Veneno remédio – O FUTEBOL E O BRASIL
Rogério Santana1
Livro: Veneno remédio–o futebol e o Brasil
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
São Paulo, 2008, 446 páginas
A antinomia empregada por José Miguel Wisnik em seu mais recente livro, estampada de imediato no título, dá o tom interpretativo que já se anuncia no subtítulo – o futebol e o Brasil. Embora a interpretação seja recorrente na obra, o que beneficia a leitura linear do início ao fim, talvez algum leitor se sinta motivado a começar o livro pelo fim, pelo quarto e último capítulo, “Bola ao alto: interpretações do Brasil”, impulsionado, é bem provável, pelo desejo de ver a hermenêutica como sublimação de uma prática corriqueira aos olhos de qualquer brasileiro. Talvez a motivação aumente quando esse leitor, no primeiro parágrafo do capítulo, deparar-se com a seguinte frase: “De fato, se a formação da literatura brasileira desemboca em Machado, a do futebol brasileiro desemboca em Pelé”. A proximidade com que trata futebol e literatura faz de Veneno remédio um livro singular, na medida em que associa o esforço físico praticado no futebol ao campo da construção das idéias praticado na literatura, em especial na poesia.
O autor está determinado a incluir de vez o esporte mais popular por aqui na arena das interpretações sobre a passagem do Brasil escravocrata para o Brasil moderno. Invertendo a formulação de Roberto Schwarz, José Miguel lança a concepção de “lugar fora das idéias” como “vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica”. Para dar conta dessa reinvenção, o futebol brasileiro precisou passar pela incorporação de uma camada social que inicialmente não tinha lugar na elite econômica e racial, nos vários aspectos possíveis, do esporte introduzido pelos ingleses no final do século XIX.
Wisnik avança em suas interpretações e, em capítulo precioso a elas, arremata que o futebol brasileiro realiza aquilo que a sociedade brasileira “sistematicamente” não realiza: “democracia racial em ato, elevação dos pobres à máxima importância, competência inequívoca no domínio de um código internacional”. Como o autor corre pela via da hermenêutica antropológico-literária, não aparecem em sua pena dados sociológicos no âmbito da estatística que dessem perfil numérico a sua conclusão de elevação dos pobres à máxima importância. Como se sabe por vias corriqueiras, o futebol brasileiro dá condições de importância, e de importância financeira, somente a uma parcela ínfima frente ao universo de profissionais que vivem da prática futebolística. Com isso, a análise do autor-torcedor do Santos cobre somente a área da representação cultural do esporte mais popular no Brasil.
Mas fique claro que isso não é pouco. Para a antinomia do título, Wisnik reserva fontes de idéias que fazem dela uma chave de compreensão para meandros discutidos pela mais relevante intelectualidade brasileira. E a seu último capítulo ele destina essa antinomia nas concepções de Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. Para o primeiro, a “formação do Brasil contemporâneo” conteria “um veneno contaminante”, ao passo que, para o segundo, o mesmo processo seria um remédio, à base da “civilização mestiça e original dos trópicos”, destilando, essa formação, em Sérgio Buarque de Holanda, “um implícito e ambivalente veneno remédio”, na figura do “homem cordial”, truculento e afável.
Ainda no âmbito desse ambiente dos contrários, José Miguel Wisnik identifica o vértice apontado por Caio Prado e Freyre, “a imbricação do público e do privado” e a “confusão característica entre a política e a economia”. Esse jogo de opostos, visto pelo autor de Raízes do Brasil como permeabilidade entre o público e o privado, vai, segundo José Miguel, ao encontro do estilo singular do jogo que caracteriza o futebol brasileiro. Mas a insolvência da dualidade nacional seria apresentada ainda com mais radicalidade, na visão de Fernando Novais, que com base no livro do historiador preconiza que “se o Brasil permanece Brasil não se moderniza, se se moderniza deixa de ser Brasil”. A irredutibilidade da formação social brasileira está dada no apagamento de uma das partes se a antinomia se desfaz. Assim, o que foi “dialética da malandragem”, na formulação de Antonio Candido, passa na primeira metade do século XX a “dialética dura da marginalidade”, em que nem a própria dialética estaria integralmente contemplada, ficando, sim, “a lembrança surda e recalcada de um custo social não redimido”. Paralelamente, ainda há a crítica à concepção de mestiçagem, formulada por uma militância racialista de inspiração norte-americana, que sustenta a oposição inequívoca entre branco e negro. A problematização dualista sugere ao autor de Veneno remédio formulação categórica: “A droga- Brasil é irredutível a uma lógica simplista”.
