Belmonte: Criador de Juca Pato - Vítima de tanto levar na cabeça, Juca Pato tinha que conformar-se, pois sempre "podia ser pior"
"O artista tem que viver entre o povo, embora não deva fazer concessões à popularidade. Ser popular não é o mesmo que ser vulgar. O "xis" da questão está em tomar um assunto complicado e difícil, digerí-lo, simplificá-lo e torná-lo acessível ao grande público. Resumir numa charge, por exemplo, um problema econômico ou financeiro, eis o ideal(...) fazer arte para ser entendido por algumas pessoas é criar uma aristocracia artística."
Belmonte
domingo, 24 de novembro de 1935
Neste texto foi mantida a grafia original
Iniciava-se, assim, o tumultuoso cyclo da caça ao indio:
As terras ferteis se estendiam, promissoras de séaras opulentas, mas arranhadas apenas, aqui e ali, desordenadamente, em culturas primarias, pela ausencia quasi absoluta do operario rural. No norte, após o ensaio quasi inoperante da escravidão selvicola que, mesmo assim, conseguira arrancar do sólo o esplendor da cultura da canna, o indio fôra substituido, no problema servil, pelo negro africano que, em levas successivas e systematicas, atravessava o oceano, despovoando a Costa da Mina e a Guiné em favor das terras virgens do novo mundo.
Mas o Norte nadava em ouro. Os ricos senhores de engenho, graças ao concurso do braço indigena, podiam, quando o quizessem, dar-se o luxo de comprar "peças" africanas, dispensando os riscos da captura e forrando-se aos onus da exploração dos autochtones, embora a legislação das cortes portuguezas, tendentes a assegurar a liberdade dos índios, não passasse de puro despistamento juridico. Leis, alvarás e cartas-regias sahidas, com tão impressionante exhuberancia, através tres seculos, das immediações da Real Fazenda, nada mais eram, no dizer de Taunay, do que "refalsada hypocrisia".
Até então, escravizavam-se indios no Brasil inteiro. Já em 1550, Manuel da Nobrega escrevia ao seu provincial: "Nesta terra, todos ou a maior parte dos homens têm a consciencia pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão".
E se, no seculo do bandeirismo, apenas os paulistas realizavam, com intensidade, esse trafico, foi pela razão muito natural de que, sendo elles no geral pobres, não podiam ser humanitarios... comprando negros na costa da Africa. Dir-se-á, para suprema ignominia dos chefes bandeirantes, que uma coisa é comprar escravos e outra, muito diferente, é escravizal-os. O argumento, como se constata, é irretorquivel, e lembra o caso daquelle santo homem da anecdota que era um grande amigo dos animaes. Não matava um frango porque, dizia elle, lhe confrangia fundamente a alma judiar das pobres avesinhas. O que, aliás, não o impedia de lamber os beiços e sentar-se soffregamente a mesa, empunhando um facalhão, toda vez que lhe apresentavam um frango assado ou uma gallinha de molho pardo...
Todos quantos se lembram de investir contra os bandeirantes, accusando-os de terem praticado as maiores atrocidades contra os "pobres selvicolas", fiam-se excessivamente na documentação dos missionarios hespanhoes - parte interessadissima na secular contenda entre as duas forças que se chocaram, vezes sem conta, nas terras barbaras do novo mundo. Emquanto os hespanhoes se apossavam do territorio sul americano, pelo sul e pelo oeste, na tentativa de estabelecer o seu grande imperio theocratico hispano-guarany, os paulistas, na sua ansia expansionista, rompiam a linha tordezilhana que tentava contel-os no ambito asphyxiante da capitania, e sahiam - como dizem os documentos coévos - em busca de "remedio para a sua fraqueza", isto é, dos braços de que necessitavam para suas lavouras.
Incidem num juizo falso e absurdo, todos quantos suppõem que, nas suas arremettidas contra as reducções, fossem os bandeirantes encontrar, sempre, indios inoffensivos e missionarios inermes. Tanto isso não é verdade que, em innumeros documentos escriptos pelo punho dos proprios jesuitas, se constata, a todo passo, a bravura com que elles se defendiam e, muitas vezes, atacavam. Numa carta dirigida em 12 de novembro de 1648, ao governador do Paraguay pelo padre Justo Mansilla, escrevia este:
Ihs - Senor governador. Sabado y noviembro 7 dieram los nuestros assalto al enemigo en su real que era el puesto en donde, el ano passado, por otra invasion del mismo enemigo, se avia retirado la segunda reducion y sacaran al Padre xpl de arennas, a quien el enemigo tenia preso y con guardas de dia y de noche e dias avia, y mataram a seys o sete Portugeses a pelotassos, y algunos Tupis, con mucho animo y brio", etc. (1).
