uma visão a partir de um ângulo internacionalista. Nesse sentido, sem negar a importância dos estudos centralizados no local ou no estatal, é preciso oferecer perspectivas analíticas mais amplas. As relações internacionais oferecem uma perspectiva holística, sem que isso implique desconsiderar teorias ou aportes de outras disciplinas. O fator determinante para a escolha de uma disciplina não é tanto o objeto de estudo, mas sim a perspectiva com que se pretende analisar, nesse caso a das relações internacionais.
Um enfoque integrador entre as perspectivas críticas da geografia e das relações internacionais permite, assim, uma resistência a um puro estadocentrismo e a articulação de alternativas para aquém e para além desse âmbito, considerando o sentido global do lugar, já que, como afirmara Milton Santos (2002, p. 161), "hoje, certamente mais importante que a consciência do lugar, é a consciência do mundo, obtida através do lugar". Insere também uma imaginação geográfica que intervém na política internacional, ou o que Agnew (2006) considera uma das tendências mais relevantes de convergência entre alguns geógrafos e teóricos das relações internacionais: a reorientação da discussão sobre a espacialidade da política mundial, distanciando-se de uma divisão entre território versus redes e (ou) fluxos, para considerar sua influência recíproca. No âmbito concreto do estudo dos movimentos sociais e a democracia, a partir dessa influência mútua, é possível tecer várias articulações como aquela proposta num artigo recente por Conway (2008), em que a autora estuda a Marcha Mundial das Mulheres, a partir de ferramentas teóricas provenientes das relações internacionais (tomando como eixo as redes transnacionais de movimentos de mulheres) e da geografia (as práticas espaciais dessas redes). Uma das idéias-chave que subjaz é que as separações rígidas entre o interior e o exterior, as forças de abaixo e de acima, impedem ver a imbricação entre as diferentes escalas, nublando as forças democratizantes translocais: é difícil falar de uma "globalização a partir de cima", sem notar seus efeitos locais, da mesma forma que seria um erro falar do papel de democratização dos movimentos sociais numa esfera global, sem considerar suas interações com o local.
No entanto, além de superar a divisão disciplinar, é preciso também superar uma fronteira mais ampliada que engloba o próprio sentido do estudo, a própria visão de ciência, ou do científico, no desafio de estudar os movimentos sociais: os pressupostos epistemológicos de onde partem os processos de pesquisa sobre os movimentos sociais. Esses pressupostos epistemológicos incidem no desenvolvimento de uma pesquisa, na medida em que há diferentes formas de abordar e conhecer o mundo. Alguns desses pressupostos fazem referência, por exemplo, ao problema da influência dos valores, ao problema ontológico da relação entre ação e estrutura, ou, ainda, ao problema da dicotomia entre explicação e compreensão na analise das variáveis. Nesse sentido, o problema dos valores, amplamente debatido nas ciências sociais (Weber, 1978), começa a ser superado. Diante do positivismo, reconhece-se a construção social do conhecimento e a consequente impossibilidade de uma ciência neutral, desprovida de valores, onde o objeto de estudo pudesse permanecer absolutamente desvinculado do sujeito que observa a partir de uma percepção inócua (Linklater, 1996). Essa perspectiva analítica vem permitindo uma série de novos estudos sobre movimentos sociais realizados a partir de uma perspectiva militante ou ativista. No que se refere ao problema ontológico, relacionado à análise do objeto de estudo, frente à dicotomia entre a dimensão dos atores (baseada num individualismo metodológico: teorias da mobilização de recursos, a escolha racional ou a ação coletiva) e a do contexto (que determinaria a atuação dos movimentos sociais, oferecendo oportunidades ou constrições: teorias sobre o comportamento coletivo, a estrutura de oportunidade política, os ciclos de protesto, etc.), observam-se avanços no sentido de uma superação na tradição crítica dialética (Ritzer, 1993): as estruturas podem condicionar, mas não determinar a ação, que pode ocorrer, ou não, dependendo dos recursos (materiais e simbólicos), da capacidade mobilização, da existência de uma identidade coletiva, etc.
Articulados a essas preocupações, vários autores, na última década - considerando a ciência como um dos principais motores da racionalidade moderna ocidental -, reivindicam a necessidade de se considerar a existência de outras racionalidades alternativas a partir de "experiências silenciadas ou desperdiçadas", de uma "epistemologia do Sul" (Santos, 2006). Ou da "descolonização do pensamento" de regiões como a América Latina que, com o fim do colonialismo, permaneceram expostas à colonialidade do poder - colonialidade da política e da economia -, do saber - em termos epistêmicos, filosóficos e científicos - e do ser - entre outras coisas, da sexualidade e das subjetividades (vide os autores do projeto modernidade e colonialidade como Dussel, Escobar, Mignolo, Quijano e outros). Trata-se de uma sugestiva proposta para pensar o estudo dos movimentos sociais e suas experiências democráticas, cujas práticas nem sempre foram "traduzidas" adequadamente.2
Isso nos leva, finalmente, a um último problema inter-relacionado, o metodológico, que se refere ao dilema entre um enfoque explicativo ou compreensivo do objeto de estudo (Freund, 1993). Se partirmos de uma hipótese explicativa, o objetivo principal seria verificar empiricamente certas dimensões, ou seja, os fatos. Contudo, essa perspectiva assume o risco de limitar os movimentos sociais à sua dimensão de mobilização, às suas manifestações públicas ou ações coletivas desenvolvidas, à parte visível, sem ter em conta o sentido dessas atuações. Como afirmam Clemens e Hughes (2002, p. 212), "... em várias de suas dimensões, os movimentos sociais são como icebergs, com muitas de suas ações ocorrendo abaixo da superfície visível". Nesse sentido, a partir de uma hipótese compreensiva, é possível visualizar as dimensões mais esquivas à verificação empírica, mas que são fundamentais para a compreensão do objeto de estudo: intuições, práticas internas, convicções, subjetividades coletivas. Poder-se-iam analisar, assim, o sentido da mobilização, suas simbologias, práticas internas e sua incidência, nesse caso, na democratização.
