quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs monstruosa


Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs monstruosa

Roberto Ventura
Professor de teoria literária e literatura comparada da USP e autor de Estilo tropical (São Paulo, Companhia das Letras, 1991).

RESUMO: Euclides da Cunha interpretou o conflito de Canudos (1896-7) a partir de fontes orais, para afirmar o caráter sebastianista e messiânico do movimento. Baseou-se em poemas populares e em profecias apocalípticas, que atribuiu a Antônio Conselheiro, para criar, em Os sertões (1902), um retrato sombrio do líder da comunidade. Os sermões do Conselheiro, recolhidos em dois volumes manuscritos a que Euclides da Cunha não teve acesso, mostram um líder religioso, muito diferente do fanático místico retratado em Os sertões. Revelam um setanejo letrado, capaz de exprimir suas concepções políticas e religiosas, vinculadas a um catolicismo tradicional, corrente na igreja do século XIX.

PALAVRAS-CHAVE: Euclides da Cunha, Antonio Conselheiro, guerra de Canudos, messianismo.


Euclides da Cunha interpretou a guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas, encontrados em papéis e cadernos nas ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem de autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em Os sertões, um retrato sombrio do líder da comunidade. Estes poemas e profecias foram o ponto de partida de sua visão de Canudos como movimento sebastianista e messiânico, vinculado à crença no retorno mágico do rei português d. Sebastião, para derrotar as forças da República e restaurar a monarquia.

Euclides projetou sobre o Conselheiro muitas de suas obsessões pessoais, como o temor da irracionalidade, da sexualidade, do caos e da anarquia, para construir um personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à insanidade e ao conflito com a ordem. Viu Canudos como desvio histórico capaz de ameaçar a linha reta que ele, Euclides, se impusera desde a juventude. Recorria, nas cartas aos amigos e familiares, à imagem da linha reta para expressar sua fidelidade aos princípios éticos aprendidos com o pai, ancorados na crença no progresso da humanidade e no caráter redentor da República (Cunha, 1996).

Os sermões de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, recolhidos em dois volumes manuscritos a que Euclides não teve acesso, mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do profeta milenarista retratado em Os sertões. Revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja do século XIX.

Antônio Conselheiro, o futuro líder de Canudos, pregou por volta de 1870 pelo interior do nordeste e organizou mutirões para a construção de igrejas e cemitérios. Foi proibido de pronunciar sermões pela Igreja Católica em 1882. Seus conflitos com a ordem estabelecida se agravaram com a proclamação da República. Conselheiro se opunha ao novo regime, que via como a personificação do Anticristo, e criticava o casamento civil e o registro de mortes e nascimentos, introduzidos com a Constituição de 1891.

Após liderar rebelião contra a cobrança de impostos, fixou-se com seus seguidores, em 1893, na região de Canudos, às margens do rio Vaza-Barris, no nordeste da Bahia. Criou Belo Monte como refúgio sagrado contra as secas da região e as leis seculares da República. O atraso na entrega de madeira, comprada em Juazeiro para a construção de igreja, foi o estopim de um conflito armado, que se estendeu por quase um ano, de novembro de 1896 até outubro de 1897, até o completo extermínio da comunidade. Quatro expedições militares foram enviadas contra Canudos.

Foi uma guerra de extermínio, que o escritor-engenheiro Euclides da Cunha criticou em Os sertões, publicado em 1902, cinco anos após o massacre. Mais de doze jornais mandaram repórteres e fotógrafos na primeira cobertura ao vivo de uma guerra no Brasil, que a instalação das linhas telegráficas tornara possível. O conflito terminou com a morte de 5 mil soldados e o massacre da segunda maior cidade da Bahia, com cerca de 25 mil habitantes.

A destruição de Canudos se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que a fatores políticos, como os conflitos entre facções partidárias na Bahia, a atuação da Igreja contra a atuação pouco ortodoxa dos beatos e pregadores e as pressões dos proprietários de terras contra a comunidade, cuja expansão trazia escassez de mão-de-obra e rompia o equilíbrio político da região.

