Uma revolução pacífica em Leipzig
Andrew Curry
Em Leipzig
Dia 9 de outubro é um dia monumental na história da Alemanha. Há 20 anos, os moradores de Leipzig tomaram as ruas sob o lema "somos o povo" e geraram outros protestos pacíficos que levariam à queda do Muro de Berlim apenas poucas semanas depois.
Os pastores cristãos Fuehrer e Christoph Wonneberger nunca viram tantas pessoas em Nicolaikirche, uma igreja de 800 anos no centro de Leipzig. Era dia 9 de outubro de 1989 e os dois jovens pastores sabiam que estavam no caminho de algo imenso. "Havia 8.000 pessoas dentro da igreja - não dava para entrar mais ninguém", disse Fuehrer. "Quando saímos, havia inúmeras pessoas se expressando e exigindo sua liberdade."
Não foi uma mobilização espontânea súbita. Os dissidentes da Alemanha Oriental estavam se reunindo na igreja de 800 anos de Nicolaikirche há quase uma década no verão de 1989, para orar e falar de política. Algumas vezes, havia menos de uma dúzia de pessoas, mas durante todos os anos 80, as reuniões ocorreram toda segunda-feira sem falta. Eventualmente, os encontros atraíram pessoas ansiosas em discutir uma gama de causas, desde o meio ambiente até o direito de viajar livremente.
No outono de 1989, as reuniões de preces tinham evoluído para um movimento nacional centrado em Leipzig. No dia 9 de outubro, a cidade abrigou o maior protesto na história da Alemanha Oriental: entre 70.000 e 100.000 manifestantes pacíficos enfrentaram milhares de policiais armados anti-motim e as advertências da temida polícia secreta, a Stasi, para marchar no centro da cidade. No final, a polícia nada fez, estabelecendo o palco para uma revolução pacífica que varreu a Alemanha Oriental.
Nesta sexta-feira, Leipzig celebra seu papel crucial na queda do comunismo com concertos, mostras, shows de luz e uma marcha de aniversário seguindo os passos da passeata do dia 9 de outubro, que abalou a Alemanha Oriental e ajudou a pavimentar o caminho para o colapso do Muro de Berlim, mais de um mês depois.
"As pessoas estavam dispostas a se arriscar"
Os eventos em Leipzig tendem a ser ofuscados pela súbita queda do Muro de Berlim, que foi fotografada e filmada por centenas de jornalistas e transmitida pelo mundo. Leipzig ficava fora do caminho. Há apenas algumas fitas de má qualidade das enormes manifestações de segunda-feira, e fora da Alemanha foram praticamente esquecidas.
Na época, contudo, o fato de Leipzig estar fora do holofote ajudou. Apesar de ativistas em Berlim terem melhores contatos com jornalistas ocidentais, a capital estava sob vigilância constante. "Berlim era uma vitrine. Em Berlim, todo mundo se cuidava por medo de ser enviado de volta a Karl Marx Stadt", disse Peter Claussen, diplomata norte-americano que trabalhava na embaixada americana em Berlim no final dos anos 80. "As pessoas estavam mais dispostas a correrem riscos fora de Berlim."
No final dos anos 80, alimentados em parte por alemães orientais frustrados que não podiam deixar o país, as reuniões de preces de segunda-feira em Leipzig atraíam centenas e depois milhares de pessoas - as maiores reuniões regulares na Alemanha. Cidadãos comuns começaram a perceber o movimento, assim como a Stasi: dezenas de pessoas foram presas por semanas por seu envolvimento nos encontros.
Fuehrer e Wonneberger, alvos de interesse e de pressão da polícia secreta, foram detidos no final de setembro e receberam ordens e ameaças para suspenderem as reuniões.
"Não estava claro que o evento seria pacífico"
Não era uma ameaça vazia. No verão de 1989, políticos da Alemanha Oriental elogiaram a decisão chinesa de usar violência contra ativistas pela democracia acampados na Praça de Tiananmen, em Pequim. Em setembro e início de outubro, a polícia da Alemanha Oriental tinha reprimido à força manifestantes em Dresden, Berlim e Plauen. No dia 2 de outubro, ativistas de Leipzig foram espancados pela polícia. "As pessoas tinham visto fotografias de Pequim. Não estava claro que o evento seria pacífico", disse Jens Schoene, historiador e autor de "The Peaceful Revolution: Berlin 1989/90 -- The Path to German Unity" (A revolução pacífica: Berlim, 1989/90 - O caminho para a união alemã).