Uma análise completa sobre os movimentos sociais supõe incluir essas duas hipóteses para abordar a realidade social como uma totalidade, manifestando seus antagonismos estruturais e suas contradições. No campo dos movimentos sociais, notam-se muitos avanços nessa linha analítica, como o que Klandermans e Staggenborgh (2002) consideram uma ausência de um dogmatismo metodológico nesse campo, que contribui para a realização de pesquisas empíricas mais ricas e inovações metodológicas. De fato, os estudiosos dos movimentos sociais vêm realizando tanto estudos quantitativos como qualitativos, utilizando entrevistas em profundidade e enquetes, estudos de arquivos e observação participante, estudos de casos singulares e desenhos comparativos bastante complexos, simulacros matemáticos e análise de eventos de protesto, estudos ecologistas de campos multiorganizacionais ou narrações de histórias de vida, análises de discurso e estudos de narrativas; incorporando ferramentas e técnicas de diversos campos do saber, o que contribui para a superação das fronteiras disciplinares.
Esses avanços analíticos, em suma, fazem emergir um vasto campo de possibilidades, caso sejam ampliados os olhares científicos, que podem enriquecer o entendimento das dinâmicas dos movimentos sociais e suas relações com a democracia ou democratização.
FRONTEIRA 2: o Estado-Nação
A dupla tendência de globalização e transnacionalização, por um lado, e de revitalização do "lugar", por outro, assinalada anteriormente, supõe um importante ponto de inflexão e ruptura tanto para as teorias das ações coletivas como para as teorias democráticas. No que se refere às teorias das ações coletivas e dos movimentos sociais, a partir dos estudos de diferentes escolas que emergiram principalmente a partir da década de 1960, o Estado-nação se constituiu como o marco interpretativo e articulatório central da ação coletiva. Os teóricos políticos da democracia também se centraram em analisar a democracia baseados na concepção de uma "democracia territorial", sustentada por uma teoria política intra-Estado, que tendeu a opor as "questões internas" (como direitos, justiça, comunidade, obrigação, identidade e legitimidade) às "questões externas" (como segurança, guerra, violência, cooperação, etc.), que seriam mais próprias de uma teoria política inter-Estados (Connolly, 2002). Dentro dessa lógica, como lembra Slater,
... os movimentos sociais estão ligados ao domínio político mediante seu impacto sobre as políticas públicas ou sobre as prioridades dos partidos políticos, mas qualquer conexão com a política global é feita com a mediação do sistema político interno (2000, p. 508).
Contudo, durante a última década, houve um avanço fundamental tanto dentro das teorias das ações coletivas e dos movimentos sociais como das teorias democráticas, que acompanharam a crescente complexidade das sociedades contemporâneas com os processos de globalização, buscando superar as fronteiras do Estado-nação de forma a se pensarem as relações entre os movimentos sociais e a democracia. Porém, é importante matizar que, da mesma forma que antes nem tudo era estatizado, nem tudo o que emerge é transnacionalizado. Assim, o Estado continua sendo uma referência fundamental nas relações entre movimentos sociais e democracia, já que, entre outras funções, ele detém o monopólio legítimo da violência (com repercussão direta na sua função repressora sobre os movimentos sociais) e continua sendo um importante interlocutor político e receptor de muitas demandas (Bringel; Falero, 2008; Echart; López; Orozco, 2005).
No caso dos "teóricos dos movimentos sociais", estudos como os de Keck e Sikkink (1997), Smith, Chatfield e Pagnucco (1997), Della Porta, Kriesi e Rucht (1999) ou, mais recentemente, de Della Porta e Tarrow (2005), Tarrow (2005) e Echart (2008), lançaram discussões pioneiras sobre um novo ativismo sem fronteiras. Por outro lado, dentro dos "teóricos da democracia", autores como Anderson (2002), Connolly (2002), Held (1995), Kaldor (2005) ou McGrew (1997) também advertiram sobre esse processo de abertura, a partir de estudos inovadores que levaram à proposição de conceitos como "democracia cosmopolita" (Held), "democracia transnacional" (Anderson) ou "sociedade civil global" (Kaldor). Apesar do caráter eminentemente normativo dessas propostas, é interessante notar como, nessas construções teóricas, converge a idéia de que forças globais rompem com os pressupostos fundamentais de uma teoria democrática hegemônica, restritas ao marco liberal-representativo, aos Estados soberanos, à integridade e jurisdição territorial e às comunidades nacionais independentes.
Uma aposta complementar, que une perspectivas da geografia e das relações internacionais, é a de analisar a espacialização da democracia e da democratização e a conexão entre descentralização governamental e democracia territorial (Slater, 1998, 2000), assim como aprofundar a articulação entre os aspectos políticos das práticas espaciais e as abordagens pós-estruturalistas das teorias democráticas, em particular aquelas ligadas à política radical. Até que ponto uma sensibilidade espacial, em constante crescimento nas ciências sociais e humanas, contribuiria para repensar a questão democrática e suas conexões glocais? Essa é uma questão aberta que aparecerá durante várias passagens deste artigo.