Outros conflitos políticos em nível nacional transformaram o povoado em alvo de grupos e facções, como os embates entre civilistas e militaristas, ligados à sucessão do presidente Prudente de Morais (1894-8). A guerra serviu de pretexto à repressão aos grupos monarquistas e aos setores jacobinos, tendo contribuído para a implantação da política dos governadores, criada pelo presidente Campos Sales (1898-1902), em que as lideranças civis de Minas Gerais e de São Paulo passaram a se alternar no poder.

Pressões da Igreja também foram decisivas para o agravamento do conflito. Com a política centralizadora exercida pela Santa Sé a partir de 1860, no pontificado de Pio IX, o clero brasileiro passou por um processo de romanização, em que os padres foram submetidos à autoridade dos bispos e das arquidioceses, que passaram a combater a ação dos pregadores leigos (Levine, 1992; Villa, 1995).



Euclides da Cunha em Canudos

Euclides foi enviado à frente de batalha como correspondente de O Estado de S. Paulo, para escrever uma série de reportagens e preparar um livro sobre a guerra. Participou, de agosto a outubro de 1897, da quarta e última expedição. Tomou contato com uma cidade semi-destruída pelos constantes bombardeios, com seus habitantes privados de água e comida devido ao cerco do Exército. Sua observação foi prejudicada por tais condições, que se somaram à formação científica, de base positivista e evolucionista, com os preconceitos raciais próprios à época, que traziam a crença na inferioridade dos não-brancos.

Passeou, dentro da cidade, em 29 de setembro, como contou no penúltimo artigo para o jornal: "passeio perigosamente atraente, com os jagunços a dois passos apenas, nas casas contíguas". Anotou, no mesmo dia, na caderneta de bolso que trazia consigo: "Não posso definir a comoção ao entrar no arraial." Decepcionou-se com o aspecto daquela povoação estranha, cujas ruas eram substituídas por um "dédalo desesperador de becos estreitíssimos". As casas se acumulavam "em absoluta desordem", como se tudo aquilo tivesse sido construído "febrilmente — numa noite — por uma multidão de loucos!" Criticou a ausência de linha reta e de planejamento no traçado de Canudos. Assustou-se ainda com o interior miserável dos casebres escuros, sem ar e com pouca mobília (Cunha, 1975:69; 1939:107-9).

Presenciou menos de três semanas de luta, ao todo 18 dias, de 16 de setembro até 3 de outubro. Retirou-se doente de Canudos na manhã de 3 de outubro, dois dias antes do fim da guerra, por causa de acessos de febre, provocados pelas condições da guerra, com pilhas de mortos e feridos, falta de alimento e noites de sono interrompidas por tiroteios. Não assistiu ao massacre dos prisioneiros, à queda final de Canudos, à exumação do cadáver do Conselheiro e à descoberta de seus manuscritos, ou ao incêndio da cidade com tochas de querosene, ocorridos nos últimos dias. Tais cenas, ausentes de suas reportagens, foram relatadas com poucos detalhes no livro de 1902 (Calasans, 1969).

O silêncio de Euclides sobre as atrocidades da guerra foi acompanhado por quase toda a imprensa. Os materiais enviados pelos correspondentes, sobretudo pelo telégrafo, eram submetidos à censura militar. Mas outros jornalistas, como Manoel Benício, do Jornal do Comércio, e Fávila Nunes, da Gazeta de Notícias, chegaram a mencionar atos de violência das tropas. A crueldade da campanha só foi revelada, com veemência, pelo estudante de medicina Lélis Piedade, no Jornal de Notícias, da Bahia, e pelo monarquista Afonso Arinos, no Comércio de São Paulo (Galvão, 1977).

Talvez Euclides se sentisse tolhido, como repórter, para atacar o Exército. Era, desde 1896, tenente reformado e fora nomeado adido ao Estado-maior, com direito a ordenança, para a cobertura da guerra. Daí o crescente silêncio das reportagens que escreveu de Canudos, interrompidas, de forma súbita, em 1 de outubro. Escreveu sobre as manhãs admiráveis, com os raios de sol que iluminavam o círculo de montanhas.

