segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A Imortalidade da Alma: O “Outro Mundo” Céltico, Mito e Rito Funerário


A Imortalidade da Alma: O “Outro Mundo” Céltico, Mito e Rito Funerário
(parte 1)
Vitor Soares Lares

Bacharel em História
CEIA – UFF
vitorlares@yahoo.com.br

O objetivo deste pequeno artigo é discutir alguns aspectos do imaginário celta sobre a morte e o pós-morte, especialmente aqueles relacionados com uma possível crença em reencarnação e sobre a existência de um outro mundo. Num segundo momento, objetivamos refletir sobre a relação dessas crenças com a tipologia funerária, especialmente com os enterros suntuosos do qual tomaremos com exemplo a tumba de Hochdorf (séc VI a.C.).
Para compreendermos melhor a relação entre estes aspectos, de crença e de prática, dividiremos este trabalho em alguns momentos: no momento inicial, nos dedicaremos a investigar, primeiro refletindo sobre o que nos dizem as fontes e a historiografia, duas modalidades de crença comumente associadas aos celtas: a crença na imortalidade da alma e a crença na existência de um Outro Mundo, como elas se relacionam entre si e de que forma a relação entre elas pode ser compreendida.
Após, discutiremos sobre a morfologia funerária celta, sobre as formas de sepultamento em suas generalidades e algumas especificidades, para por fim verificar a possibilidade de algumas conjecturas ou indicações da relação entre elas e as crenças previamente observadas.

Imortalidade da Alma, Reencarnação e Outro Mundo

Tudo que podemos perceber das antigas crenças célticas a respeito do pós-morte, através de literatura, é advindo de dois grupos de fontes. As primeiras e mais antigas remetem aos comentadores clássicos, gregos e, sobretudo, romanos. As limitações apresentadas por estas fontes são consideráveis uma vez que podemos inquirir as intenções e motivos dos observadores ao escrevê-las, por outro lado elas são de “inestimável valor para a compreensão da sociedade celta na Gália num momento crucial de mudança”. (WAIT, 1995: 490).
O que todas estas fontes apontam em comum para o que nos interessa, contudo, é uma clara associação dos celtas, e dos seus sacerdotes druidas, a uma crença na existência de uma alma imortal, que passa, após a morte, a um outro corpo e assim sucessivamente.Lucano nos diz em Farsalia I que para os celtas “... o mesmo espírito governa um corpo em outro mundo, se eles sabem o que falam, a morte é o meio de uma longa vida”. Pomponius Mela, no livro III, nos fala sobre a doutrina druídica: “Uma de suas doutrinas se espalhou entre o povo, a saber que as almas são imortais e que há uma outra vida entre os mortos, o que os torna mais corajosos na guerra”. Diodoro Sículo diz que:


“a crença de Pitágoras é forte entre eles, que as almas dos homens são
imortais, e que depois de finito o número de anos eles vivem uma segunda
vida onde a alma passa a outro corpo. Isto é a razão pelo qual algumas
pessoas, nos funerais, atiram à pira cartas escritas aos seus parentes mortos,
achando que os mortos serão capazes de lê-las” (apud Tierney, 1960: 250).


Mesmo César em sua campanha na Gália, durante a redação de seus comentários inclui no capítulo em que traça uma comparação dos costumes celtas e germânicos o seguinte comentário:

“Os druidas procuram sobretudo, persuadir que as almas não
morrem jamais, mas passam após a morte de um corpo para o outro. Isto lhes
parece próprio a excitar a coragem suprimindo-lhes o medo da morte” (Bello
Gallico,v.14, liber VI: 127).