Frente à hegemonia estadocêntrica dos estudos sobre as relações entre movimentos sociais e democracia, é fundamental introduzir a dimensão global, com suas relações e implicações com o local, por três razões principais: em primeiro lugar, no atual contexto de globalização, muitas das decisões políticas que afetam a vida quotidiana das pessoas já não são tomadas no âmbito do Estado-nação, mas em organizações internacionais. Isso torna necessária a identificação de novos interlocutores políticos no âmbito internacional, a quem dirigir certas demandas. Em segundo lugar, e em consonância com isso, os movimentos sociais também começam a atuar no plano inter e transnacional, transcendendo as fronteiras estatais. Assim, os movimentos sociais, mesmo tendo bases estatais, incluem a dimensão internacional (por exemplo, em lutas contra a aplicação de políticas econômicas ou comerciais impostas por algumas organizações internacionais) e criam redes transnacionais com outros movimentos afins (caso do movimento antiglobalização, mas também de redes de camponeses, mulheres, ambientalistas, etc.) para aparecer com maior força no cenário internacional. Em terceiro lugar, e como consequência dos dois pontos anteriores, o "global" converte-se em uma variável fundamental quando analisamos os movimentos sociais contemporâneos, ao mesmo tempo em que "o lugar" também se revitaliza. A frase "atuar localmente e resistir globalmente" é o maior símbolo dessa tendência, incorporada ao discurso e à prática de muitos movimentos sociais contemporâneos.
Desse modo, a análise da relação entre movimentos sociais e democracia, tendo em conta a "fronteira do Estado-nação", implica pensar como os movimentos sociais se organizam para atuar no cenário internacional, quais são as atividades e vias de participação abertas nesse contexto, qual é o seu novo repertório de ações coletivas e, ainda, quais são as influências ou impactos desses movimentos sociais nas relações internacionais, e, em concreto, na democratização dessas relações. Nesse sentido, é fundamental adaptar a esse contexto algumas das variáveis e marcos de referências que são utilizados para se estudarem os movimentos sociais no âmbito nacional. A união em movimentos e redes transnacionais implica mudanças em relação à sua "estrutura clássica": as relações sociais que constroem a ação coletiva no cenário internacional são mais informais e descentralizadas para que possa ser incluída toda a heterogeneidade derivada da conexão de diferentes lutas sociais. Nesse ponto, é notável a importância de adaptação da dimensão local para a ação coletiva transnacional, que varia desde repertórios mais clássicos e (ou) informais (como manifestações ou campanhas de denúncia e sensibilização) à criação de marcos mais estruturados (como os espaços de encontro próprios - Fórum Social Mundial e outros - e a participação em encontros e fóruns oficiais). Por outro lado, também mudam as estruturas de oportunidades políticas, que Tarrow (1998) define como aquelas dimensões do entorno político que proporcionam incentivos para a ação coletiva, afetando suas experiências de êxito ou fracasso. Para autores como Smith, Chatfield e Pagnucco (1997) ou Kaldor (2005), é justamente a existência de estruturas nacionais relativamente rígidas, ou com pouco poder de decisão real, o que leva as forças sociais a dirigirem-se ao cenário internacional, onde podem ter maior incidência e onde começam a abrir canais de participação cidadã.
De acordo com Tarrow (2005), um dos grandes êxitos dos movimentos sociais transnacionais é a definição de seus marcos interpretativos, que cumprem três funções básicas: explicativa, de articulação e de mobilização. Isso é possível pela criação de "marcos multi-temáticos" (multi-issue frames), que não estão focalizados em um único tema ou ideia, devido à existência de objetivos comuns oferecidos pelo internacionalismo (alvos como o FMI, a OMC, a União Européia ou os Estados Unidos) e que condensam numa única imagem, uma ampla gama de objetivos. Isso permite o surgimento de "identidades coletivas tolerantes", que juntam as diferenças através da união frente à luta contra a globalização, fonte de problemas globais, mas com impactos locais, o que amplia, ainda mais, a conexão glocal. Com isso, consegue-se estender ao imaginário coletivo uma explicação dos efeitos negativos da globalização, juntamente com a identificação de responsáveis na cena internacional e com certa legitimação social dos protestos, que impulsionam e ampliam a mobilização com a ruptura discursiva de um "outro mundo é possível".
Nesse sentido, os movimentos sociais, em suas lutas pela democratização das relações internacionais, contribuem com várias atividades e recursos (Smith, Chatfield; Pagnucco, 1997) imbricados entre si, entre os quais podemos identificar: a criação de redes transnacionais (que ajudam a criar vínculos entre diferentes realidades sociais e a mobilizar recursos materiais e simbólicos no cenário internacional); a difusão de informação e sensibilização cidadã (ao incrementar o pluralismo informativo, os movimentos sociais contribuem para a compreensão dos problemas globais e, em última instância, para o aprofundamento democrático); a participação nas arenas políticas multilaterais (através de estratégias de participação e incidência, que vão desde uma "participação por convite" em espaços institucionalizados - são os "insiders" (Keck; Sikkink, 1997; Tarrow, 2005), que atuam a partir de dentro, para contribuir para a democratização do sistema político -, a uma "participação por irrupção" em espaços alternativos - os "outsiders", que atuam a partir de fora, desafiando as políticas das instituições internacionais, com uma participação política mais rupturista); o alargamento do espaço público (com o amplo leque de participação citado, os movimentos sociais contribuem para ampliar a esfera pública: conseguem, com isso, uma maior transparência e accountability, anteriormente escassas no cenário internacional, mudanças discursivas e a abertura de espaços para uma "participação por convite"); e a incorporação de temas sociais no debate internacional (na pugna pela definição do atual marco de discussão global, inserem continuamente novas sensibilidades: os aspectos de gênero, meio ambiente, direitos humanos, democracia, etc.).
No entanto, essas diferentes reivindicações não se limitam à sua incorporação, muitas vezes desvirtuada, nas agendas, devido a uma reapropriação discursiva das elites, mas levam também à proliferação de um imaginário geral de justiça social e de democracia participativa, que serve como base para uma nova consciência global. Os movimentos sociais globais cumprem, assim, nas relações internacionais, uma função de controle cidadão e de democratização, fatores que podem mudar a configuração das relações internacionais.
