segunda-feira, 26 de outubro de 2009

VISÕES DA MORTE NA HISTÓRIA DOS FRANCOS DE GREGÓRIO DE TOURS (parte 2 - final)


VISÕES DA MORTE NA HISTÓRIA DOS FRANCOS DE GREGÓRIO DE TOURS
Autor: Ana Cristina Campos Rodrigues



Além de trazer a honra para aqueles que morressem de maneira justa ou santa 28 a morte também poderia provocar outros efeitos. A morte de um monge que possuía uma ‘grande santidade’ fez com que sua cela tremesse até que retirassem o corpo de lá29. É marcante também o impacto das relíquias de santos nessa sociedade, e este não passa despercebido a Gregório de Tours. O óleo da lamparina da tumba de São Nicétio, por exemplo,



“dava luz aos olhos dos cegos, ele caçava os demônios nos corpos dos
possuídos, ele dava saúde aos membros paralisados e é em nossos [de
Gregório] tempos um grande conforto para todas as doenças.”30



Sobre a tumba de Médard, bispo de Noyon, conservaram-se “ferros e correntes de prisioneiros que estavam rompidas e destruídas (...) como sinal de sua virtude miraculosa” 31.



Aliás, o lugar de repouso final era extremamente importante. Basílicas eram construídas sobre corpos de pessoas importantes, santos principalmente. O já citado Médard teve como lugar de repouso eterno uma basílica construída pelos reis Childeberto e Sigeberto, sendo que o próprio Childeberto foi enterrado ali após a sua morte 32. A piedosa rainha Clotilde, mãe desse rei, foi enterrada ao lado do seu marido, o rei Clóvis, e de outros membros da família33 na basílica de São Pedro, sendo que ela própria, em vida, construíra a basílica onde repousavam os restos
mortais da bem-aventurada Geneviéve 34.
Não só o local onde o corpo iria repousar tinha grande importância, mas também era importante como se daria esse enterro; logo, em vários capítulos da obra aparecem citados procissões e cânticos que as acompanhavam .35
Com tudo feito da maneira correta, após “entregar a alma” e ser enterrado, o morto deveria permanecer no lugar que lhe fora destinado, sem tornar a incomodar os vivos. Jean Claude Schmitt aponta para a pequena quantidade de relatos sobre aparições de pessoas mortas aos vivos na Alta Idade Média. Um desses relatos encontra-se justamente na História dos Francos, quando um viúvo é atormentado em sonhos pela esposa e pelo amigo, ambos assassinados por ele, em uma crise de ciúmes36.
Eis então, descritos por Gregório de Tours, alguns dos aspectos do que Ariés chamou de “morte domada”. Era um longo processo ritual, que preparava passo a passo o cristão a finalmente encontrar o seu destino, de acordo com o suas ações terrenas. Claro que nem sempre esse processo conseguia se concretizar, como é o caso da “morte súbita” ou da “morte terrível’, que segundo Ariés eram exceções 37.
Podemos então afirmar que era dessa forma que a morte acontecia, de maneira geral, na Europa da Alta Idade Média, mais particularmente na região do reino dos francos?
Precipitado tirar tal conclusão da análise da obra de Gregório de Tours. Há um elemento faltante nos seus relatos, que não permite que tracemos um quadro preciso. Entre reis, guerreiros , funcionários reais, bispos, abades e homens santos, não há um relato de morte do camponês, do escravo, do servo, do aldeão. Nem mesmo quando descreve os diversos quadros de fomes, pestes e epidemias, o bispo revela como aqueles situados na camada mais desafortunada da sociedade
regiam à chegada da sua última hora. Como se suas mortes não valessem ser relatadas.
Como parte de um discurso promovido por aquela que buscava tornar-se a instituição máxima de poder nesse mundo, a Igreja, a História dos Francos retrata a posição desta perante vários aspectos da vida...e da morte. Não compreende dentro de si a visão da maioria, inclusive porque buscava suprimi-la, procurando transformar o discurso cristão na verdade.


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Revista Cantareira

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