No dia 9 de outubro, Wonneberger e os outros de Nicolaikirch decidiram prosseguir com as passeatas marcadas. Parecia que toda a Alemanha Oriental estava segurando o fôlego. "Estávamos com muito medo que eles viriam e atirariam em todo mundo", disse Dorothee Kern, que na época era aluna de pós-graduação na cidade de Halle. "Ficamos arrepiados o dia todo e o dia anterior."
Dissidentes se prepararam para o pior. Casais com filhos tomaram o cuidado de não irem os dois, caso a polícia agisse com violência. Rumores correram pela cidade: hospitais estocaram sangue e prepararam leitos; estádios estavam prontos para receber multidões de manifestantes detidos. Naquele dia, Hans George Kluge lembra-se de ver a cidade enchendo-se de soldados e policiais enquanto caminhava para casa do trabalho. "Todo mundo tinha que ver que o Estado podia reprimir qualquer demonstração. Violentamente, se necessário", diz ele.
"Somos o povo"
Às 17h, mais de 8.000 pessoas lotaram a Nicolaikirche. Quatro outras igrejas da cidade abriram para acomodar milhares de manifestantes. Após uma missa de uma hora, Fuehrer levou os fiéis para fora. A Augustusplatz, próxima, estava lotada de pessoas segurando velas. Cidadãos proeminentes - inclusive Kurt Masur, maestro da Gewandhaus Orchester de Leipzig - leram um apelo tanto aos manifestantes quanto à polícia, instando-os a manterem a paz.
Lentamente, a multidão começou a caminhar pelo anel rodoviário de Leipzig, passaram pelo quartel da Stasi na direção da estação de trem. Havia tantas pessoas nas ruas que carros e bondes não podiam passar. Os motoristas deixaram os carros no meio da rua e se uniram à marcha. Atrás das cenas, membros da polícia e da Stasi estavam tentando freneticamente se comunicar com superiores em Berlim, sem sucesso.
Quando a multidão se aproximou da estação de trem de um século - acompanhada por milhares de policiais de confronto com capacetes- a tensão cresceu. Mas, em um momento decisivo, a polícia deu passagem aos manifestantes. "Eles não atacaram", disse Fuehrer. "Não tinham por que atacar." Os organizadores fizeram questão de não dar motivos para a polícia atacar. Eles não carregavam nada além de velas e cartazes dizendo "somos o povo". A Stasi plantou policiais à paisana na multidão para criarem problemas, mas eles foram rapidamente cercados e neutralizados por manifestantes dizendo "sem violência".
O historiador Erhard Neubert mais tarde chamou aquela noite de "Revolução de Outubro". Ao menos 70.000 pessoas - talvez até 100.000 - foram às ruas, tornando o dia 9 de outubro de 1989 a maior manifestação da Alemanha Oriental. "As pessoas estavam nas ruas e tinham coragem", diz Schoene.
Os tempos de violência tinham terminado. Cenas da passeata gravadas secretamente foram transmitidas na televisão da Alemanha Ocidental, inspirando as Manifestações de Segunda-Feira em toda a Alemanha Oriental nas semanas que se seguiram. As reuniões em Leipzig dobravam de tamanho a cada semana, atraindo indivíduos de toda a Alemanha Oriental. No dia 23 de outubro de 1989, um pouco menos de duas semanas após o Muro de Berlim cair, mais de 300.000 pessoas lotaram o centro de Leipzig, carregando velas e cartazes. Leipzig foi apelidada de "heldenstadt", ou "cidade heroica".
Ninguém sabia na época, mas o movimento pacífico de Leipzig exerceu uma pressão irresistível pela reforma do regime da Alemanha Oriental - e levou diretamente à queda do muro cinco semanas depois. "Foi uma auto-libertação. Fizemos sem o dólar ou o DAX, sem os exércitos norte-americanos ou soviéticos", diz Fuehrer. "Foram as pessoas que agiram."