Ainda assim, se espacializarmos o repertório de ações coletivas dos movimentos sociais para além do âmbito estatal, é possível também analisar as repercussões dos projetos globais nas histórias locais (Mignolo, 2003). Inclusive, nos casos das redes e movimentos sociais transnacionais, o local constitui-se em base material e de socialização. É interessante notar o que muitos autores (na sua maioria, europeus e norte-americanos) consideram já uma "crise" ou o "fim" do movimento antiglobalização, devido à perda de visibilidade de seu conjunto de protestos, com o "ciclo de contra-cúpulas" (iniciado em Seattle em 1999 e que teve seu momento auge em 2001 em Gênova) e o início de certo esgotamento de suas propostas (com as críticas sobre a capacidade articuladora de espaços como o FSM). Trata-se, na verdade, de um "recolhimento" ao local de um repertório transnacional que antes tinha maior intensidade e visibilidade no cenário internacional. Nesse sentido, o movimento antiglobalização vive um momento de redefinição, com uma revalorização do lugar, um maior protagonismo das redes sociais do Sul global - principalmente através do ativismo agrário e indígena -, um refluxo do impacto nos meios de comunicação convencionais e uma crescente importância de determinados eixos temáticos, como as migrações ou a soberania alimentar (Bringel; Echart; López, 2008). Observa-se, assim, que certas demandas, como a soberania alimentar - que surgiu em 1995, no seio da Via Campesina, como alternativa à proposta de segurança alimentar discutida pela FAO -, continuam sendo demandadas globalmente, mas são construídas localmente, a partir das espacialidades dos movimentos sociais que conformam essa rede, como, por exemplo, o MST no Brasil, a Federação Bartolina Sisa na Bolívia, ou a União Nacional de Camponeses (UNAC) em Moçambique, enfrentando-se assim as especificidades da construção dessa demanda (ou de sua "des-construção local") nos diferentes contextos locais, nacionais e regionais.
FRONTEIRA 3: a institucionalidade
Na maioria das análises sobre as relações entre os movimentos sociais e a democracia, outra fronteira claramente identificável, além das duas anteriores, é dada pela institucionalidade. Na sua relação com a democracia, os movimentos sociais respondem a uma dinâmica complementar, de dupla direção: a dialética entre o âmbito do instituído e o âmbito do instituinte. No âmbito do instituído, o eixo analítico central é o impacto da atuação dos movimentos sociais nas "democracias realmente existentes" (antes citávamos alguns deles, como a ampliação do pluralismo informativo, a ampliação dos espaços de participação institucional, a inserção de novos temas nas agendas políticas, a incidência nas políticas públicas, etc.). Por outro lado, no âmbito do instituinte, o eixo fundamental constitui-se no potencial de criação de novas experiências democráticas, que vão além do âmbito do instituído, tensionando com ele (é o caso dos espaços de democracia radical, que desenvolveremos logo a seguir).
Há uma tendência, nos estudos contemporâneos sobre movimentos sociais e democracia, a priorizar o âmbito do instituído, as inovações institucionais e a participação de atores sociais em novos espaços deliberativos. Isso é especialmente válido no caso brasileiro, frente à emergência de novos atores sociais nos espaços institucionais participativos, como o orçamento participativo e os conselhos gestores de políticas públicas, os quais, muitas vezes, nublam a dimensão mais autônoma dos movimentos sociais e (ou) seu caráter instituinte. Ainda assim, boa parte desses estudos considera que essas novas práticas participativas e os novos atores sociais "substituem" os enfoques e abordagens anteriores sobre a ação coletiva no país, sobretudo aqueles mais difundidos no contexto de transição política. Assumir essa assertiva supõe olhar somente um lado da fronteira da institucionalidade - o lado do instituído -, analisando um determinado tipo de participação - a institucionalizada -, e deixando de lado outras perspectivas mais rupturistas, de caráter instituinte, criadoras de novos marcos democráticos, que estão intrinsecamente ligadas e em constante tensão.
A fronteira da institucionalidade está ligada aos diferentes locus de enunciação e de criação de novas experiências democráticas. Ainda que, em muitos casos, seja difícil traçar uma divisão rígida entre o instituído e o instituinte, é fundamental considerar a democracia para além da esfera vinculada às instituições, a um regime político liberal, baseado na realização de eleições livres, na concorrência entre partidos, etc. A democracia significa também a possibilidade de criar novas determinações, através de um imaginário criador, instituinte. Para Castoriadis (2007), a democracia é uma autoinstituição explícita, um processo de autonomia que não se esgota no instituído. Consequentemente, a democratização não pode ser entendida somente na sua dimensão política, vinculada a um lado da fronteira, como aqueles avanços dentro da esfera do sistema político que permitem, por exemplo, um aperfeiçoamento no funcionamento dos mecanismos institucionais. A construção de instituições político-democráticas sólidas ou a realização de eleições são requisitos necessários, porém não exclusivos nem suficientes da democratização, que significa também a busca da igualdade nos grupos de status, um processo imbuído nas relações sociais, nas ações coletivas e na cultura política.