Mais tarde, em Os sertões, chamou a cadeia de serras de "anfiteatro" do maior drama da história brasileira e denunciou a campanha militar como crime. Fez a confissão de culpa da omissão de suas reportagens, ao mencionar fatos sobre os quais antes silenciara: a degola dos prisioneiros e o comércio de mulheres e crianças. Criticou a hipótese de uma conspiração política, apoiada por grupos monárquicos e por países estrangeiros, que havia justificado o massacre.

A oralidade em Os sertões

O crítico uruguaio Angel Rama tratou, em La ciudad letrada, do papel das camadas letradas na América Latina, encarregadas das tarefas da administração colonial e da catequização da população indígena. Formada por profissionais, escritores e servidores intelectuais, que detinham a escrita em uma sociedade de analfabetos, a cidade letrada fazia a comunicação e a mediação entre a metrópole e os grupos locais, exercendo funções culturais e simbólicas nas estruturas de poder (Rama, 1984).

Euclides criou, em Os sertões, uma imagem de Canudos como cidade iletrada, dominada por fanatismos e superstições transmitidos de forma oral. Construiu um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua própria cultura, letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica. Procurou dar voz ao outro, objeto de seu discurso e inimigo de suas concepções políticas, ao incorporar textos destinados à oralização, produzidos segundo uma lógica mítica e religiosa que lhe era estranha.

Foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil, cuja história seria movida pelo choque entre etnias e culturas. Recorreu à teoria do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz (1838-1909), que considerava a história guiada pela luta entre raças, com o esmagamento inevitável dos grupos fracos pelos fortes. Alarmado com o avanço da cultura estrangeira, lançou seu brado de alerta em Os sertões: "Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos" (Cunha, 1902:145).

O conflito entre Canudos e a República resultou, para Euclides, do choque entre dois processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão apresentaria vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural. "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral." (Cunha, 1985:179).

Revelou, na abertura do livro, seu propósito de se identificar aos sertanejos, vítimas da guerra. Citou a este respeito o historiador francês Hyppolite Taine, para quem o "narrador sincero" deveria ser capaz de se sentir como um bárbaro entre os bárbaros, como um antigo entre os antigos. Taine formulou, na Histoire de la littérature anglaise (1863), a concepção naturalista da história, determinada a partir de três fatores: o meio, com o ambiente físico e geográfico; a raça, responsável pelas disposições inatas e hereditárias; e o momento, resultante das duas primeiras causas (Taine, 1905:xxxix, v. 1).

Tal concepção naturalista foi seguida por Euclides, ao dividir Os sertões em três partes, correspondentes aos fatores de Taine: "A terra", "O homem" e "A luta". Tratou, em "A terra", da geologia brasileira e do meio físico do sertão baiano, com o clima do semi-árido e a vegetação da caatinga. Em "O homem", discutiu as origens do homem americano, a formação racial do sertanejo e os males da mestiçagem. Finalmente, em "A luta", narrou a guerra de Canudos como confluência dos fatores naturais, étnicos e históricos.

Apesar da sua intenção de narrar a história com sinceridade, construiu uma visão negativa de Canudos que chamou de "urbs monstruosa" e "civitas sinistra do erro", dominada pela desordem e pelo crime. O povoado era, para ele, um ajuntamento caótico e repugnante de casas, onde haveria o amor livre e o coletivismo dos bens (Cunha, 1985:232-9). Considerou-a como grupo homogêneo, formado por mestiços de branco e índio, sem perceber que se tratava de uma sociedade diferenciada com a presença de comerciantes, e com forte presença de mulatos e índios.

Mas propôs uma outra visão de Canudos como comunidade messiânica, em que haveria a espera do rei português d. Sebastião, para derrotar as forças da República. Segundo Euclides, o isolamento histórico da sociedade sertaneja permitiu a preservação dos mitos sebastianistas, transmitidos com a colonização portuguesa. O movimento de Canudos teria reatualizado o mito de d. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, na tentativa de expandir os domínios portugueses na África. Com a morte de d. Sebastião, o trono português ficou vago e Portugal foi anexado a Castela, só tendo recuperado a autonomia política em 1640.