Tradução: Deborah Weinberg
Der Spiegel
Andrew Curry
Em Leipzig
Dia 9 de outubro é um dia monumental na história da Alemanha. Há 20 anos, os moradores de Leipzig tomaram as ruas sob o lema "somos o povo" e geraram outros protestos pacíficos que levariam à queda do Muro de Berlim apenas poucas semanas depois.
Os pastores cristãos Fuehrer e Christoph Wonneberger nunca viram tantas pessoas em Nicolaikirche, uma igreja de 800 anos no centro de Leipzig. Era dia 9 de outubro de 1989 e os dois jovens pastores sabiam que estavam no caminho de algo imenso. "Havia 8.000 pessoas dentro da igreja - não dava para entrar mais ninguém", disse Fuehrer. "Quando saímos, havia inúmeras pessoas se expressando e exigindo sua liberdade."
Não foi uma mobilização espontânea súbita. Os dissidentes da Alemanha Oriental estavam se reunindo na igreja de 800 anos de Nicolaikirche há quase uma década no verão de 1989, para orar e falar de política. Algumas vezes, havia menos de uma dúzia de pessoas, mas durante todos os anos 80, as reuniões ocorreram toda segunda-feira sem falta. Eventualmente, os encontros atraíram pessoas ansiosas em discutir uma gama de causas, desde o meio ambiente até o direito de viajar livremente.
No outono de 1989, as reuniões de preces tinham evoluído para um movimento nacional centrado em Leipzig. No dia 9 de outubro, a cidade abrigou o maior protesto na história da Alemanha Oriental: entre 70.000 e 100.000 manifestantes pacíficos enfrentaram milhares de policiais armados anti-motim e as advertências da temida polícia secreta, a Stasi, para marchar no centro da cidade. No final, a polícia nada fez, estabelecendo o palco para uma revolução pacífica que varreu a Alemanha Oriental.
Nesta sexta-feira, Leipzig celebra seu papel crucial na queda do comunismo com concertos, mostras, shows de luz e uma marcha de aniversário seguindo os passos da passeata do dia 9 de outubro, que abalou a Alemanha Oriental e ajudou a pavimentar o caminho para o colapso do Muro de Berlim, mais de um mês depois.
"As pessoas estavam dispostas a se arriscar"
Os eventos em Leipzig tendem a ser ofuscados pela súbita queda do Muro de Berlim, que foi fotografada e filmada por centenas de jornalistas e transmitida pelo mundo. Leipzig ficava fora do caminho. Há apenas algumas fitas de má qualidade das enormes manifestações de segunda-feira, e fora da Alemanha foram praticamente esquecidas.
Na época, contudo, o fato de Leipzig estar fora do holofote ajudou. Apesar de ativistas em Berlim terem melhores contatos com jornalistas ocidentais, a capital estava sob vigilância constante. "Berlim era uma vitrine. Em Berlim, todo mundo se cuidava por medo de ser enviado de volta a Karl Marx Stadt", disse Peter Claussen, diplomata norte-americano que trabalhava na embaixada americana em Berlim no final dos anos 80. "As pessoas estavam mais dispostas a correrem riscos fora de Berlim."
No final dos anos 80, alimentados em parte por alemães orientais frustrados que não podiam deixar o país, as reuniões de preces de segunda-feira em Leipzig atraíam centenas e depois milhares de pessoas - as maiores reuniões regulares na Alemanha. Cidadãos comuns começaram a perceber o movimento, assim como a Stasi: dezenas de pessoas foram presas por semanas por seu envolvimento nos encontros.
Fuehrer e Wonneberger, alvos de interesse e de pressão da polícia secreta, foram detidos no final de setembro e receberam ordens e ameaças para suspenderem as reuniões.
"Não estava claro que o evento seria pacífico"
Não era uma ameaça vazia. No verão de 1989, políticos da Alemanha Oriental elogiaram a decisão chinesa de usar violência contra ativistas pela democracia acampados na Praça de Tiananmen, em Pequim. Em setembro e início de outubro, a polícia da Alemanha Oriental tinha reprimido à força manifestantes em Dresden, Berlim e Plauen. No dia 2 de outubro, ativistas de Leipzig foram espancados pela polícia. "As pessoas tinham visto fotografias de Pequim. Não estava claro que o evento seria pacífico", disse Jens Schoene, historiador e autor de "The Peaceful Revolution: Berlin 1989/90 -- The Path to German Unity" (A revolução pacífica: Berlim, 1989/90 - O caminho para a união alemã).