É interessante observar que autores clássicos, como Alain Touraine e Charles Tilly, que teorizaram sobre os movimentos sociais desde os anos 1960, passaram a incorporar, de forma crescente, aos seus estudos a questão democrática face às ações coletivas, nem sempre pensando os limites da fronteira da institucionalidade. No caso de Tilly, em obras como Contention and Democracy in Europe, 1650-2000 (2004), Trust and Rule (2005) e, a mais recente, Democracy (2007), subjaz a preocupação de explicar como as lutas sociais afetam os processos de democratização através de um variado repertório de ação coletiva. Partindo de idéias-chave desenvolvidas na escola norte-americana, como "interesses", "repertórios" e "oportunidades", Tilly relaciona os movimentos sociais com os "processos políticos", chegando à conclusão de que as ações dos movimentos sociais favoreceram historicamente, tanto em termos quantitativos como qualitativos, os processos de democratização (o que seria verificável em determinadas conjunturas históricas). Por outro lado os processos de democratização também contribuiriam para o desenvolvimento dos movimentos sociais. Analisando as condições sob as quais os movimentos sociais contribuiriam para a promoção de democracia (Tilly, 2003), esse autor argumenta que não há condições unidirecionais e que o processo depende de um amplo campo de tensões e alianças dos movimentos sociais com as elites e outros atores políticos.
Ainda que possamos estabelecer certos planos de conexão, o enfoque que Alain Touraine propõe para pensar os movimentos sociais e a democracia dista bastante daquele de Tilly. Enquanto a escola norte-americana acabou consolidando um enfoque mais "institucionalista", centrado nas estruturas das organizações dos sistemas sociopolítico e econômico, as abordagens provenientes da Europa transitaram por terrenos de caráter mais "autonomista", revisando o marxismo e buscando explicações mais conjunturais, localizadas no âmbito político e nos microprocessos da vida quotidiana (Gohn, 2006, 2008; Neveu, 1996). Essas diferentes concepções repercutem sobre como cada um desses autores delimita a discussão sobre democracia e democratização, e o papel que dão aos movimentos sociais, nesses processos. Se Tilly se preocupa com uma análise mais macro, de cunho histórico-sociológico, buscando os motivos pelos quais os atores sociais se mobilizam, as alianças tecidas e seus impactos nos sistemas políticos, Touraine lança um enfoque mais endógeno, buscando entender a dinâmica de um determinado processo social que conta com a presença dos movimentos. Enquanto Tilly está mais preocupado em avaliar como a atuação dos movimentos sociais contribui para a democratização política (e vice-versa), Touraine prefere analisar a democratização social a partir da ação dos movimentos sociais. Da mesma forma que Tilly (2007), Touraine (1994) também dedicou um livro inteiro sobre a questão democrática e suas relações com os sujeitos sociais. Para Touraine, o sujeito e a democracia são forças inseparáveis de mediação na sociedade, e os movimentos sociais têm um papel central na construção democrática, através da defesa de seus interesses coletivos, mas isso vai além das mobilizações coletivas de atores sociais, já que são expressões de poder dentro da sociedade civil. Para Touraine (1997), o social não pode estar subordinado ao político na aspiração do aprofundamento democrático, já que, quanto mais um poder político domina um movimento social, mais difícil é o caminho da construção de uma sociedade democrática.
A interpretação crítica e o diálogo entre algumas de suas obras conduzem a pensar uma dupla face da democracia, a partir de suas relações com os movimentos sociais: de um lado, a democracia como demanda e, de outro, a democracia como criação social. A primeira baseia-se numa perspectiva exógena, baseada nas ações coletivas que estão orientadas para incluir novos conteúdos e dimensões para a democratização política. A segunda privilegia uma perspectiva mais endógena - e mais abandonada pelos teóricos dos movimentos sociais e da democracia -, cujo epicentro são as práticas quotidianas dos atores sociais, sua composição e organização interna, a horizontalidade nos espaços deliberativos, a igualdade de gênero, etc. Mais que ações coletivas que buscam incidir na democratização política, são ações e práticas dirigidas à democratização social, através da base educativa, cultural e social interna desses sujeitos participantes.
A democracia como demanda considera um amplo leque de possibilidades para precisar as vias e em que medida os movimentos sociais contribuem para melhorar o funcionamento das "democracias realmente existentes". Por exemplo, em que medida os movimentos sociais podem alargar o campo comunicativo, participativo ou das políticas públicas (Barcena; Ibarra; Zubiaga, 1998). Mas, além do marco das "democracias realmente existentes", é necessário observar em que medida os movimentos sociais adotam referências, geram discursos e criam práticas espaciais de resistência, nas quais a democracia aparece como uma criação coletiva, como a instituição de um novo imaginário, de tensão permanente entre projetos e territorialidades. Trata-se de captar como as práticas contestatórias dos movimentos sociais (ligadas ao espaço que configuram os âmbitos de atividade dos sujeitos sociais, os quais estão intimamente vinculados com as experiências das vidas quotidianas) constituem espaços de democracia radical, analisando as temporalidades e dinâmicas internas da mobilização social, em vez de sua interação com o sistema político.
Aqui podemos exemplificar com as práticas espaciais desenvolvidas pelos zapatistas mexicanos, os movimentos do El Alto boliviano, os acampamentos e assentamentos do MST do Brasil, as organizações dos bairros periféricos de Santiago do Chile, as fábricas recuperadas da Argentina ou as comunidades do Pacífico colombiano (Zibechi, 2007). São só alguns dos vários movimentos sociais que vêm construindo, na América Latina (com experiências efêmeras ou mais duradouras), contrapoderes e espaços de democracia radical, que desafiam, através do conflito, os poderes instituídos, demonstrando que um poder democrático não se inventa somente a partir dos poderes instituídos, mas também contra e em tensão permanente com eles.
