quarta-feira, 28 de outubro de 2009

UM FUNERAL MOÇAMBIQUE EM 1830


UM FUNERAL MOÇAMBIQUE EM 1830

Alexandre José de Melo Morais Filho



Na terra do exílio, na pátria do cativeiro, os pobres escravos reuniam-se para enterrar os seus mortos segundo costumes próprios e usos privativos.

O navio negreiro e o Valongo podiam cativar-lhe a liberdade do corpo, porém jamais conseguiram tolher-lhes o vôo da alma no sentimento comum, na união estrita da desgraça.

Chorar no mesmo pranto, gemer em só gemido era a sina dos míseros escravos d’África chegados a estas plagas, e esse pensar, essa dor eterna que lhe brotava do seio como da cachoeiras as águas que se espadavam, eles as transmitiam aos seus descendentes crioulos, que na primitiva honraram a raça de seus pais aprisionados em longes terras.

Povo essencialmente afetivo, os negros no Brasil aparecem por um lado tão simpático que fora um injustiça da história não recolher-lhes as tradições admiráveis, na luta empenhada através do cativeiro e da civilização.

Vivendo conosco no tempo e na ação, os escravos dominaram às vezes de tão alto que a eles devemos ensino e exemplos.

Em sua existência ignorada e na pureza dos seus costumes, quanto não teriam de aprender duas partes da imigração atual, para quem o único Deus é o ouro, e o único ideal o nosso aniquilamento...

Entretanto, o esquecimento se tem feito sobre o seu passado impoluto, mesmo porque descendentes bastardos repudiam torpes a sagrada origem de que procederam.

Percorrendo a história, deixando iluminar-nos a fronte a luz amarelenta das crônicas, não sabemos ao certo quem maior influência exerceu na formação nacional desta terra, se o português ou o negro.

Chamados para juiz nesta causa, necessariamente o nosso voto não pertenceria ao primeiro.

Nativista convicto e por herança de família, não seremos nós quem sacrifique pelo café as tradições históricas da três raças poderosas, de que este país é a resultante constituída.

Como pesquisa etnográfica, nenhuma das três levas colonizadoras merece-nos mais atenção do que as importadas da costa d’África e sua prole.

Desde o crepúsculo matinal da colônia, foram estas que sustentaram, à semelhança de cariátides, o pórtico das nossas instituições sociais, contribuindo largamente para o nosso presente, ameaçado a todo o instante por nacionalidades que nos invadem sem obstáculos.

Apesar de bárbaros, de aviltados pela condição, os nossos escravos possuíam costumes cheios de poesia e de graça, de certa tristeza que enleva e encanta.

Das diferentes tribos que abasteciam os mercados do Rio de Janeiro, os moçambiques e os rebolos colocaram-se em plano mais distinto, com referência à característica de seus usos nacionais, aqui modificados, é verdade, segundo as exigências dos meios.

Reservando alguns capítulos desta obra a essa pobre gente que tanto amou e sofreu, derrubando florestas, fundando cidades, acompanhado-nos em nossas alegrias e em nossos pesares, tracemos lineamentos étnicos de sua vida de relação, antes de pararmos horrorizados em presença do quadros de seus martírios.

Como acima dissemos, os negros do Rio de Janeiro enterravam os seus de um modo completamente particular, quanto ao cerimonial que antecedia ao ato da inumação.

Diversificado este costume conforme as tribos, os moçambiques salientavam-se no aparato fúnebre, que faziam preceder por vezes de outros deveres dependentes dos recursos pecuniários do compatriota morto.

Assim, quando falecia um indigente de sua nação, os parentes e parceiros o conduziam em uma rede que ficava desde o amanhecer junto ao muro de uma igreja ou à porta de qualquer venda.

Duas negras, de face pesarosa e vestidas de luto, conservavam-se com duas velas acesas junto à rede funerária, recolhendo dos passantes o óbolo da caridade para o enterro, completando a soma os compatrícios do defunto que apareciam no momento.

Os enterramentos dos escravos faziam-se antigamente no cemitério da Misericórdia, e por exceção nos templos.

