MICHELET E A LIBERDADE
Folha de S.Paulo, terça-feira, 18 de abril de 1978
Começou com o mundo uma guerra que só deve acabar com o mundo, e não antes: a do homem contra a natureza, do espírito contra a matéria, da liberdade contra a fatalidade. A História não é outra senão o relatório dessa luta interminável.
Nos últimos anos, parecia que a fatalidade ia apoderar-se da ciência e do mundo, instalara-se tranquilamente na Filosofia e na História. No campo social, a liberdade reagiu. É preciso que ela erga sua voz também no campo da ciência. Se isso ocorrer, a História assumirá a significação de um protesto permanente com o triunfo progressivo da liberdade.
A liberdade tem, sem dúvida, seus limites. Não penso em contestá-los. Posso verificá-los mesmo à saciedade na ação o absorvente da natureza física sobre o homem, e mais ainda nas dificuldades com que me acua este mundo hostil. Quem de nós não maldisse e renegou alguma vez a liberdade, diante das ameaças e das seduções com que o mundo nos cerca
"Apesar de tudo, ela se move" - como disse Galileu. Quanto a mim, em tudo que faço, encontro alguma coisa que não quer ceder, que não aceita o jugo do homem nem da natureza, que não se submete senão à razão e à lei, que não conhece qualquer conciliação com a fatalidade. É um combate sem fim, que constitui a dignidade do homem e a própria harmonia do mundo.
Esse combate, não tenhamos dúvida, há de durar enquanto a vontade humana resistir contra as influências de raça e de clima. Enquanto um Byron puder sair da Inglaterra industrial para viver na Itália e morrer na Grécia. Enquanto os soldados da França marcharem, em nome da liberdade do mundo, para acampar nas margens do Vístula ou nas bandas do Tibre.
O que nos deve encorajar nessa luta sem quartel é que, no final, o resultado melhor estará de nosso lado. Enquanto um dos dois adversários não muda, o outro está sempre se transformando e se fortalecendo. A natureza permanece inalterável, enquanto o homem, a cada dia que passa, consegue vantagens sobre ela. Os Alpes não cresceram, e nós os atravessamos com o Simplon. A onda e o vento não são menos caprichosos, mas o navio a vapor corta as águas sem levar em conta o capricho dos ventos e dos mares.
Percorram do Oriente ao Ocidente, na rota do sol e das correntes magnéticas do globo, as migrações do gênero humano. Observem esta longa viagem da Ásia à Europa, da Índia à França, e o que se verá, a cada passo, é a diminuição do poder fatal da natureza, tornando-se cada dia menos tirânica e menos significante a influência de raça ou de clima. No ponto de partida, na Índia, no berço das raças e das religiões - "The Womb of World" - o homem está curvado, prostrado aos pés da onipotência da natureza. É uma pobre criança no seio de sua mãe, criatura frágil e dependente, desgastada e batida, mais embriagada do que nutrida de um leite muito forte para suas resistências.
Essa mãe mantém a pobre criatura, enlanguescida e banhada por um ar úmido e ardente, perfumado por aromas fortíssimos. Seu vigor, sua vida, seu pensamento sucumbem a essa situação.
Não é por ser bem tratado e cercado de carinhos excessivos que o homem se torna mais forte. O poder da vida e da morte é igual naqueles climas. Em Benares, a terra dá três colheitas por ano, uma chuva de tempestade faz de um deserto um prado verdejante. O caniço do país é o bambu de sessenta pés de altura. A árvore é a figueira da Índia que, de uma única raiz, produz uma floresta. Sob esses vegetais monstruosos vivem monstros. O tigre vigia a margem do rio,
tocaiando o hipopótamo que agarra num bote de quatro metros; ou então a floresta é talada pela manada de elefantes selvagens que derruba as árvores à esquerda e à direita em seu tropel furioso. Enquanto isso, tempestades espantosas deslocam as montanhas e o cólera-morbus faz suas colheitas de milhões de pessoas.
Encontrando, assim, por toda parte, forças desproporcionais, o homem, esmagado pela natureza, não se dispõe a lutar e se rende sem condições. Bebe e torna a beber a taça embriagante em que Shiva serve a vida e a morte. Bebe em longos goles, e se perde nela. Deixa nela seu ser e reconhece, com sombria e desesperada volúpia, que Deus é tudo, que tudo é Deus, e que o ser humano não passa de um acidente, um fenômeno dessa substância única. Ou então, com paciente e orgulhosa imobilidade, contesta a existência dessa natureza hostil, e se vinga, pela lógica, da realidade que o esmaga. Ou, ainda, foge para o Ocidente e começa, na direção da Pérsia, a longa viagem e a conquista progressiva da liberdade humana.
Ali, a liberdade desperta e declara-se pelo ódio ao estágio anterior: Os deuses da Índia se tornam "dives" - os demônios. As imagens sagradas passam a ser ídolos. Não há mais estátuas, não há mais arte... A Europa é a terra livre. O escravo que a alcança está libertado. Este é o caso da humanidade fugitiva da Ásia. No severo mundo do Ocidente, a natureza não dá nada por si mesma: ela impõe como lei necessária o exercício da liberdade. Por isso foi preciso aqui formar essa estreita associação que se chama o Estado.
Jules Michelet (1798 - 1874), é um dos mais importantes historiadores da França. Toda sua filosofia da História se funda numa espécie de expectativa da ressurreição do homem sacrificado pelas circunstâncias fatais que o rodeiam. Foi catedrático de História e de Moral do Colégio de França. Empreendeu uma gigantesca História da França. Interrompida para escrever a História de Revolução, e depois retomada, compondo, as duas, vinte e quatro volumes. Começou também a escrever uma História do século XIX, da qual se publicaram três volumes, um deles em vida do autor. O texto que hoje publicamos é de sua "Introductions à l'Histoire Universelle", na qual se sentem os ecos da Enciclopédia e de Rousseau, típicos do pensamento francês de 1830.
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