HEGEL E A HISTÓRIA
Folha de S.Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 1978.
Não preciso dizer o que é História Universal. Mas é possível que seja necessário explicar o que é Filosofia da História Universal, e por que pretendemos tratar filosoficamente a História. A Filosofia da História não é outra coisa senão a consideração pensante da História; e o homem é um ser que não pode deixar de pensar em nenhum momento. O homem é um ser pensante, e é isto o que o distingue do animal.
Em tudo que é humano —a sensação, o saber, o conhecimento, o apetite, a vontade— e que, sendo humano, não é animal —há um pensamento. Ninguém pode, portanto, ocupar-se com a História senão sob a diretriz de um pensamento. O apelo ao ato de pensar, à participação universal do pensamento em tudo o que é humano e, pois, também na História, pode parecer insuficiente, porque julgamos que o pensamento está subordinado ao ser, do qual faz sua base e sua diretriz.
À Filosofia, porém, são atribuídos pensamentos que lhe são próprios, especificamente próprios, que a especulação gera por si mesma, sem levar em consideração o que existe. Com esses pensamentos, é que a Filosofia se dirige para a História, tratando-a como um material, e não a deixando tal como é. É uma ordenação armada pelo pensamento, que, assim, constrói a priori uma História. A História se refere ao que aconteceu. Esse conceito, que se determina por si mesmo, parece, assim, conflitar com sua própria consideração. Mas o que é preciso é reunir os acontecimentos de tal modo que possamos representá-los como se estivessem diante de nós. É preciso, por isso, estabelecer a conexão dos acontecimentos, descobrindo o que se chama de "História pragmática", isto é, a sucessão das causas e fundamentos das coisas acontecidas.
Torna-se, assim, necessário um conceito, que não deve, entretanto, prestar-se a uma contradição a si mesmo. Os acontecimentos devem sempre constituir a base. A atividade do conceito se reduz ao conteúdo formal, universal, dos fatos, aos princípios e às regras. É forçoso, então, reconhecer que o pensamento lógico é necessário para as deduções que assim se fazem da História. Embora essas deduções sejam decorrentes da experiência, a Filosofia, porém, entende por conceito uma outra coisa. Nela, o conceber é a própria atividade do conceito, e não a concorrência de uma matéria e de uma forma, cada uma delas com sua própria origem. Uma aliança como a da História pragmática não basta ao conceito, em Filosofia. Pois na Filosofia o conceito toma sua matéria e seu conteúdo essencialmente de si mesmo. A esse respeito, e apesar da conexão indicada, subsiste a mesma diferença: o acontecido e a independência do conceito se opõem reciprocamente. Apesar disso, podemos encontrar a mesma relação dentro da própria História (embora prescindindo inteiramente da Filosofia), desde que situada numa perspectiva mais alta. Antes de tudo, vemos na História ingredientes e condições naturais distantes de um conceito qualquer. Vemos diversas formas do arbítrio humano e da necessidade externa.
Por outro lado, colocamos diante de tudo isso o pensamento de uma necessidade superior, de uma eterna justiça e de um amor —fim último, absoluto, que é verdade em si e por si. Esse contraste repousa sobre os elementos abstratos em contra-posição ao ser natural, sobre a liberdade e necessidade do conceito. É uma contraposição que nos interessa sob muitos aspectos e compromete, igualmente, nossas idéias da História Universal. A História só deve recolher na verdade o que é e o que foi, os acontecimentos e os feitos. É tanto mais verdadeira, quanto mais exclusivamente se cinge aos dados —o que não se consegue gratuitamente, mas através de várias investigações, conectadas também com o pensamento— e quanto mais exclusivamente coloca os acontecimentos como um fim. O trabalho da Filosofia parece conflitar com esse fim... É certo que se censura da Filosofia por levar alguns pensamentos à História e por considerá-la à luz desses pensamentos. Mas, na verdade, o único pensamento que a Filosofia leva à História é o simples pensamento da razão, isto é, de que a razão governa o mundo, e que, portanto, a História Universal é um acontecimento racional. Essa convicção e evidência é uma suposição, com referência à História como tal. Para a Filosofia, porém, não se trata de uma suposição. Nela se demonstra, mediante o conhecimento especulativo, que a razão é a substância. É como potência infinita, a matéria infinita de toda vida natural e espiritual —e como forma também infinita, a realização de seu conteúdo.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o mais importante dos filósofos do idealismo alemão, é considerado por Julian Marias, como um dos quatro ou seis maiores pensadores da humanidade. Com ele se conclui uma etapa da filosofia, e de sua herança intelectual se nutriam as ciências do espírito no século XIX. Pode-se mesmo dizer que Marx não teria podido instrumentar seu pensamento sem a dialética hegeliana. Estudou filosofia e teologia em Tubigen, onde se fez sua íntima e duradoura amizade com Schelling e o poeta Hoelderlin. Foi jornalista em Bamberg, reitor de ginásio e professor em Heldelberg e Berlim, onde se tornou centro de uma influente escola. Morreu de cólera nesta última cidade. Entre suas obras mais notáveis estão a "Fenomenologia do Espírito", a "Enciclopédia da Ciência Filosófica", a "Filosofia da Religião", etc. O texto que hoje publicamos é de "Vorlesung ueber die Philosophie der Weltgeschichte", em tradução do original alemão por Gerardo Mello Mourão.