Nem a hipótese do “mundo sem culpa”, no dizer de Roberto Schwarz sobre a contemplação enunciada por Antonio Candido sob influência de Sérgio Buarque de Holanda, resgataria a unidade frente à antinomia insuperável, pois ela não passaria de “um devaneio do mais alto nível”. Mas na contramão do crítico literário dedicado a Machado de Assis, Wisnik tira do menos explícito em “Dialética da malandragem” uma conformação da “realidade movediça”, lastreada pela “malandragem carnavalizante e a marginalidade terrífica confundida com a ordem”.
Essa interpretação estimulante contida em Veneno remédio sai das longas e profícuas análises que o autor empreende principalmente no segundo e terceiro capítulos da obra. No primeiro deles, “a quadratura do circo: a invenção do futebol”, o esporte jogado com os pés pela maioria é submetido à teorização, cujos fundamentos lançam dois conceitos centrais para a compreensão da prática esportiva mais popular no Brasil: “otimização do rendimento” e “lógica da diferença”.
Se na quadratura do circo o futebol passa de maneira incompleta do “não racionalizável” à “quantificação dos resultados numéricos”, o que acaba resultando nas regras do jogo, é com a perspectiva da otimização do rendimento que se compreende o planejamento do futebol moderno em função da eficiência, dada pela objetividade estrita e pela ocupação racional dos espaços. Como um dos princípios metodológicos de José Miguel Wisnik é a expansão do conceito para outras fronteiras, para esse ele observa o alcance da otimização no âmbito da empresa, que disputa o espaço futebolístico a fim de emplacar suas logomarcas.
Dentro desse jogo com certas marcações, “a imprevisibilidade produzida” reordena o jogo, num contraponto com a meta de rendimento, criando o inesperado, expresso em dribles, volutas, volteios, firulas, folhas secas, corta-luzes, chapéus e passes inesperados no vazio. Essa imprevisibilidade institui a lógica da diferença, que implanta um jogo à base do que está por vir na ordem do desejo de resultado. Em última palavra, Wisnik diz que a lógica da diferença é obra da invenção poética.
A associação entre futebol e poesia foi a primeira motivação para o autor pensar no livro Veneno remédio, de acordo com seu relato nas “Preliminares”, primeiro capítulo. Píer Paolo Pasolini, em ensaio de 1971, compara o futebol europeu com a prosa e o futebol sul-americano, em particular o brasileiro, com a poesia. Estimulado por esse “drible” intelectual, o crítico literário demonstra em detalhes os meandros desse futebol poético, em capítulo intitulado “A elipse: o futebol brasileiro”, cujo princípio norteador de suas conquistas está na lógica da diferença.
Revista UFG
Rogério Santana1
Livro: Veneno remédio–o futebol e o Brasil
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
São Paulo, 2008, 446 páginas
A antinomia empregada por José Miguel Wisnik em seu mais recente livro, estampada de imediato no título, dá o tom interpretativo que já se anuncia no subtítulo – o futebol e o Brasil. Embora a interpretação seja recorrente na obra, o que beneficia a leitura linear do início ao fim, talvez algum leitor se sinta motivado a começar o livro pelo fim, pelo quarto e último capítulo, “Bola ao alto: interpretações do Brasil”, impulsionado, é bem provável, pelo desejo de ver a hermenêutica como sublimação de uma prática corriqueira aos olhos de qualquer brasileiro. Talvez a motivação aumente quando esse leitor, no primeiro parágrafo do capítulo, deparar-se com a seguinte frase: “De fato, se a formação da literatura brasileira desemboca em Machado, a do futebol brasileiro desemboca em Pelé”. A proximidade com que trata futebol e literatura faz de Veneno remédio um livro singular, na medida em que associa o esforço físico praticado no futebol ao campo da construção das idéias praticado na literatura, em especial na poesia.
O autor está determinado a incluir de vez o esporte mais popular por aqui na arena das interpretações sobre a passagem do Brasil escravocrata para o Brasil moderno. Invertendo a formulação de Roberto Schwarz, José Miguel lança a concepção de “lugar fora das idéias” como “vetor inconsciente por meio do qual o substrato histórico e atávico da escravidão se reinventou de forma elíptica, artística e lúdica”. Para dar conta dessa reinvenção, o futebol brasileiro precisou passar pela incorporação de uma camada social que inicialmente não tinha lugar na elite econômica e racial, nos vários aspectos possíveis, do esporte introduzido pelos ingleses no final do século XIX.
Wisnik avança em suas interpretações e, em capítulo precioso a elas, arremata que o futebol brasileiro realiza aquilo que a sociedade brasileira “sistematicamente” não realiza: “democracia racial em ato, elevação dos pobres à máxima importância, competência inequívoca no domínio de um código internacional”. Como o autor corre pela via da hermenêutica antropológico-literária, não aparecem em sua pena dados sociológicos no âmbito da estatística que dessem perfil numérico a sua conclusão de elevação dos pobres à máxima importância. Como se sabe por vias corriqueiras, o futebol brasileiro dá condições de importância, e de importância financeira, somente a uma parcela ínfima frente ao universo de profissionais que vivem da prática futebolística. Com isso, a análise do autor-torcedor do Santos cobre somente a área da representação cultural do esporte mais popular no Brasil.
