sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Islão e O Ocidente. Uma Harmonia Dissonante de Civilizações

Revisitar as Raízes do Choque Civilizacional. O Islão e o Ocidente na Travessia dos Séculos

João Pedro Vieira

Christopher J. Walker.
O Islão e O Ocidente. Uma Harmonia Dissonante de Civilizações.
Lisboa, Edições 70, 2006, 302 páginas


UMA PONTE ENTRE CIVILIZAÇÕES

A história das relações entre o Ocidente e o islão tornou-se um tema clássico da produção intelectual ocidental das últimas décadas. O mediatismo recentemente adquirido pela actuação das organizações terroristas islâmicas veio expandir poderosamente a atenção e sensibilidade dos investigadores e do público ocidental para o islão, sendo precisamente neste contexto que a presente tradução portuguesa da obra de Christopher Walker se situa.

Conquanto não ao nível de autores especializados como Bernard Lewis, Walker, autor de duas publicações sobre a história contemporânea da Arménia e dotado de uma experiência profissional diversa ligada à Sotheby’s e à Penguin, procura escrever «um estudo das relações entre o Oriente e o Ocidente» (p. 10) ao longo de nove capítulos. Obra de síntese, O Islão e o Ocidente convoca para a sua construção uma diversidade de temáticas, recursos expressivos e tipos de discurso aplicados ao estudo não só das relações entre as duas civilizações, mas igualmente da representação do islão entre as elites europeias e da sua importância no desenvolvimento da civilização ocidental.

Nessa medida, a obra cobre um vasto lapso cronológico que se estende desde o século iv d. C. até às vésperas da I Guerra Mundial e que corresponde ao desenvolvimento de um trabalho historiográfico não raro atravessado por momentos de criatividade literária, produzindo uma síntese cuja orientação global se fixa na valorização dos aspectos positivos do contacto e relação multissecular entre o islão e o Ocidente.



UMA HISTÓRIA DAS RELAÇÕES ENTRE ISLÃO E OCIDENTE?

A problematização do significado civilizacional das alianças informais de Isabel I e da rainha Vitória com o Império Otomano marca a abertura do estudo e lança o interesse de uma indagação histórica que explique o facto de tais opções políticas não terem suscitado grande celeuma nas respectivas sociedades. Tais contactos, assim como as experiências pretensamente multiculturais do al-Andalus e da Sicília, demonstram a possibilidade de uma coexistência pacífica e tolerante e contrastam veementemente com a época das Cruzadas, que merece a profunda reprovação do autor.

É a necessidade de explicar as origens profundas das Cruzadas que leva o autor a recuar até ao século iv d. C. para analisar as origens da peregrinação a Jerusalém como fenómeno religioso cristão. Para o autor, esse foi um momento de ressurgência dos aspectos «totémicos», sensitivos e politeístas que o cristianismo primitivo expurgara da religião. Paralelamente, também os conflitos político-militares entre bizantinos e sassânidas tinham integrado a conquista de espaços sagrados e de relíquias, favorecendo a imbricação entre política, religião e ideologia. O conflito estrutural entre os dois impérios enfraqueceu-os e abriu espaço para a afirmação político-militar e religiosa do islão, que oferecia, segundo o autor, uma simplicidade tolerante e unificadora a um universo religioso povoado por sinuosidades teológicas e perseguições.

Inicialmente, o islão era uma religião pouco controversa, como atestam diversos testemunhos literários sírios, arménios e ocidentais dos primeiros séculos do islão. As raízes cristãs do islão eram reconhecidas, tanto mais que a nova religião era considerada pelos teólogos cristãos orientais como uma derivação heterodoxa do cristianismo. Datam desta época os primeiros contactos diplomáticos entre o Ocidente e o islão, quando ainda não existia um antagonismo pronunciado entre os dois mundos e o islão vivia um intenso florescimento civilizacional a que corresponderam, segundo Walker, grandes manifestações de coexistência pacífica na Palestina pré-cruzada e já no al-Andalus.