Surgiu o mito do retorno glorioso do monarca desaparecido, que se manteve em Portugal até o século XIX. Este mito se manifestou, no Brasil, em movimentos messiânicos, como na Cidade do Paraíso Terrestre, de 1817 a 1820, e em Pedra Bonita, de 1836 a 1838, ambos em Pernambuco, ou no Contestado, região entre o Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916. A crença esteve presente em Canudos, de 1893 a 1897 (Monteiro, 1977; Queiroz, 1976).

Euclides se baseou nos poemas e profecias, que transcreveu em uma caderneta. Os poemas fazem parte de dois ABCs, narrativas da guerra, estruturadas como seqüência de estrofes iniciadas com as letras do alfabeto, que servem como recurso de memorização. Copiou ainda duas profecias apocalípticas, que julgou serem do próprio Conselheiro.

Comentou, de forma negativa, estes manuscritos, que desqualificou como "pobres papéis", com "ortografia bárbara" e "escrita irregular e feia", que mostrariam o "pensamento torturado" dos sertanejos: "Valiam tudo porque nada valiam". Conselheiro pregava, para ele, com uma "oratória bárbara e arrepiadora", "misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas..." (Cunha, 1985:194 e 249).

Euclides citou, em Os sertões, sete quadras de um dos ABCs, que colocou em ordem cronológica, de forma a sintetizar a concepção mítica e religiosa dos seguidores do Conselheiro, que acreditariam no retorno de d. Sebastião. Este ABC, composto de 28 quadras e 1 terceto, contém uma narrativa popular dos primeiros anos da República, que introduziu o casamento civil, perseguiu Antônio Conselheiro e trouxe guerras civis e especulação financeira. Duas dessas quadras se referem à vinda de d. Sebastião, para extinguir o casamento civil e punir aqueles que se encontrariam sob "a lei do Cão", a "eleição" do novo regime, considerada contrária à lei de Deus:

"Sebastião já chegou
comta muito rijimento
acabando com o Civil
e fazendo os casamento"

"Visita vem fazer
Rei D. Sebastião
Coitadinho d'aquele pobre
que estiver nalei de Cão" [Cunha, 1975:58-9]

A República é tida como o reino do Anticristo, personagem do Apocalipse que surgiria antes do fim do mundo, para semear a impiedade e a discórdia até ser vencido pelas forças divinas. Caberia ao Conselheiro a tarefa de derrotar o Anticristo republicano:

"Nassio o Antecristo
p.a o mundo governar
ahi estar o concelheiro
p.a dele nos livrar" [Cunha, 1975:58]


O segundo conjunto de versos é o "ABC das incredulidade", com 26 estrofes, que Euclides copiou na caderneta, mas não chegou a utilizar em Os sertões. Este ABC foi escrito em comemoração à vitória de Canudos contra a 3ª expedição. Seu comandante, o coronel Moreira César, vindo a Canudos "para dar carne aos urubu", recebe a alcunha de "corta-cabeças" ou "corta-pescoço", por seus atos de violência na repressão à Revolução Federalista, em Santa Catarina (Cunha, 1975: 59-61). Morto em Canudos, seu corpo foi retalhado e queimado pelos jagunços após ficar exposto por alguns dias.

Euclides mencionou, em Os sertões, duas profecias apocalípticas que atribuiu, de forma errônea, a Antônio Conselheiro: a profecia das nações e a profecia de Jerusalém. A profecia das nações se refere ao fim do mundo, em que irá aparecer um anjo, para fazer pregações, fundar cidades e construir igrejas e capelas. É provável que os sertanejos identificassem o Conselheiro a este anjo. São previstas desgraças, como a construção de estradas de ferro, a grande fome, a prisão de fiéis e guerras civis, que precederão o retorno de d. Sebastião e de Jesus para inaugurar uma nova era: "Em verdade vos digo, quando as Nações brigarem com as Nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prúcia com a Prúcia; das ondas do mar dom Sebastião sair com todo seu exército desde o princípio do mundo que se encontrou com todo seu exército, em guerra, e restituiu em guerra."