No dia 9 de outubro, Wonneberger e os outros de Nicolaikirch decidiram prosseguir com as passeatas marcadas. Parecia que toda a Alemanha Oriental estava segurando o fôlego. "Estávamos com muito medo que eles viriam e atirariam em todo mundo", disse Dorothee Kern, que na época era aluna de pós-graduação na cidade de Halle. "Ficamos arrepiados o dia todo e o dia anterior."
Dissidentes se prepararam para o pior. Casais com filhos tomaram o cuidado de não irem os dois, caso a polícia agisse com violência. Rumores correram pela cidade: hospitais estocaram sangue e prepararam leitos; estádios estavam prontos para receber multidões de manifestantes detidos. Naquele dia, Hans George Kluge lembra-se de ver a cidade enchendo-se de soldados e policiais enquanto caminhava para casa do trabalho. "Todo mundo tinha que ver que o Estado podia reprimir qualquer demonstração. Violentamente, se necessário", diz ele.
"Somos o povo"
Às 17h, mais de 8.000 pessoas lotaram a Nicolaikirche. Quatro outras igrejas da cidade abriram para acomodar milhares de manifestantes. Após uma missa de uma hora, Fuehrer levou os fiéis para fora. A Augustusplatz, próxima, estava lotada de pessoas segurando velas. Cidadãos proeminentes - inclusive Kurt Masur, maestro da Gewandhaus Orchester de Leipzig - leram um apelo tanto aos manifestantes quanto à polícia, instando-os a manterem a paz.
Lentamente, a multidão começou a caminhar pelo anel rodoviário de Leipzig, passaram pelo quartel da Stasi na direção da estação de trem. Havia tantas pessoas nas ruas que carros e bondes não podiam passar. Os motoristas deixaram os carros no meio da rua e se uniram à marcha. Atrás das cenas, membros da polícia e da Stasi estavam tentando freneticamente se comunicar com superiores em Berlim, sem sucesso.
Quando a multidão se aproximou da estação de trem de um século - acompanhada por milhares de policiais de confronto com capacetes- a tensão cresceu. Mas, em um momento decisivo, a polícia deu passagem aos manifestantes. "Eles não atacaram", disse Fuehrer. "Não tinham por que atacar." Os organizadores fizeram questão de não dar motivos para a polícia atacar. Eles não carregavam nada além de velas e cartazes dizendo "somos o povo". A Stasi plantou policiais à paisana na multidão para criarem problemas, mas eles foram rapidamente cercados e neutralizados por manifestantes dizendo "sem violência".
O historiador Erhard Neubert mais tarde chamou aquela noite de "Revolução de Outubro". Ao menos 70.000 pessoas - talvez até 100.000 - foram às ruas, tornando o dia 9 de outubro de 1989 a maior manifestação da Alemanha Oriental. "As pessoas estavam nas ruas e tinham coragem", diz Schoene.
Os tempos de violência tinham terminado. Cenas da passeata gravadas secretamente foram transmitidas na televisão da Alemanha Ocidental, inspirando as Manifestações de Segunda-Feira em toda a Alemanha Oriental nas semanas que se seguiram. As reuniões em Leipzig dobravam de tamanho a cada semana, atraindo indivíduos de toda a Alemanha Oriental. No dia 23 de outubro de 1989, um pouco menos de duas semanas após o Muro de Berlim cair, mais de 300.000 pessoas lotaram o centro de Leipzig, carregando velas e cartazes. Leipzig foi apelidada de "heldenstadt", ou "cidade heroica".
Ninguém sabia na época, mas o movimento pacífico de Leipzig exerceu uma pressão irresistível pela reforma do regime da Alemanha Oriental - e levou diretamente à queda do muro cinco semanas depois. "Foi uma auto-libertação. Fizemos sem o dólar ou o DAX, sem os exércitos norte-americanos ou soviéticos", diz Fuehrer. "Foram as pessoas que agiram."
Tradução: Deborah Weinberg
Der Spiegel
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