Comentários similares reforçando a idéia de imortalidade da alma e uma vida futura num Outro Mundo podem ser encontrados “também em Amiano Marcelino (citando Timágenes) e em Estrabão”, conforme Chadwick (1966: 25,30, 51-2)
O Outro grupo de fontes relevantes pertence ao medievo. São narrativas míticas, parte de uma extensa literatura irlandesa e uma não tão extensa literatura galesa de mesma natureza. Sua legitimidade está na percepção de que esses mitos contêm informações religiosas claramente associadas com o paganismo celta, uma vez que parte dos monges que os escreveram poderiam incluir druidas ou bardos filid convertidos, livres portanto do impedimento de escrever sobre a doutrina imposto pela prática do druidismo.
Por outro lado é preciso ser extremamente cauteloso no seu uso, uma vez que elas representam estruturas religiosas de uma sociedade celta tardia e periférica, provinciana. Muitos de seus aspectos podem não ser facilmente estendidos à todos os grupos celtas, especialmente aos continentais do período clássico. Outro problema que carece de atenção no momento de usar tais fontes é compreender o imenso espaço de tempo que separa a literatura irlandesa-galesa do período céltico clássico no continente Nessas narrativas a presença da idéia de um Outro Mundo é mais destacada do que a de imortalidade da alma, este Outro Mundo aparece de forma superlativa, de natureza idílica ou mesmo paradisíaca. Existe também a mobilidade entre os mundos, não citada nas fontes clássicas, nestas narrativas o acesso a este plano sobrenatural torna-se possível através dos montes Sidh ou mesmo de viagens.
Porém “não fica claro se o Outro Mundo é apenas onde vivem os deuses ou se também inclui lugares onde vivem os mortos” (WAIT, 1995: 490), embora a para alguns como a pesquisadora Miranda Green (1997: 68) a ele pertençam tanto uns, quanto outros.
Destacamos aqui uma passagem que consideramos significativa destes textos, presente no Mabinogion, compilado de histórias galesas, conforme apresentada no conto intitulado, Peredur, filho de Evrwic: Peredur é requisitado por uma bela dama Sidhe para enfrentar um ser chamado Athanc, a dama o conduz até um túmulo em forma de monte, um Sidh, coloca em sua mão uma pedra, para que possa matar o monstro e voltar, ao entrar no Sidh, cruzando o portal mítico, Peredur se depara com a seguinte cena: Um lindo vale, dividido por um rio onde em uma margem chovia e na outra não, cito:

“Sobre uma margem havia um rebanho de carneiros brancos e sobre outra,
um rebanho de carneiros pretos. Cada vez que um carneiro branco balia, um
carneiro preto entrava na água e tornava-se branco. Cada vez que um carneiro
preto balia, um carneiro branco entrava na água e tornava-se preto. Sobre a
borda do rio se erguia uma grande árvore: uma metade da árvore queimava
da raiz à copa, a outra metade ostentava uma folhagem verde”.

Neste fragmento podemos perceber claramente os paradoxos associados ao Outro Mundo, podemos conjecturar que é um mundo onde todas as possibilidades se manifestam ao mesmo tempo, talvez possamos perceber mesmo uma idéia de complementaridade entre os dois mundos, representada pelo equilíbrio cuja existência é inferida pelo comportamento das ovelhas, uma metáfora para uma crença no equilíbrio entre vivos e mortos e a oposição entre perenidade e efemeridade. Todas coexistindo na mesma dimensão de espaço-tempo.
A descrição de comportamento das ovelhas parece uma alegoria que nos permite cogitar a idéia de reencarnação, expressa numa dinâmica de constante troca de população entre os dois mundos, contudo esse fragmento está isolado, não havendo outro onde confirmar esta inferência.
O Outro Mundo seria então um mundo efetivamente “justaposto ou paralelo ao nosso, na medida em que seu habitantes podem (nele) entrar e sair livremente” (BARROS,1994: 96). Ao mesmo tempo seria também parte complementar e indivisível do nosso, local para onde os mortos iriam, talvez, quando morressem mas que, ao terminar um outro tempo determinado, baseado no fragmento supracitado, tornariam a voltar.
Conceituando assim este Outro Mundo nos parece interessante retornar às fontes clássicas e sublinhar que, nelas, a alma separada do corpo neste mundo, habitaria um outro corpo no Outro Mundo. Contudo não se dá atenção à descrição deste Outro Mundo ou à dinâmica inerente de sua existência, embora não haja espaço para duvidar de sua existência: “Um aspecto desta crença que parece ter impressionado particularmente os observadores, foi a concretude do pós-vida” (Wait, 1995: 491).
Resumindo ente ponto, temos dois grupos de fontes para estudar as crenças celtas sobre o pós-morte, um grupo de fontes clássicas mediterrâneas, produzidas por observadores dos quais podemos problematizar as intenções e forma, mas onde aparece com muita clareza associadas aos celtas as idéias de transmigração da alma por vários corpos e de um Outro mundo concreto, influente. Essas fontes não nos dão descrições deste outro mundo, talvez porque estes dados não eram relevantes para o contexto de quem as escreveu, e se referem sobretudo à sociedade celta da Gália mas dão conta de outras partes do continente.
O outro grupo de fontes é medieval, escrita e preservada por monges e são narrativas ricas de lendas e mitos das sociedades irlandesa e galesa. Podem ser problematizadas pelo imenso vácuo de tempo que existe entre elas e a sociedade celta que gerou os mitos ali transcritos, por tratarem de uma sociedade celta periférica e tardia e por seus copiadores serem cristãos, podendo ter alterado ou influenciado sensivelmente a compreensão das narrativas. Neste grupo de fontes delineia-se melhor a idéia de um outro mundo idílico, paradisíaco, aparecem alegorias que podem significar crença na reencarnação mas também aparecem diversas possibilidade de relação com esse Outro Mundo que não são explicitadas nas fontes clássicas: através de elementos mágicos (água, bruma, Sidh) ou viagens. Também é possível neste grupo perceber a
mobilidade dos habitantes do Outro Mundo que podem adentrar livremente o nosso,como os homens adentram o deles em determinadas ocasiões.