Outra questão importante, que se relaciona com a dinâmica dos limites das fronteiras da institucionalidade, refere-se às representações políticas. Vários estudos da ciência política contemporânea vêm insistindo sobre os déficits da representação política, na distância entre representantes e representados, na criação de mecanismos para suprir ou harmonizar essa convivência, por exemplo, a partir do controle dos representantes. A maioria desses enfoques tende a incorporar uma visão entre representante e representado, baseada no âmbito do instituído. No entanto, se recolocamos a questão da representação da perspectiva dos movimentos instituintes, a noção de "representação política" se torna mais ampliada, associada a uma semântica de "representações" (também políticas) vinculadas às dinâmicas "movimentistas", o que Lefebvre (1974, 1980) - inspirado não só na restritiva acepção democrático-representativa, mas sim em uma significação estética e filosófica mais aberta - denominou "representações do espaço" e "espaços de representação". As representações do espaço se referem aos espaços concebidos, derivados de certos códigos, signos, saberes técnicos. Para Oslender (2000), são os "espaços legíveis" e representações normalizadas que existem nas estruturas estatais, na economia e na sociedade civil. Essa "legibilidade" funciona como uma simplificação do espaço (reduzido a uma superfície transparente), oferecendo uma visão normalizada que nubla as lutas sociais, as ambiguidades e outras formas de ver e imaginar o mundo. Já os espaços de representação seriam os "espaços vividos", que mudam com o tempo, e representam formas de conhecimentos locais menos formais, dinâmicas, simbólicas e saturadas de significados.
No caso brasileiro, o MST é um exemplo paradigmático. Uma das principais características do MST, ao cumprir já vinte e cinco anos, é o processo de reconstrução continuado de suas linhas de atuação, reiventando-se a partir das suas lutas e experiências. Na atualidade, suas demandas vão além da reforma agrária, e seu âmbito de atuação vai além do Estado brasileiro, trafegando entre o local e o global. Suas lutas pela democracia não estão restritas à democratização do uso da terra ou das instituições políticas, mas arraigadas na democratização política e social em um sentido mais amplo. Em primeiro lugar, participa em várias ações coletivas (principalmente ocupações, concentrações e marchas) através das quais interpela o poder político quanto à necessidade de tornar mais operativa a "democracia realmente existente". Em segundo lugar, contribui para alargar o campo comunicativo, com o uso de rádios comunitárias, circulação de jornais, revistas e vários outros projetos "contra-informativos" em parceria com outros atores sociais, diversificando o fluxo da informação controlado pelos meios de comunicação hegemônicos. Em terceiro lugar, o MST contribui para ampliar o espaço participativo não somente através da sua presença na cena política local, nacional e internacional, mas também através de iniciativas paralelas, como a proposta de consultas populares, a exemplo do Plebiscito Popular sobre a estatização da Vale do Rio Doce, em setembro de 2007. Em quarto lugar, o movimento influencia a decisão e a definição de agendas políticas e políticas públicas, como no caso recente do debate público sobre os agrocombustíveis como nova matriz energética. Em todas essas dimensões, o MST contribui para a democratização, pensando a democracia como demanda a partir da exteriorização de suas ações.
No entanto, o MST atua também como "criador" de novos espaços de democracia radical, em seus acampamentos e assentamentos. São espaços de luta, resistência e socialização política, onde o movimento constrói a base de sua política contestatória. São espaços de formação e aprendizagem dialógicas, em um sentido freireano. São espaços de solidariedade e renovação da cultura política: espelhos do plano normativo da democracia pela qual lutam e buscam ampliar. Se analisarmos esses espaços a partir de sua tensão permanente e de contestação com as relações de poder e saber dominantes, e se entendemos a geografia como uma "geo"grafia (como ato de marcar, "grafar", a terra, como propõe Porto-Gonçalves, 2001), pode-se interpretá-los como espaços intrinsecamente ligados ao terreno político e ao processo de criação de um magma de significações (e "representações políticas"), entre as quais se encontra a ressignificação da democracia. Desse modo, um dos principais motivos do "êxito" do MST como movimento social é que ele não se restringiu a lutar pela democracia como proposta, em suas interações políticas, mas buscou criar espaços próprios de exercício da democracia (radical) em suas práticas sociais e espaciais, articulando habilmente ambas as dimensões.
Alguns autores poderiam interpretar essa abordagem como uma espécie de volta ao "basismo". Contudo, a criação de espaços de democracia em um contexto de fortes transformações globais faz com que essas práticas se articulem a partir de uma perspectiva contraditória e renovada para a política radical, baseada, por exemplo, na intensificação dos debates sobre "diferença" e "reconhecimento", uma maior heterogeneidade das demandas, uma revalorização do território, a transnacionalização da política e da ação coletiva e o retorno - ainda que ressignificado - de conceitos-chave, como "desenvolvimento" e "emancipação".
Existe um forte vínculo glocal do efeito democratizador das ações coletivas e práticas contestatórias do MST, que leva a que suas práticas contestatórias locais distem muito da volta a um basismo. Ao articular-se, no plano regional, com a Coordenadora Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) e, num plano internacional, com a Via Campesina, além de tecer várias alianças táticas no cenário internacional,3 os sem-terra trazem, ao debate local e nacional, muitas das discussões e subjetividades vividas num plano internacional e vice-versa, numa retroalimentação que tem suas consequências na construção dos discursos e práticas do movimento. Assim, essa fronteira da institucionalidade também converge com a do Estado-nação, ao limitar a atuação dos atores sociais à participação mais institucional. Um exemplo, na política internacional, poderia ser a análise das formas de participação de algumas organizações sociais em grandes instituições internacionais, e de como dita participação pode contribuir para a democratização de certas estruturas, como nos casos de algumas cúpulas da União Européia ou do Mercosul. Como assinalamos na seção anterior, as formas de participação dos atores sociais são muito mais amplas e variadas. Existem vários espaços próprios de protesto e deliberação (caso dos Fóruns Sociais Mundiais, regionais, nacionais ou locais, mas também de Conferências Internacionais de vários movimentos sociais, como a última da Via Campesina, realizada em outubro de 2008 em Moçambique, que se constituem como instância máxima de deliberação política para o movimento) que permitem experimentar novas formas de entender a democracia, a partir da auto-organização, da autonomia e do transnacionalismo, sendo essa a grande novidade nos dias de hoje.