Todavia, o relacionamento entre o Ocidente e o islão sofreu uma profunda transformação entre os séculos xi e xiii, com o movimento das Cruzadas. Deste modo, o capítulo 2 é preenchido por uma visão altamente crítica sobre as Cruzadas e as suas consequências, não se inibindo o autor de adoptar uma posição moralizada – e.g., repreende a arrogância da ideologia de cruzada como interpretação abusiva da vontade divina. Para o autor, a militarização do cristianismo ocidental destruiu a relação entre as religiões e assinalou o início de um período obscuro e sangrento. A afirmação da intolerância, da violência e da brutalidade causou atrocidades que, no entanto, não destruíram universalmente a relação entre cristãos e muçulmanos, e foi de facto no al-Andalus do século xi e na Sicília normanda medieval que a coexistência, a tolerância e a cooperação atingiram supostamente o seu auge.

O encerramento da época das Cruzadas ocorre num momento em que «o cres-cimento do conhecimento estava a devolver aos europeus o uso da razão» (p. 57). O desvanecimento desse movimento, representando o fim da perversão e da depravação humana, foi forçado quer pelo despontar do conhecimento na Europa, quer pela transformação do quadro geopolítico internacional e pela progressiva secundarização da religião na administração do Estado e na diplomacia internacional.

No capítulo 3, o leitor é levado num roteiro cultural pelo plurissecular processo de transmissão do saber clássico ao islão e pelo desenvolvimento da cultura islâmica, considerando o conhecimento filosófico e teológico e percorrendo o pensamento filosófico desde Platão e Aristóteles a Ibn S¯ın¯a, al-R¯az¯ı e Ibn Ruˇsd, entre outros. Contudo, a análise é guiada pela história europeia, ou seja, é o processo de «perda e recuperação do saber» pela Europa que importa explorar, num momento em que o conservadorismo político-religioso se começava a impor no mundo islâmico e a Europa redescobria o legado clássico. Porém, a Europa estava também a assimilar um legado islâmico, por exemplo, com a difusão do averroísmo, influente na filosofia e teologia medievais europeias.

Lentamente, as elites europeias desenvolviam uma nova atitude face ao islão francamente divergente do espírito cruzadístico e anti-islâmico, processo acompanhado e estimulado pelo incremento dos contactos comerciais e diplomáticos. Entretanto, conforme sintetiza o capítulo 4, o Médio Oriente começava a sentir as consequências dramáticas da infiltração turca e mongol. Do caos político resultou uma reorganização drástica do quadro geopolítico da região, que passou a ser dominado no século xvi pelo Império Otomano e pela dinastia safávida, potências que se enfrentavam num conflito de grandes proporções. Por outro lado, a Turquia otomana vinha agora colocar as fronteiras da Europa Oriental e Central sob pressão.

É esta a base do período moderno das relações entre a Europa e o islão e o pano de fundo do início de relações diplomáticas directas entre a Inglaterra, por um lado, e o Império Otomano e a Pérsia safávida, por outro. A narrativa do autor entra então, nos capítulos 5 e 6, num registo mais biográfico e centra-se, sem esquecer o contexto religioso europeu resultante da Reforma e da reacção tridentina, no percurso de William Harborne, Edward Borton, ambos embaixadores ingleses na corte otomana, e dos irmãos Anthony e Robert Sherley, que segundo o autor apostaram numa diplomacia freelance entre a Inglaterra e a Pérsia.

A par do incremento dos contactos comerciais e diplomáticos, a Inglaterra dos séculos xvi e xvii manifestava um crescente interesse pelo islão para além dos estudos apologéticos dedicados à refutação teológica da religião muçulmana. Foi contudo sob a égide dos estudos bíblicos, como mostra o capítulo 7, que o estudo da cultura árabe se iniciou, contando para isso com o patrocínio de William Laud, bispo da Igreja Anglicana, e o dinamismo de Edward Pococke, arabista inglês e precursor nos estudos árabes e islâmicos. Simultaneamente, ramos heterodoxos antitrinitários como os socinianos e os unitaristas começavam a cultivar a ideia de uma afinidade religiosa entre o seu cristianismo depurado e o islão, assente na rejeição do dogma trinitário, como testemunham os exemplos de Miguel Servet, Sebastião Castellio e Hugo Grócio.

No capítulo 8, Walker mostra como a Europa esclarecida da segunda metade do século xvii e do século xviii estava a desenvolver representações positivas sobre o islão que confluíram na criação de um imaginário para que muito contribuiu a difusão das traduções de Hayy ibn Yaqz¯an, de Ibn Tufayl – uma das fontes do empirismo de Locke –, e das Mil e Uma Noites. Entretanto, Simon Ockley, Edward Gibbon e Voltaire, entre outros, insistiam em diversos quadrantes da actividade intelectual europeia numa imagem mais concreta e objectiva do islão, ainda que em larga medida no contexto da tendência anticatólica manifestada por muitos deles.