Folha de S.Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 1978.
Não preciso dizer o que é História Universal. Mas é possível que seja necessário explicar o que é Filosofia da História Universal, e por que pretendemos tratar filosoficamente a História. A Filosofia da História não é outra coisa senão a consideração pensante da História; e o homem é um ser que não pode deixar de pensar em nenhum momento. O homem é um ser pensante, e é isto o que o distingue do animal.
Em tudo que é humano —a sensação, o saber, o conhecimento, o apetite, a vontade— e que, sendo humano, não é animal —há um pensamento. Ninguém pode, portanto, ocupar-se com a História senão sob a diretriz de um pensamento. O apelo ao ato de pensar, à participação universal do pensamento em tudo o que é humano e, pois, também na História, pode parecer insuficiente, porque julgamos que o pensamento está subordinado ao ser, do qual faz sua base e sua diretriz.
À Filosofia, porém, são atribuídos pensamentos que lhe são próprios, especificamente próprios, que a especulação gera por si mesma, sem levar em consideração o que existe. Com esses pensamentos, é que a Filosofia se dirige para a História, tratando-a como um material, e não a deixando tal como é. É uma ordenação armada pelo pensamento, que, assim, constrói a priori uma História. A História se refere ao que aconteceu. Esse conceito, que se determina por si mesmo, parece, assim, conflitar com sua própria consideração. Mas o que é preciso é reunir os acontecimentos de tal modo que possamos representá-los como se estivessem diante de nós. É preciso, por isso, estabelecer a conexão dos acontecimentos, descobrindo o que se chama de "História pragmática", isto é, a sucessão das causas e fundamentos das coisas acontecidas.
Torna-se, assim, necessário um conceito, que não deve, entretanto, prestar-se a uma contradição a si mesmo. Os acontecimentos devem sempre constituir a base. A atividade do conceito se reduz ao conteúdo formal, universal, dos fatos, aos princípios e às regras. É forçoso, então, reconhecer que o pensamento lógico é necessário para as deduções que assim se fazem da História. Embora essas deduções sejam decorrentes da experiência, a Filosofia, porém, entende por conceito uma outra coisa. Nela, o conceber é a própria atividade do conceito, e não a concorrência de uma matéria e de uma forma, cada uma delas com sua própria origem. Uma aliança como a da História pragmática não basta ao conceito, em Filosofia. Pois na Filosofia o conceito toma sua matéria e seu conteúdo essencialmente de si mesmo. A esse respeito, e apesar da conexão indicada, subsiste a mesma diferença: o acontecido e a independência do conceito se opõem reciprocamente. Apesar disso, podemos encontrar a mesma relação dentro da própria História (embora prescindindo inteiramente da Filosofia), desde que situada numa perspectiva mais alta. Antes de tudo, vemos na História ingredientes e condições naturais distantes de um conceito qualquer. Vemos diversas formas do arbítrio humano e da necessidade externa.
Por outro lado, colocamos diante de tudo isso o pensamento de uma necessidade superior, de uma eterna justiça e de um amor —fim último, absoluto, que é verdade em si e por si. Esse contraste repousa sobre os elementos abstratos em contra-posição ao ser natural, sobre a liberdade e necessidade do conceito. É uma contraposição que nos interessa sob muitos aspectos e compromete, igualmente, nossas idéias da História Universal. A História só deve recolher na verdade o que é e o que foi, os acontecimentos e os feitos. É tanto mais verdadeira, quanto mais exclusivamente se cinge aos dados —o que não se consegue gratuitamente, mas através de várias investigações, conectadas também com o pensamento— e quanto mais exclusivamente coloca os acontecimentos como um fim. O trabalho da Filosofia parece conflitar com esse fim... É certo que se censura da Filosofia por levar alguns pensamentos à História e por considerá-la à luz desses pensamentos. Mas, na verdade, o único pensamento que a Filosofia leva à História é o simples pensamento da razão, isto é, de que a razão governa o mundo, e que, portanto, a História Universal é um acontecimento racional. Essa convicção e evidência é uma suposição, com referência à História como tal. Para a Filosofia, porém, não se trata de uma suposição. Nela se demonstra, mediante o conhecimento especulativo, que a razão é a substância. É como potência infinita, a matéria infinita de toda vida natural e espiritual —e como forma também infinita, a realização de seu conteúdo.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o mais importante dos filósofos do idealismo alemão, é considerado por Julian Marias, como um dos quatro ou seis maiores pensadores da humanidade. Com ele se conclui uma etapa da filosofia, e de sua herança intelectual se nutriam as ciências do espírito no século XIX. Pode-se mesmo dizer que Marx não teria podido instrumentar seu pensamento sem a dialética hegeliana. Estudou filosofia e teologia em Tubigen, onde se fez sua íntima e duradoura amizade com Schelling e o poeta Hoelderlin. Foi jornalista em Bamberg, reitor de ginásio e professor em Heldelberg e Berlim, onde se tornou centro de uma influente escola. Morreu de cólera nesta última cidade. Entre suas obras mais notáveis estão a "Fenomenologia do Espírito", a "Enciclopédia da Ciência Filosófica", a "Filosofia da Religião", etc. O texto que hoje publicamos é de "Vorlesung ueber die Philosophie der Weltgeschichte", em tradução do original alemão por Gerardo Mello Mourão.
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