Em suma, a democracia e os movimentos sociais, analisados da perspectiva da institucionalidade, respondem tanto a uma dinâmica "externa" (que inclui as reivindicações de uma democracia mais social e participativa, vinculadas às práticas institucionais), como "interna" (por cultivarem práticas democráticas vinculadas às sociabilidades e espacialidades). Desse modo, a democracia aparece tanto como pano de fundo das lutas sociais, como também como práticas significantes no plano normativo sobre o que significa a democracia, utilizando, em alguns casos, as próprias práticas do movimento ou, pelo menos, um horizonte de construção dessas práticas.
FRONTEIRA 4: o momento histórico
Finalmente, a perspectiva dominante no debate sobre as relações entre os movimentos sociais e a democracia acabou construindo uma quarta "fronteira", a do momento histórico, ao limitar, em grande medida, o papel democratizante dos movimentos sociais a uma conjuntura histórica específica: a das transições políticas. Desse modo, os processos de transição democrática vividos em vários países latino-americanos, do Sul e Leste da Europa, entre outros, receberam uma atenção especial dos teóricos dos movimentos sociais, que analisaram como os práticas e discursos desses movimentos contribuíram para a passagem de regimes autoritários a regimes democráticos "mais ou menos consolidados" (Ibarra, 2003, p. 2). No caso brasileiro, vários estudos como os de Kowarick (1987), Moisés (1982), Sader (1988), Scherer-Warren e Krischke (1987), entre muitos outros, também abordaram, a partir de diferentes perspectivas, a ação dos movimentos sociais no contexto de transição para a democracia.
De forma paralela, a literatura internacional abordou a relação entre movimentos sociais e democracia a partir de grandes "ciclos de protesto", ferramenta interpretativa proposta por Tilly (1978, 1984) e desenvolvida principalmente por Tarrow (1991, 1998). Esse autor retoma a idéia, já presente em teóricos sociais e da cultura, em historiadores políticos e econômicos, de que sistemas inteiros experimentam mudanças cíclicas, para examinar não tanto a progressão entre os diferentes ciclos, mas sim verificar a estrutura e a dinâmica do próprio ciclo, que seria o que produz os efeitos externos que alimentam e transformam os movimentos. Para Tarrow, um ciclo de protesto é uma fase de intensificação dos conflitos e do enfrentamento entre atores no sistema social, o que inclui uma rápida difusão da ação coletiva dos setores mais mobilizados aos menos mobilizados, um ritmo de inovação acelerado nas formas de confronto, marcos novos ou transformados para a ação coletiva. Trata-se de uma combinação de participação organizada e não organizada e algumas sequências de interação intensificada entre dissidentes e autoridades (Tarrow, 1998, p. 144-150). Assim, esses estudos sobre ciclos de ação coletiva, da mesma forma que aqueles da transição à democracia, têm como eixo analítico períodos de alta agitação política e social, em que a democracia representativa é questionada a partir de intensas lutas sociais.
No entanto, como reivindica Ibarra (2003), são escassos os enfoques que postulam o "papel central" (deveríamos adicionar "contínuo") dos movimentos sociais no jogo democrático. Para além dos valiosos estudos sobre os movimentos sociais em momentos históricos específicos, é necessário esboçar um enfoque multidimensional, em que os movimentos sociais sejam considerados não somente "impulsores" de processos de democratização, mas também "protagonistas" de uma contínua reinvenção da política democrática (Bringel, 2008; Ibarra, 2003). Para levar isso a cabo, é fundamental que nos afastemos do que Marilena Chauí, em prefácio à obra de Eder Sader (1988), denomina "historiografia dos mitos fundadores", que consideraria os movimentos sociais populares das décadas de 1970 e 1980 a origem exclusiva das lutas democráticas em vários países latino-americanos, entre eles o Brasil. Tão importante quanto o cuidado com os "mitos fundadores", é o distanciamento dos movimentos da periodização histórica oficial, em que a democracia apareceria como sinônimo de "processo de redemocratização", nos marcos de uma transição criada a partir de cima. Nesse sentido, os "teóricos da transição", sob uma hegemonia de olhares restritivos da ciência política (onde se destacam os estudos de Linz e Stepan, de 1999, ou a clássica trilogia organizada por O' Donnell, Schmitter e Whitehead, de 1986), limitaram, em grande medida, o estudo da democratização ao âmbito institucional, reduzindo o debate sobre a democracia à sua oposição ao autoritarismo. Eleições livres e periódicas, garantia de direitos civis ou restauração da ação política sem coerção passaram a se constituir em variáveis exclusivas.
A partir da década de 1990, vários enfoques críticos começaram a assinalar os limites da "transitologia" e da "consolidology", localizando o debate sobre democracia e democratização dentro de seu contexto sócio-histórico específico, partindo das transformações na matriz de relações entre Estado, política e sociedade, e rejeitando tanto as análises puramente abstrato-formais como os enfoques reducionistas do liberalismo democrático (Nun, 1987; Garretón, 1995); ou, a partir de prismas mais sociológicos, apontando que a vigência da democracia implica a incorporação de valores democráticos nas práticas quotidianas, nas relações sociais, na cultura política, numa nova subjetividade coletiva (Avritzer, 1996; Moisés, 1995). Apesar da contribuição desses enfoques para se pensar a democratização não como um momento de transição, mas como um processo permanente e inacabado de concretização da soberania popular (Rossiaud; Scherer-Warren, 2000), resta um longo caminho por aprofundar, no estudo da complexa relação entre movimentos sociais e democracia, quando pensamos na abordagem de diferentes momentos históricos, passando, por exemplo, pela recuperação da memória histórica e das lutas democráticas passadas, hoje silenciadas pelo liberalismo democrático e pelos consensos oficiais.