Todavia, o islão perdera o seu brilho e o Médio Oriente dos séculos xviii e xix era marcado pelo lento declínio do Império Otomano, pela multiplicação das tensões regionais, mormente no Egipto, e pelo anquilosamento das estruturas sociopolíticas. O recuo do império na Europa Oriental acentuava-se verificando-se simultaneamente uma espécie de «domesticação» política dos otomanos na cena internacional. A Inglaterra voltou então a aproximar-se da Turquia, compreendida aqui no âmbito do equilíbrio de poderes, destacando-se nesse processo duas personagens: William Pitt, dentro das esferas do poder instituído, e Urquhart, essencialmente na periferia desse mundo, actuando de modo informal e muitas vezes ilícito.

Desta forma, Walker regressa no capítulo final ao registo da história política como fio condutor da narrativa. A intrusão das potências europeias no Médio Oriente, a ineficácia das reformas otomanas, a expansão do nacionalismo quer na Europa Oriental, quer mesmo no mundo árabe, revelavam claramente o declínio turco.

A obra detém-se precisamente no momento em que a Turquia otomana sentia o peso dos fracassos políticos e militares, a crescente pressão expansionista da Rússia e a infiltração da Grã-Bretanha e da Alemanha no Médio Oriente, enquanto a imagem do império sofria uma degradação evidente aos olhos da opinião pública inglesa.



ENTRE A SÍNTESE HISTÓRICA E O ENSAIO LITERÁRIO

Concluída esta visão panorâmica, impõem-se alguns comentários especialmente centrados sobre o conjunto de opções discursivas e princípios conceptuais que fundamentam a obra. Em primeiro lugar, o resumo dos conteúdos acima desenvolvido permite perceber que a síntese das relações entre o islão e o Ocidente não se desenrola de um modo uniforme e carece mesmo de alguma coerência global, sensação reforçada pela inexistência de uma conclusão final que o escopo da obra e a multiplicidade dos dados aconselharia.

Compreensível enquanto estudo dedicado às relações entre o islão e o Ocidente temática e narrativamente segmentado, a obra revela-se no entanto insuficiente como síntese histórica das relações entre as duas civilizações: desde logo, devido à forte tendência verificada a partir do capítulo 5 para a concentração da narrativa, no que respeita a margem ocidental desse relacionamento, sobre a história, religião, política e cultura britânicas, o que a torna preferencialmente orientada para um público anglo-saxónico. Essa tendência acaba mesmo por se revelar negativamente limitativa, na medida em que resulta numa certa lateralização do próprio plano das relações entre o Ocidente e o islão. Este aspecto remete para um outro problema de fundo da obra: a notável escassez de perspectivas islâmicas sobre o Ocidente. Fala-se do modo como o islão é representado, imaginado, utilizado, da sua influência na história europeia, mas ignora-se flagrantemente as representações que o islão produziu sobre o Ocidente.

Nesta medida, a obra de Walker poderá ser mais propriamente considerada como uma espécie de digressão histórico-literária ao longo da história milenar das relações entre Ocidente e islão. Política, religião e cultura são os prismas de análise prioritários pelos quais essa relação é avaliada, quer de modo tematicamente integrado, quer de modo disseminado, conforme mostra a estrutura interna dos capítulos. As correntes de pensamento antitrinitárias, a filosofia árabe, as Cruzadas, os contactos diplomáticos e comerciais entre a Inglaterra e o Império Otomano, assim como a evolução dos equilíbrios geopolíticos na Europa Oriental e no Médio Oriente, configuram um variegado conjunto de temáticas que adquirem ascendente conforme o momento da narrativa, mau grado os conteúdos de tipo cultural e especificamente religioso pareçam fornecer uma das linhas temáticas dominantes. A obra oscila, por conseguinte, entre a história política, diplomática e militar, a história da cultura e mentalidades, e a biografia.

Esta flutuação temática é significati-vamente acompanhada por uma certa polivalência discursiva que acaba por emprestar ao estudo uma natureza dúplice e o afasta de certo modo do género historiográfico. Com efeito, a obra acolhe concomitantemente preocupações e procedimentos explicativos de tipo historiográfico e marcas de discurso literário, nomeadamente o recurso consistente e sucessivo a imagens e metáforas que -chegam a desempenhar o papel de argumentos.