Morfologia Funerária

Funerais são de certa forma a melhor possibilidade que um estudioso, um arqueólogo ou historiador, pode ter de tomar contato com a estrutura mítica de uma sociedade desaparecida. Jean-Louis Brunaux diria que: “Seria mais correto ver (o mundo dos mortos) como o terreno de uma ideologia- não simplesmente funerária, mas mais fortemente religiosa e escatológica. Funerais são sem dúvida a prática cuja forma se remete mais diretamente a deliberada escolha movida pela ideologia de uma sociedade”.
Uma das maiores lacunas que os dois grupos de fontes escritas para estudos dos celtas nos lega, é a falta de descrições, quaisquer que sejam, de ritos funerários. Isso nos deixa inteiramente dependentes da arqueologia, que nos permite perceber suas variações mas sem paralelo textuais, não permite verificar se havia na ideologia religiosa uma forma considerada normativa, “certa”, para os ritos funerários, tal como a Ilíada menciona os 12 dias de choro que deveriam preceder a cremação do falecido na Grécia Arcaica (tratando-se de alguém importante obviamente).
Falando especificamente das populações celtas, é importante termos em mente alguns cuidados que são de caráter geral. É importante primeiro entendermos que inumação e cremação conviveram de forma pacífica durante toda a antiguidade não só entre celtas como entre diversos povos da Europa, a preferência por uma ou outra parece sofrer variações não só de caráter regional, mas também de caráter temporal para uma mesma região. Ao conjunto de práticas funerárias reconhecidas como oriundas de uma mesma tradição num conjunto espaço-tempo chamaremos de cultura funerária Outra importante questão é comparar os sepultamentos encontrados com as estimativas populacionais referentes àquela cultura, estimativas estas normalmente avalizadas pelas demais descobertas arqueológicas da mesma região, podendo perceber se tal cultura funerária pode ser compreendida como uma prática generalizada ou aplicada especificamente a determinados grupos sociais.
Especialmente acredito na necessidade de tentar perceber se esta prática funerária pode ser considerada normal ou anormal naquela sociedade. Funerais anormais são usualmente associados a dois grupos: primeiro àqueles que receberam um tipo de morte considerada anormal, indigna ou inadequada (assassinados, atingidos por raios, suicidas, natimortos, sacrificados, e mortes consideradas tabus). São ainda sepultados de forma anormal aqueles que possuíram um modo de vida considerado proscrito, caracterizado como um marginalizado (WAIT, 1995: 495), por atos (por exemplo, um assassino) ou por participar de um subgrupo social específico ou marginalizado (feiticeiros, bruxos, hereges, etc).