É o que acontece, por exemplo, no caso espanhol. No dia 06 de dezembro de 2008, quando a Constituição espanhola cumpria 30 anos, vários atores sociais questionaram o caráter exemplar da transição, como havia sido (e continua sendo) considerada pelo discurso oficial e pela ciência política hegemônica. De fato, autores espanhóis exportaram para vários países, entre eles o Brasil, a visão de um modelo a seguir. Na convocação da Jornada ¿Transición ejemplar? De la Constitución de 78 a la recuperación de la memoria histórica, realizada em Madri, é possível ler:
Enquanto se celebram trinta anos da aprovação da Constituição de 1978, alguns dos resultados do denominado "consenso" - atitude política que primou no trânsito da ditadura franquista à democracia representativa - começam a ser questionados, abrindo um debate sobre as políticas da memória [...] Uma nova geração de espanhóis começa a questionar a exemplaridade de uns acordos elitistas, vitoriosos para adequar uma economia semiperiférica ao entorno geopolítico ocidental e para ampliar certas liberdades civis e políticas, mas que não frearam as dinâmicas mais depredadoras da ordem socioeconômica capitalista consolidada com o franquismo [...]. Estreitamente relacionada com essa questão aparece o silêncio oficial sobre nosso incômodo e conflituoso passado, que nos obriga a esquecer as lutas que levaram às mudanças durante a II República, a resistência antifascista durante a Guerra Civil e a ampla oposição clandestina anti-franquista, furtando, assim, a narrativa da nossa democracia.4
As transições políticas para a democracia não são momentos históricos tão exemplares, tampouco o único momento em que os movimentos sociais podem atuar, de forma decisiva, na ampliação dos espaços democráticos. A "fronteira" da transição política para a democracia, como "momento histórico referencial", contribuiu para obviar uma série de práticas, momentos históricos e experiências, de intensidade democrática inclusive superior, e que haviam sido violentamente silenciadas pela imposição de regimes autoritários, como no caso da II República espanhola (1931-1939).
De fato, se "cruzarmos" essa fronteira com as duas anteriores, notaremos que o enfoque da "transitología" também deixa de fora toda a atuação situada à margem do Estado-nação e do âmbito institucional, já que não permite analisar as práticas democráticas existentes fora desse modelo concreto de democracia (tanto no âmbito local como no global) nem o papel dos movimentos sociais em sua constante reinvenção. No âmbito internacional, por exemplo, onde não são aplicáveis os esquemas clássicos de um modelo político democrático, e onde não é possível falar de "transições", torna-se ainda mais importante o papel dos movimentos sociais na democratização das relações internacionais. Uma análise orientada pela espacialidade das ações coletivas que repercutem na política democrática permite, pelo contrário, conectar as dimensões locais e globais, dentro e fora tanto do Estado-nação como do marco institucional, analisando-se suas imbricações e contradições.
CONCLUSÕES
Buscou-se, neste artigo, explorar articulações teóricas e experiências democráticas normalmente pouco consideradas nas abordagens sobre as práticas e teorias democráticas contemporâneas. Racionalidades e abordagens muitas vezes ocultas (deliberadamente ou não) pelos saberes convencionais das ciências sociais. Nesse sentido, o artigo considera que um dos maiores desafios teóricos para as teorias democráticas é captar a ampliação de experiências democráticas, que consiste na definição de um horizonte de ampliação dessas experiências que não se confunda com a necessária preservação de certas conquistas democráticas (a que emerge, por exemplo, com a derrota dos regimes autoritários), mas que leve a uma ampliação dessas (tanto em termos políticos como sociais, macro e micro, dentro e fora do sistema político) e ao enquadramento de uma relação multidimensional entre os processos de democratização, os repertórios de ação coletiva e a criação de novas democracias.
Talvez uma das melhores maneiras para superar as fronteiras (e limitações) aqui enunciadas seja justamente "pensar na fronteira", a partir do "pensamento fronteiriço" (border thinking) sugerido por Mignolo (2003). O autor propõe pensar as lutas da periferia do sistema-mundo a partir da "periferia", ou seja, com uma postura epistêmica fronteiriça, que se localizaria na fronteira do sistema moderno-colonial. Ainda que não possamos discutir as polêmicas implicações desse conceito, se interpretado parcialmente como um lugar de enunciação que possa articular conhecimentos subalternizados, concordamos com Florez (2007) que Mignolo acaba oferecendo uma instigante ferramenta para uma interpretação renovada das experiências silenciadas dos movimentos sociais.
Neste artigo, damos um uso mais laxo ao termo "fronteira", ao postular quatro barreiras que devem ser superadas para uma análise mais complexa dos movimentos sociais com a democracia. Nossa intenção não foi a de esgotar as possibilidades teóricas de articulação, mas lançar pistas teóricas para questionar os limites do conhecimento produzido pelos próprios movimentos sociais, oferecendo algumas alternativas disciplinares e epistemológicas para repensar os movimentos sociais como objeto de estudo (fronteira da ciência); as possibilidades de conexão entre espaços do local e do global para além do Estado, a partir de uma espacialização da política e do repertório de ações coletivas (fronteira do Estado-nação); as alternativas, pontos de ruptura e tensão para construir outras democracias, a partir de práticas espaciais radicais e racionalidades alternativas, para além do marco de aprofundamento democrático habitual (fronteira da instituição); e a construção de novas narrativas democráticas que não tomem como ponto de referência histórico exclusivo as transições políticas, senão as inovações democráticas que emergem com a reinvenção contínua da política, respeitando as políticas das memórias (fronteira do momento histórico).
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792008000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Caderno CRH
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