Segundo o que sabemos, nenhum necessitado moçambique, por falta da quantia exigida, deixou de ser sepultado com decência, isto é, pagando os interessados três patacas ao hospício da Santa Casa, que se incumbia de mandar buscar o corpo e do mais.

Não sendo o finado totalmente miserável, possuindo bens ou dinheiro, as pompas fúnebres tornavam-se regulamentares, e tanto mais ruidosas quando se tratava de algum personagem ilustre entre eles, tais como reis, rainhas e príncipes de raça.

Excluindo os carregadores da rede mortuária, o mestre-de-cerimônias e o tambor-mor, o préstito compunha-se de mulheres ou de homens, conforme o sexo do cadáver.

O de pessoas reais congregava ambos e mais ainda as crianças, que desfilavam com estrépito pelas ruas até a igreja, que esperava o morto com as portas encostadas e círios guarnecendo a essa.

Nessas cerimônias, sempre atraentes pela originalidade, os infelizes africanos manifestavam a seu modo a dor profunda que os acabava de ferir, a desolação da tribo vendo-se separada de um dos seus membros.

A Igreja da Lampadosa, que em 1830 era servida pelo clero negro e pertencia a uma irmandade de mulatos, constituiu-se a necrópole fidalga dos africanos desta cidade, e diante do adro vinham parar os fúnebres préstitos, executando o seu ritual lúgubre no meio de alaridos selvagens e de danças funerárias.

O acompanhamento era o mais atroador e rude, não deixando por isso de revelar uma fisionomia especial de costumes singulares e primitivos.

A procissão que, até à saída do corpo, limitar-se-ia a meia dúzia de parentes e raros amigos do defunto, desde um pouco adiante avolumava-se considerável, por isso que os negros da mesma nação, os conterrâneos da mesma pátria o seguiam às despedidas do cativeiro e do túmulo.

À frente ia o mestre-de-cerimônias, um pouco mais atrás o tambor-mor, e ladeando a rede coberta com um pano preto sulcado de uma cruz branca, a família, rodeada de moçambiques, que batiam palmas cadenciadas e cantavam os seus lamentos.

Segurando dos lados a cortina mortuária, os filhos e os íntimos caminhavam vagarosos, ao estrondo do tambor, que a cada passo fazia-se ouvir ecoando lúgubre.

Por volta das cinco horas da tarde chegava habitualmente o cortejo à Lampadosa.

De portas fechadas, em razão de ajustamentos, os curiosos tomavam-lhe os degraus, e defronte, estendidos em alas, os ganhadores e as quitandeiras etíopes, com os cestos e tabuleiros à cabeça esperavam o préstito, que ao longe era anunciado por dois sinos.

Apenas estes dobravam, os contristados pretos arriavam no chão as suas cargas, ensaiavam os seus lamentos, com a boca fechada a todos os riscos e os olhos arrasados das mais quentes lágrimas.

Dentro em pouco a igreja se abria e os padres vinham ao pequeno adro para receber o cadáver.

E perto, bem perto, o tambor atroava, e uma melopéia áspera e selvagem ouvia-se próxima.

Os convidados da morte, na observância de seus ritos solenes, transpunham o largo do Rocio e entravam na rua do Sacramento.

Com dois lenços vermelhos cobrindo-lhe o peito, de calça curta, e de rodilha verde na cabeça, o mestre-de-cerimônias, rompendo a marcha, fazia evoluções com uma vara, à cadência das palmas que batiam os negros nas calçadas e os acompanhadores.

Nisso os sinos tangiam pela última vez, e o negro do tambor, escanchado em seu bombo, batucava com os punhos cerrados, aproveitando o silêncio que sucedia ao seguimento da rede para o recinto da igreja.

Apenas esse féretro aéreo encaminhava-se balançando, os cânticos fúnebres em honra do morto reanimavam-se, as palmas reproduziam-se mais aceleradas, o rufar bárbaro do tambor era mais veloz, a rede, lenta como a agonia, pesada como o infortúnio, penetrava no templo.

Depois... a calma era profunda. E a treva, descendo silente nos braços da noite, velava o último sono do cativo, que se libertara da vida e da escravidão.


(MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1979. Reconquista do Brasil, 55)

Revista Jangada Brasil

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