A profecia de Jerusalém é datada de 1890, tendo Belo Monte como local. Não há referências a d. Sebastião nesta profecia, que contém uma cronologia política, que vai da independência do Brasil até o fim do mundo, anunciado para 1901, passando pela abolição dos escravos e a proclamação da República. São previstos o apagar de todas as luzes, seguido de chuvas de estrelas e queda de meteoros, até que apareça o pastor capaz de guiar o rebanho. Guerras são profetizadas para o ano de 1896, que coincidiu com o início do conflito de Canudos: "Em 1896 há de haver guerra Nação com a mesma Nação, o sangue há de correr na terra".

Ambas as profecias contêm uma visão escatológica, que anuncia o fim do mundo e a criação do Reino dos Céus na terra, em que deverão ser eliminadas as diferenças sociais — "não se conhecerá rico nem pobre" — e erradicados os conflitos políticos pela unificação dos homens sob a autoridade divina: "um só pastor e um só rebanho". As regiões climáticas também serão invertidas e o sertão se tornará terra de promissão, com fartura de carne e peixe, ao virar "praia", expressão utilizada para designar as zonas úmidas entre o litoral e o semi-árido: "Em 1894 há de vir rebanhos de mil correndo do centro da Praia para o certão então o certão virará Praia e a Praia virará certão" (Cunha, 1975:73-5).

Os sermões do Conselheiro

Euclides não teve acesso, quando escreveu Os sertões, aos dois volumes manuscritos, que o Conselheiro redigiu do próprio punho, ou ditou a um assistente. Tomou por base profecias populares, como a das nações e a de Jerusalém, que atribuiu ao Conselheiro. Só teve acesso a um dos manuscritos deixados pelo líder de Canudos, quase sete anos após a publicação de Os sertões, poucos meses antes de morrer em 1909. Mas se inclinava, dada sua formação evolucionista, a desqualificar o discurso religioso como primitivo.

Conselheiro redigiu dois livros manuscritos, em meio aos conflitos com a Igreja e o governo, que se encerravam com uma mensagem final de despedida aos fiéis. Deixou uma espécie de testamento religioso, ao perceber o agravamento do confronto com os poderes estabelecidos. Seu profetismo, com o ideal de martírio e o desejo de salvação, se relacionava ao catolicismo dos pregadores leigos, muito freqüentes no nordeste.

O papel de conselheiro, que se pregou, como epíteto, ao nome de Antônio Vicente Mendes Maciel, era previsto em obra divulgada pela Igreja portuguesa e brasileira: Missão abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores e sustentar o fruto das Missões, do padre Manoel José Gonçalves Couto. Para o padre Couto, toda povoação deveria ter um missionário, de preferência um sacerdote, e "na falta dele qualquer homem ou mulher que saiba ler bem, e duma vida exemplar", para conduzir o povo em orações e lhe dar instruções religiosas (Couto, 1878: 7). O Conselheiro seguiu as recomendações da Missão abreviada, volume que trazia consigo junto com uma Bíblia bilíngüe, em latim e português.

Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, datado de 1895, é o primeiro manuscrito do Conselheiro. É um livro de orações, inédito até hoje, escrito após o fracasso da missão dos frades italianos, enviados para submeter o líder e seus fiéis à autoridade eclesiástica. Contém partes copiadas e adaptadas da Missão abreviada e da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Apresenta ainda os dez mandamentos e os sacramentos e obrigações religiosas.

O segundo manuscrito, que Afrânio Peixoto deu a Euclides, foi concluído em 12 de janeiro de 1897, quando a cidade se preparava para o combate à 2ª expedição. Tinha por título, Tempestades que se levantam no Coração de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação, contendo a vida de Jesus Cristo e da Sagrada Família sob a ótica da Virgem Maria, seguido de "Os dez mandamentos da lei de Deus" e de textos extraídos da Bíblia, além de prédicas e discursos. Foi publicado por Ataliba Nogueira, em 1978, como Antônio Conselheiro e Canudos. Parte da obra é dedicada ao relato da Paixão, o que permite supor que houve a identificação imaginária entre o sacrifício exemplar de Cristo e o extermínio iminente do grupo.

O manuscrito contém ainda um texto propriamente político, o sermão "Sobre a República", em que atacava a República como "grande mal para o Brasil" e "tirania para os fiéis", regime político contrário à vontade de Deus. Para Conselheiro, a restauração da monarquia e o retorno da família real ao Brasil eram fatos inevitáveis, inscritos em uma ordem natural: "Negar estas verdades seria o mesmo que dizer que a aurora não veio descobrir um novo dia." (Maciel, 1978:175-7).