Mas fique claro que isso não é pouco. Para a antinomia do título, Wisnik reserva fontes de idéias que fazem dela uma chave de compreensão para meandros discutidos pela mais relevante intelectualidade brasileira. E a seu último capítulo ele destina essa antinomia nas concepções de Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. Para o primeiro, a “formação do Brasil contemporâneo” conteria “um veneno contaminante”, ao passo que, para o segundo, o mesmo processo seria um remédio, à base da “civilização mestiça e original dos trópicos”, destilando, essa formação, em Sérgio Buarque de Holanda, “um implícito e ambivalente veneno remédio”, na figura do “homem cordial”, truculento e afável.
Ainda no âmbito desse ambiente dos contrários, José Miguel Wisnik identifica o vértice apontado por Caio Prado e Freyre, “a imbricação do público e do privado” e a “confusão característica entre a política e a economia”. Esse jogo de opostos, visto pelo autor de Raízes do Brasil como permeabilidade entre o público e o privado, vai, segundo José Miguel, ao encontro do estilo singular do jogo que caracteriza o futebol brasileiro. Mas a insolvência da dualidade nacional seria apresentada ainda com mais radicalidade, na visão de Fernando Novais, que com base no livro do historiador preconiza que “se o Brasil permanece Brasil não se moderniza, se se moderniza deixa de ser Brasil”. A irredutibilidade da formação social brasileira está dada no apagamento de uma das partes se a antinomia se desfaz. Assim, o que foi “dialética da malandragem”, na formulação de Antonio Candido, passa na primeira metade do século XX a “dialética dura da marginalidade”, em que nem a própria dialética estaria integralmente contemplada, ficando, sim, “a lembrança surda e recalcada de um custo social não redimido”. Paralelamente, ainda há a crítica à concepção de mestiçagem, formulada por uma militância racialista de inspiração norte-americana, que sustenta a oposição inequívoca entre branco e negro. A problematização dualista sugere ao autor de Veneno remédio formulação categórica: “A droga- Brasil é irredutível a uma lógica simplista”.
Nem a hipótese do “mundo sem culpa”, no dizer de Roberto Schwarz sobre a contemplação enunciada por Antonio Candido sob influência de Sérgio Buarque de Holanda, resgataria a unidade frente à antinomia insuperável, pois ela não passaria de “um devaneio do mais alto nível”. Mas na contramão do crítico literário dedicado a Machado de Assis, Wisnik tira do menos explícito em “Dialética da malandragem” uma conformação da “realidade movediça”, lastreada pela “malandragem carnavalizante e a marginalidade terrífica confundida com a ordem”.
Essa interpretação estimulante contida em Veneno remédio sai das longas e profícuas análises que o autor empreende principalmente no segundo e terceiro capítulos da obra. No primeiro deles, “a quadratura do circo: a invenção do futebol”, o esporte jogado com os pés pela maioria é submetido à teorização, cujos fundamentos lançam dois conceitos centrais para a compreensão da prática esportiva mais popular no Brasil: “otimização do rendimento” e “lógica da diferença”.
Se na quadratura do circo o futebol passa de maneira incompleta do “não racionalizável” à “quantificação dos resultados numéricos”, o que acaba resultando nas regras do jogo, é com a perspectiva da otimização do rendimento que se compreende o planejamento do futebol moderno em função da eficiência, dada pela objetividade estrita e pela ocupação racional dos espaços. Como um dos princípios metodológicos de José Miguel Wisnik é a expansão do conceito para outras fronteiras, para esse ele observa o alcance da otimização no âmbito da empresa, que disputa o espaço futebolístico a fim de emplacar suas logomarcas.
Dentro desse jogo com certas marcações, “a imprevisibilidade produzida” reordena o jogo, num contraponto com a meta de rendimento, criando o inesperado, expresso em dribles, volutas, volteios, firulas, folhas secas, corta-luzes, chapéus e passes inesperados no vazio. Essa imprevisibilidade institui a lógica da diferença, que implanta um jogo à base do que está por vir na ordem do desejo de resultado. Em última palavra, Wisnik diz que a lógica da diferença é obra da invenção poética.
A associação entre futebol e poesia foi a primeira motivação para o autor pensar no livro Veneno remédio, de acordo com seu relato nas “Preliminares”, primeiro capítulo. Píer Paolo Pasolini, em ensaio de 1971, compara o futebol europeu com a prosa e o futebol sul-americano, em particular o brasileiro, com a poesia. Estimulado por esse “drible” intelectual, o crítico literário demonstra em detalhes os meandros desse futebol poético, em capítulo intitulado “A elipse: o futebol brasileiro”, cujo princípio norteador de suas conquistas está na lógica da diferença.
Revista UFG
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