domingo, 25 de outubro de 2009

VISÕES DA MORTE NA HISTÓRIA DOS FRANCOS DE GREGÓRIO DE TOURS (parte 1)


VISÕES DA MORTE NA HISTÓRIA DOS FRANCOS DE GREGÓRIO
DE TOURS


Autor: Ana Cristina Campos Rodrigues
Texto apresentando na I Semana de Estudos Antigos e Medievais da UNIANDRADE/ PR, agosto/2003.
·· · Aluna do curso de Graduação em História na Universidade Federal Fluminense e bolsista de Iniciação Científica pelo Fundo de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ.




Não temos como negar a importância apaziguadora, para o ser humano, dos rituais e símbolos que cercam a morte. Além de o distinguir dos demais animais, a ritualização e a apropriação do momento em que o corpo deixa de funcionar é um traço característico que ajuda a demarcar as sociedades e estabelecer suas diferenças. O homem da Alta Idade Média vivia em constante intimidade com a Dama Negra devido às precárias condições de sua existência, a sua concepção cristã do mundo. Preparava-se para ela, para uma morte domesticada que era um acontecimento público. Havia, no entanto, ocasiões terríveis em que a morte, sorrateira, negava o aviso prévio. Tratava-se da morte súbita, ou devida às doenças e aos desastres, que espalhava o pânico, menos por significar o fim da vida do que por impedir a ritualização tão necessária à bem sucedida passagem da vida terrena à vida eterna. A História dos Francos, de Gregório de Tours, está repleta de referências a mortes de reis, abades, bispos e demais homens santos, além de referências a diversos acontecimentos desastrosos. Iremos usar passagensdessa História para podermos observar como era o morrer na Alta Idade Média e o seu impacto na sociedade.




A Morte. A grande companheira do homem, a única certeza que vem caminhando lado a lado com a humanidade desde o começo, e jamais irá deixá-la. Momento inevitável para todos nós. Se, ainda hoje, com todos os avanços médicos e tecnológicos, vivemos dominados pelo fantasma de nossa própria morte, é de se imaginar o impacto que todo processo de extinção de uma vida causava nas sociedades que possuíam menos armas para minimizar seus efeitos.




A importância da morte em um coletivo mostra-se na relevância dos ritos mortuários e da sua inserção no cotidiano. A abundância de fórmulas, relatos e recomendações para a passagem final é marca, portanto, de uma sociedade que teria uma ligação muito profunda com a morte. Edgar Morin chama a atenção para o fato de que o cristianismo, desde o seu início, esteve ligado ao ato de morrer, pois “Cristo resplandece em torno da morte, só existe para e através da morte, carrega a morte, vive da morte.” 1




Portanto, em uma obra como a História dos Francos de Gregório de Tours, escrita em um momento em que o cristianismo buscava consolidar-se, é encontrada uma grande preocupação com a morte. Preocupação que expressa-se em diversos capítulos, cujos títulos a mencionam, provocada por motivos naturais, por assassinatos e por catástrofes, e ainda trazem relatos de vários tipos sobre acontecimentos relacionados com a morte, violenta ou não, de algum personagem. É por essa abundância de relatos que tentaremos mostrar como os homens dos
primeiros séculos da Idade Média viam e interagiam com a Morte.




Gregório nasceu em uma família gaulesa abastada, de origem senatorial e de ampla inserção nos quadros da Igreja, e no decorrer de sua vida, no século VI, escreveu diversas obras, entre vidas de santos e sermões diversos. A obra que usaremos nesse breve estudo, a História dos Francos, apesar do título, é um tratado que se pretende, em parte, de história universal, pois seus primeiros livros tratam do começo do mundo e de acontecimentos bíblicos, mas no correr dos seus capítulos vai perdendo aos poucos essa feição. Ganhando “a forma de um diário, contando os
eventos pouco a pouco e ano a ano” 2, e cada vez mais localizadas, seguia, assim, a tendência das obras desse tipo, suas contemporâneas 3.