No caso Celta, os funerais tinham a função de fazer a passagem da alma do morto para o Outro Mundo, onde ele viveria uma vida em muito similar à anterior, excluindo apenas os aspectos negativos e essencialmente mantendo a estrutura social na qual ele se inseria quando vivo, um chefe presumiria continuar chefe depois de morto, um camponês poderia presumir continuar camponês.
Gerald A. Wait em seu artigo intitulado: Burial and the Otherworld. (1995: 489-511) presente na coletânea organizada por Miranda Green intitulada The Celtic World (1995), analisa diversas formas de rito funerário das sociedades celtas, de diversas localizações espaciais e temporais e as divide da seguinte forma: Tradições célticobritânicas e Tradições do Noroeste europeu.
A análise que faz das tradições britânicas apresentam basicamente quatro tipo de funerais orientadas por motivos diferentes dos quais falaremos de três:
A Tradição do Poço (Pit Tradition): analisada em sua ocorrência no Centro-Sul inglês (também são encontrados enterramentos em poços na França), caracteriza-se pelo depósito de corpos e partes de corpos humanos (Fêmures, cabeças) em poços redondos, que à princípio acreditava-se tratarem de depósitos de grãos desativados, mas que hoje a mais provável hipótese é que fossem poços votivos.
Apesar da riqueza arqueológica desses sepultamentos, estimativas apontam que eles representavam, em porcentagem, menos de 5% da população, o que os caracterizaria como um rito funerário anormal, embora de larga utilização. Crianças e jovens que, pelas mesmas estimativas, seriam a faixa etária predominante na sociedade são sub-representados, tornando-se um pouco mais freqüentes, a partir do séc I a.C.
Conjectura-se que os mortos sepultados nesta tradição sejam pessoas especiais, talvez proscritos ou vítimas de sacrifícios. A literatura especializada acusa que a forma de sepultamento dada a grupos marginalizados usualmente são inversas às formas normativas. Interessante indagar como seria a forma normal, por exemplo, se nesta prática os mortos são depositados com a cabeça orientada para o Sul, o Norte seria a direção correta? Se esta é a exceção qual é a norma social? Neste caso cogita-se uma prática crematória, ou de exposição do corpo ou de depósito em rios e lagos, que não nos deixaram vestígios visíveis.
Os Durotriges da região de Dorset, na costa Sudeste da Britânia, adotaram uma norma funerária que consistia em enterrar os corpos em espécies de cisternas com paredes de pedra e cobertas por barro, acompanhados de alguns bens distintivos da posição social do morto. Alguns vasos de produção local, pedaços de carne (boi para os homens, porco para as mulheres e ovelha para ambos) e muito ocasionalmente broches e braceletes de bronze. Com apenas uma exceção (o Guerreiro de Dorchester, enterrado com ganchos, espelhos, espadas e outros bens) tem todos os indicativos de uma prática funerária normal, mesmo a ausência de crianças é bastante compreensível diante da perspectiva de que elas não faziam parte da sociedade até que completassem uma determinada idade e fossem formalmente aceitas. Porém, há um problema, o reduzido número de enterros conhecidos diante da perspectiva populacional da região pode levar
a crer que era uma prática restrita a um determinado grupo social.
As cremações de Aylesford-Swarling foram adotadas na região de Kent, do meio pro fim do séc I a.C. Trata-se aparentemente de uma tradição funerária importada.
Acredita-se que esta forma normativa de funeral foi trazida pelos belgas em sua fuga da Gália quando do confronto com César. O rito consistia em cremar o corpo, e recolher as cinzas, depositando-as em potes ornamentados. Estes potes ornamentados seriam acomodados em uma urna funerária, usualmente de cerâmica, mas também ha ocorrências de urnas de metal e mesmo depósito dos potes direto em pequenos buracos.
Essas urnas de cerâmica são decoradas com motivos que remetem aos padrões produzidos na região de Champanhe e Normadia, o que reforça a teoria de um rito funerário adotado a partir de uma “intrusão”. As urnas contêm também alguns objetos distintivos de posição social, broches e mesmo itens importados de outras regiões.
Da mesma forma Wait analisa algumas tradições funerárias da Europa ocidental do norte, apresentando alguns exemplos do qual selecionamos dois:
A Tradição da Alemanha Ocidental e Norte da França: esta prática que parece ter sido generalizada já no início da Idade do ferro, continuou, com variações locais, por vários séculos. Ela se baseia numa norma simples de inumações em sepulturas largas, com o corpo orientado no sentido Oeste-Leste (a cabeça sempre a oeste) . Os sepultamentos são usualmente alocados em pequenos cemitérios, geralmente atribuídos à pequenas vilas. A existência de bens na sepultura é comum e geralmente indicativa de uma sociedade pouco hierarquizada.
A Tradição “Late Hallstatt” do Sul e oeste da Alemanha e Leste da França O período tardio da cultura Hallstatt, conhecido como Hallstatt D representou,em resumo, o auge de uma sociedade de chefia centralizada, altamente hierárquica e complexa, organizada em torno das residências dos chefes, da defesa de topos de colinas fortificados e densamente povoadas e de uma altíssima especialização nos ofícios artesanais. Também foi um período rico em contatos com o mundo mediterrâneo, especialmente as sociedades etrusca e grega, através da cidade de Marselha. Ao redor dessas fortificações foram encontradas uma certa quantidade de depósitos funerários, alguns dos quais contendo imensas riquezas: as tumbas dos chefes (Fürstengraber).
Esses depósitos (barrows) soberbos são caracterizados por inumações em câmaras de madeira acompanhadas por carros de quatro rodas e arreios de cavalos. Em adição à estes objetos, tais enterramentos contêm luxuosos bens de prestígio, incluindo objetos gregos e etruscos, ouro, jóias, coral e muito mais.
Revista Brathair

2 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante a diversidade de pensamentos pelo mundo.
Imagino as múmias egípcias e os suntuosos preparos para manter perfeito um corpo sem vida.

Partindo dos celtas para a cremação, a alma, então onde ficaria, e como seria cultuada.

De minha parte, acredito que a alma é a nossa inteligência. Como católica, questiono e me recuso a aceitar a tal ressurreição dos mortos e o dia do Juízo Final.

Já imaginou!

Interessante. Lucram as funerárárias e os atuais ossuários.

Outra postagem que questiona e enriquece!

Parabéns, Eduardo!

Beijos

Mirse

Pedagogia Inclusiva disse...

Oi, dá uma olhadinha lá no meu blog que tem selinho pra vc...

O selinho é feminino, mas não é pela cara, é pelo significado.