As crenças sebastianistas, messiânicas e milenaristas, de que os poemas e as profecias transcritos por Euclides são evidência, permitem explicar tanto a luta quase suicida de parte dos conselheiristas, como a intensa migração para Canudos em pleno acirramento do conflito. É possível que, nos últimos meses de agonia da comunidade, a visão escatológica tenha se reforçado entre aqueles que, ao invés de abandonarem o povoado, fizeram a sua defesa até a morte.

Antrópologos e historiadores, como Duglas Teixeira Monteiro, Robert Levine e Marco Villa, consideram porém que Canudos não foi uma comunidade predominantemente milenarista, pois não chegou a apresentar o misticismo extremado ou a crença coletiva na proximidade do fim do mundo, presentes em outros movimentos religiosos, como no Juazeiro e no Contestado. A espera do fim do mundo teria sido, em Canudos, um elemento do discurso religioso, presente nas profecias apocalípticas que circularam entre seus habitantes, mas não se pode precisar hoje qual foi o grau de adesão a tais concepções (Levine, 1992; Monteiro, 1977; Villa, 1995).

Ao contrário dos poemas e profecias citados por Euclides, os sermões de Antônio Conselheiro não contêm referências a d. Sebastião, nem revelam expectativas na vinda de um Messias, capaz de trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou esperanças milenaristas na criação do paraíso na terra. Conselheiro foi mais um líder religioso, que atuou como autoridade religiosa exemplar e organizou uma comunidade segundo laços de solidariedade.

Um pouco de poesia e mistério

Euclides admitiu, nas reportagens, que havia subestimado a resistência dos sertanejos e sua capacidade de luta. Observou, em artigo de 16 de agosto de 1897, que o combate apresentava uma "feição primitiva, incompreensível, misteriosa." Surpreendia-se que os jagunços, já em número reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco da cidade, em vez de fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação (Cunha, 1939:29).

Machado de Assis já havia enfocado tal feição de mistério, ao escrever sobre Canudos na Gazeta de Notícias. Em crônica de 22 de julho de 1894, comparava, com bastante humor, os seguidores do Conselheiro aos piratas das canções românticas de Victor Hugo. Deixava-se encantar pelo toque de poesia e mistério que envolvia o líder religioso, além de criticar a imprecisão das notícias sobre o movimento (Assis, 1944a: 155-9).

Machado protestou, em plena guerra, em janeiro de 1897, contra a perseguição que se fazia ao Conselheiro e à sua gente. Comentava que pouco se sabia sobre sua seita e doutrina, capazes de mobilizar milhares de seguidores: "De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos." Como as mortes nos combates não afastaram os fiéis de seu líder, perguntava-se: "Que vínculo é esse [...] que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?" Devido à falta de informações sobre o grupo, concluía que só restava a imaginação para descobrir a doutrina da seita e a poesia para floreá-la (Assis, 1944b:412-6).

Euclides da Cunha tentou penetrar em uma camada opaca ao observador: as formas de consciência e de representação em uma comunidade que lhe era estranha, entrevista em meio aos combates e bombardeios, do outro lado da trincheira. Procurou esclarecer o mistério em torno de Canudos, ao afirmar a existência de crenças sebastianistas que tornariam inteligíveis alguns dos aspectos subterrâneos da guerra, como o apelo da mensagem de seu líder e a resistência heróica dos combatentes. O catolicismo devocional presente nos sermões do Conselheiro revela, porém, que o sebastianismo pode ter sido menos difundido do que supôs o autor de Os sertões.

Euclides adotou um modo historiográfico ousado, ao dar um arranjo poético ao conflito, criando uma obra híbrida entre a narrativa e o ensaio, entre a literatura e a história. Lançou um olhar irônico sobre suas próprias crenças, para compreender o horror da guerra e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular. A epopéia gloriosa da República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter de tragédia na violenta intervenção militar que testemunhou em Canudos.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77011997000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Revista de Antropologia - USP

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