Há no entanto um conjunto de opções e procedimentos que se afiguram altamente desaconselháveis e contestáveis do ponto de vista historiográfico: o deslizamento frequente do discurso para a esfera do pitoresco, a utilização de argumentos -subjectivos e do domínio do acidental, o impressionismo da linguagem, os juízos morais e a recriação biográfica abusiva de figuras históricas. De notar ainda que o autor aparenta assentar o seu processo interpretativo numa concepção essencialista da História, impressão apoiada pela inclusão de noções como verdade histórica, realidade das coisas, juízo da História e pela consequente retroprojecção de categorias e valores morais.

De facto, embora demonstrando uma postura de valorização histórica de culturas não-europeias, o autor parece continuar a alimentar uma perspectiva particularmente enviesada sobre a própria história medieval europeia, perspectiva essa claramente tributária da historiografia renascentista e iluminista, que via na Idade Média uma época de trevas e de simples regressão civilizacional. Além disso, apoia substancialmente a sua interpretação não na historiografia contemporânea, mas sim em obras de época como a História do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon, escrita nas décadas finais do século xviii e de leitura cuidadosa, subscrevendo ainda juízos morais nelas formulados acerca de outros contextos históricos.

São extremamente discutíveis, duvidosos ou contestáveis diversos momentos do estudo em análise. Em primeiro lugar, a projecção da ideologia multiculturalista sobre o al-Andalus e a Sicília normanda, que resulta na produção de uma visão -idealizada das respectivas sociedades, convertidas numa espécie de paraísos da coexistência pacífica assentes na tolerância, no diálogo e na cooperação entre fés e culturas. É a propósito do al-Andalus que o mito da sociedade multicultural é mais visivelmente utilizado: «Aqui, judeus, cristãos e muçulmanos esqueceram as suas diferenças (e a maior parte dos seus pecados) e encetaram uma viagem dedicada ao conhecimento, à literatura e ao prazer» (pp. 28-29). Porém, Walker não menciona nem as profundas divisões internas que agitavam a sociedade do al-Andalus e que suscitaram a periódica proliferação de revoltas e entidades políticas autónomas, muitas delas de fundo cristão, nem o movimento de reacção cristão dos mártires de Córdova (850-859), duramente reprimido e sintomático de um profundo mal-estar no seio das elites cristãs.

Outros exemplos se sucedem: no atinente ao significado da peregrinação aos lugares santos do cristianismo da Antiguidade Tardia e ao tratamento dos factores explicativos do movimento das Cruzadas. Por outro lado, a importância histórica do islão encontra-se em larga medida reduzida a um papel de transmissão, transformado subrepticiamente aquele numa espécie de civilização de mediação.

Por fim, importa registar um conjunto adicional de exemplos que, conquanto se trate de uma tradução, exprimem claramente o tipo de discurso frequentemente utilizado pelo autor. Acerca da atracção e influência exercida pelos anacoretas e eremitas cristãos dos desertos sírios sobre as tribos árabes, afirma o autor: «Eram visões de esperança e de nostalgia, presenças brilhantes que dissolviam as trevas da alma» (p. 14). Já a propósito da dimensão histórica das Cruzadas na primeira metade do século xiii, estas são classificadas de «propensão malsã» e «opiáceo de masculinidade, esteróide de narcisismo» (p. 54). Nos parágrafos dedicados a Tamerlão, declara que este «acreditava, não na governação tranquila, mas na devastação e em pirâmides de crânios» (p. 109). Note-se finalmente a seguinte frase: «O credo é uma fraude em matéria de religião» (p. 121).

Em suma, apesar de constituir uma interessante tentativa de síntese, de explorar o entrosamento de diversas áreas na -história das relações entre o islão e o Ocidente, e de apostar num certo embele-zamento literário, o estudo de Walker revela-se algo deficiente em matéria de rigor, objectividade e espírito crítico. Infelizmente, o islão, um dos eixos estru-turantes do estudo, tende por vezes a apagar-se ou a ser representado através de uma imagem passiva ou mesmo espectral, como um outro ausente sobre o qual as elites europeias discutiam. Ainda assim, a obra desenvolve nitidamente um esforço no sentido de matizar a imagem de um antagonismo irredutível entre as duas civilizações, salientando nesse sentido os contextos de aproximação e coexistência, no que residirá porventura o seu principal valor.

Instituto Português de Relações Internacionais

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