Como era, nessa obra, a caracterização do ato de morrer? A morte estava constantemente à espreita na vida dos homens medievais, e por vezes se anunciava. Além do bem-aventurado Salvi, que soube de sua morte por uma revelação de Deus 4, e da rainha Ingeborge, que começou os preparativos para sua morte guiada pela Providência Divina 5, há outros casos citados na História dos Francos. A morte do rei franco Teodebaldo, por exemplo, foi precedida de uma série
de prodígios: frutos nascendo nas árvores erradas e um planeta que se atravessou na frente da Lua são alguns deles6. E outra morte real, a do rei Sigisberto, foi anunciada pelo acontecer de um “luar fulgurante atravessar o céu, como já se havia visto antes da morte de Clotário” 7.



A iminência do trespasse exigia que preparativos fossem feitos, não só em relação ao corpo e a alma, como também aos pertences e familiares que fossem permanecer na vida terrena. Gregório de Tours nos deixou exemplos de como todos deveriam se preparar ao sentirem ser chegada a hora da morte , mesmo aqueles que não possuíam bens materiais. O capítulo 15 do livro VI narra como o bispo de Nantes adoeceu durante uma epidemia, e procurou colocar seu sobrinho como seu substituto no episcopado 8. A morte do bem-aventurado Salvi, já citado aqui9, é mais dignificante, apesar de também se dar em um contexto de epidemia 10. Ajudou a
população da vila sem temer o contágio e, segundo Gregório de Tours,




“como se graças a uma revelação do Senhor, eu suponho, ele já conhecia a
hora em que seria chamado, prepara ele mesmo seu próprio caixão, lava seu
corpo, cobre-se com sua mortalha e é assim que ele entrega a alma, sempre
voltado para o céu.” 11




No entanto, aqueles que possuíam bens materiais, como o Marechal do estudo de Duby 12, ao sentirem a chegada da morte tratavam de distribui-los de maneira adequada. O duque Chrodin, ao perceber a iminência de sua morte, chamou os bispos e abades de sua região e distribuiu seus bens generosamente à Igreja, para que esta pudesse atender os mais necessitados 13. A já referida rainha Ingeborge, guiada pela Providência Divina, chamou Gregório de Tours e lhe pediu conselhos. Seguiu-os a risca, doando terras e direitos à Igreja, e morreu alguns meses depois, acometida de uma doença 14. Já o Imperador Tibério, ao ficar doente, desesperou-se porque ainda não possuía um sucessor escolhido. Ao escolher um, casou-o com sua filha e morre durante os festejos 15.
A necessidade de deixar tudo organizado no mundo dos vivos antes de partir ao além é grande e recorrente. Um dos servidores reais, caracterizado por Gregório como alguém que não respeitava testamentos, recebe uma punição adequada ao ser violentamente assassinado. Nas palavras do bispo de Tours:




“Acostumado a reivindicar o bem de outrem e a violar os testamentos, ele
teve um fim de vida que não permitiu que ele, na iminência da morte,
deixasse clara a sua verdade, ele que nunca respeitara a dos demais.” 16




Nesse caso, portanto, é como se a sua morte súbita fosse um castigo pelos desejos póstumos de outros que não respeitara, ao não lhe dar tempo de se preparar da maneira devida. No âmbito dessas preparações para a morte, aqueles que durante a vida tivessem se desviado do caminho certo, ao sentir a proximidade do fim poderiam, como em um último arranjo, pedir perdão por seus erros. Era, segundo Ariés, o “tempo de esquecer o mundo e de pensar em Deus” 17, quando
confessavam-se as culpas e encomendavam-se as almas. Na História dos Francos, Gregório de Tours relata que Leovigildo, rei dos visigodos, adoeceu gravemente. Arrependeu-se da sua heresia e converteu-se ao catolicismo, e, “ depois de ter passado sete dias inteiros a chorar sobre as iniquidades que cometera contra Deus, entregou sua alma” 18 O rei Clotário arrependeu-se de todas as suas faltas ao pé do túmulo de São Martinho e “com grandes gemidos ele pedia que o bem-aventurado confessor implorasse a misericórdia do Senhor por suas faltas e obtivesse o perdão pelos atos irracionais que cometera”. Durante esse mesmo ano ele sofreu de uma
grande febre e morreu 19.
Philippe Aríes chamava a atenção em seu já clássico estudo sobre o tema da Morte20 que o período alto-medieval seria marcado por uma espécie de indiferença perante a morte, ou pelo menos de destemor frente a ela. Afinal, esta seria previamente definida e domesticada em ritos de passagem muito específicos, destinados a torná-la um acontecimento do qual fariam parte não somente o moribundo e os seus mais próximos, mas também toda a coletividade em que estavam inseridos. Essa visão contrapunha-se, assim, à da sociedade antiga, que julgava ser dever exclusivo da família cuidar dos seus mortos, assim como o de o fazer de forma intimista.
Na historiografia, é exemplar a forma como Georges Duby em seu estudo sobre a biografia de Guilherme Marechal apontou para essa concepção de uma “morte domada”, ao caracterizar o extenso e intricado relato dos ritos mortuários que antecederam o final da vida do personagem:




“ (...)nós, para quem a boa morte deve ser solitária, rápida, discreta:
aproveitemos que a grandeza alcançada pelo Marechal o mostre a nossos
olhos, brilhando com luz excepcional, e acompanhemos a cada passo, a cada
pormenor, o ritual da morte à maneira antiga, que não era uma partida furtiva,
esquiva, porém numa chegada lenta, regrada, governada – um prelúdio,
passagem solene de uma condição para outra, superior, mudança de estado
tão pública quanto as bodas, tão majestosa quanto a entrada dos reis em
suas leais cidades. A morte que perdemos, e que talvez nos faça falta.”21




A morte de Guilherme Marechal, que compõe a primeira parte desse primoroso trabalho de Duby, é, portanto, bem ilustrativa do ‘bom-morrer’ medieval. Ao sentir a chegada da Morte, o nobre guerreiro começou a destituir-se de seus bens e títulos terrenos, e a preparar sua alma para chegar tranqüilo aos céus. Para Ariés, esses são os primeiros passos para morrer de forma correta na Alta Idade Média, pois “não se morre sem se ter tido tempo de saber que se vai morrer” 22, e que “sabendo de seu fim próximo, o moribundo tomava as suas providências” 23
Não que a idéia de que todos fossem morrer não estivesse sempre presente, e a morte fosse uma surpresa. Mas sempre que possível, os homens tentavam afastá-la, pelo recurso a remédios. O bispo de Nantes, Félix, já citado aqui, tentou evitar que sua doença se alastrasse com a aplicação de um cataplasma 24. E Teodoberto, rei dos francos, ao adoecer, foi cercado pelos cuidados dos médicos, mas para Gregório, essa tentativa “não serviu de nada, pois o Senhor já havia
desejado o chamar” 25.
Mas as vezes – aliás, com bastante freqüência, tendo em consideração a quantidade de relatos presentes na obra – quem decidia a hora da morte eram os homens. Assassinatos eram comuns, até mesmo banais. Mesmo os laços familiares não os impediam de acontecer. Os filhos do rei Clodomiro foram assassinados por seus tios, temerosos de que eles ascendessem ao trono 26. A própria mãe das crianças, a rainha Arcadius, nada fez para impedir: foi lhe dada a opção entre deixar que lhes cortassem os cabelos, retirando-os da linha sucessória27, ou deixar que eles morressem. Disse : “Eu prefiro, se eles não devem chegar ao trono, os ver mortos a tonsurados”. A morte, então, é preferível à desonra de perder o privilégio de pertencer a dinastia real.



Revista Cantareira - UFF

Um comentário:

Teresa Diniz disse...

Olá Colega
Não sei como me encontrou, mas ainda bem, porque me deu a oportunidade de encontrar este excelente blogue.
Para mim, que sou professora de História há tantos anos, foi um prazer ler este trabalho e reencontrar os estudos de Aries sobre a morte no Ocidente, ou o estudo sobre Guilherme o Marechal, de Duby, que ainda cheguei a trabalhar com os meus alunos.
Abraço. Já o estou seguindo.