Mas não era sempre que as reducções atacavam os paulistas, matando-os a pelotaços, com "mucho animo y brio". Defendiam-se, tambem, com armas de fogo e eu acho que tolos seriam elles se são o fizessem. No assalto a uma das villas do Paraguay, segundo relata o capitão Domingos Gonzales a Sebastian Solorçano, secretario da Casa de Contratação de Sevilha, foram mortos 140 paulistas. Como se vê, os bandeirantes não investiam contra gente inerme. As reducções viviam, aliás, em constantes questões com as autoridades hespanholas, quer do Paraguay, quer do vice-reino do Prata e mesmo da Côrte. Na documentação colhida no enorme acervo do "Archivo General de Indias", em Sevilha, carinhosamente colligidas nos "Annaes" do Museu Paulista, é constante, insistente mesmo, o encontro de cartas vindas da Côrte, e dirigidas às reducções que se esparramavam pelas regiões do Guayrá, Tape e Uruguay, pedindo-se a devolução de armas e munições. Num desses documentos pede-se ao provincial ibero que "todas las armas que esa Religion tenia em las doctrinas de ellas y las que huviesse repartido a los indios de que se conponen, se la entregassen para que estuviessen a disposición de esa Religion, ni se entrometiesen los religiosos a exercitar los yndios en lo manejo dellas ni en los allardes otra acion politica ni militar", etc. (2).
... Noutra carta, pede a Côrte ao governador do Paraguay que retire 150 arcabuzes e mosquetes, 70 "botijas" de pólvora e 70 quintaes de chumbo, sendo que havia nas reducções jesuiticas, então, segundo testemunho do governador, nada menos de 800 boccas de fogo. As reducções defendiam-se bravamente e faziam muito bem.
Como se vê, os hespanhóes não andavam absolutamente tranquilos, ao saberem que seus indios estavam de tal modo armados. Forneciam-lhes armas, é verdade, quando os paulistas ameaçavam as reducções, mas tratavam prudentemente de recolhel-as, logo depois, porque, como escrevia don Gregorio Henestrosa, governador do Paraguay, ao presidente da Real Audiencia de La Plata "a estos yndios no se deben consentir estas armas de fuego, aun que sean para su defensa, fundandose em que pueden con el tiempo venir a usar mal de ellas, volviéndolas contra los espanoles de estas partes".
Tudo isso é symptomatico e quem quer que saiba lêr nas entrelinhas, se convencerá de que as famigeradas "atrocidades" dos paulistas não foram tantas nem tamanhas como pretendem. Tanto isso é provavel que, muitas vezes, os indios das reducções adheriam logo aos invasores: "los yndios reducidos se dan la mano con los que entram por el ytatin". Numa "Real Cedula" dirigida ao vice-rei do Peru', marquez de Mansera, narrando occorrencias no Sul, confessava a Côrte que os paulistas tinham se apoderado de tudo, porque "todos, indios e residentes, tinham-se juntado aos invasores, davam-lhes informações e os guiavam a outras villas e reducções".
Seria insensatez, evidentemente, rogar-se a grandiosidade da obra evangelizadora dos jesuitas na America, principalmente diante das figuras impressionantes de Anchieta e Nobrega no Brasil e de Jumpero Sierra e Garcez na California. Innumeros jesuitas foram, póde-se affirmar, mais santos do que homens. Isso, todavia, não quer dizer que, para o Brasil, seria uma das sete maravilhas do mundo o estabelecimento do Imperio Theocratico que, na opinião de Sylvio Romero, os hespanhóes, com tanta pertinacia, levavam à realidade na America, escorados no meridiano de Tordesilhas. Nesse sentido, a devastação leva a effeito pelos bandeirantes na Guayrá, no Tape e no Paraguay, é um feito que deve orgulhar a raça paulista porque dahi resultou a extincção definitiva da sorrateira ameaça e o avanço implacavel das fronteiras orientaes do Brasil até quasi a cordilheira dos Andes.
Dêmos de barato, porém, para argumentar, que a escravização de indios pelos paulistas, nesse tempo, fosse uma ignominia. E concordemos também em que os bandeirantes, nessas lutas, commetteram atrocidades.
Já dissémos - e todo o mundo o sabe - que não foram os paulistas que inventaram a escravidão, nem tiveram privilegio della. No Brasil inteiro se escravizaram indios, façanha que só terminou no Norte, quando se percebeu que o escravo negro, caçado na Africa, era mais submisso e mallevavel do que o indigena. Todavia, essa submissão e essa maleabilidade produziram, sabe Deus porque, a dantesca tragedia dos Palmares, para cuja extincção se appellou, em ultima instancia, para os "famigerados" bandeirantes de São Paulo... E se os negros da Guiné e da Costa da Mina, tão conformados e tão humildes, chegaram àquelle extremo, fugindo aos senhores de engenho como diabos que fugissem da cruz, deviam ter razões muito poderosas para fazel-o...
Tudo isso, porém, estava no espirito da epoca e, principalmente, nos costumes da terra semi-barbara. Todos quantos observam, e tentam julgar, os acontecimentos do seiscentismo e do setencentismo paulistas através do prisma civilizado dos nossos dias, devem lamentar-se de não terem os indios americanos se munido de "habeas corpus" preventivos contra as incursões dos bandeirantes, nem, ante a ameaça da escravização, appellando para a Lei de Segurança Nacional...
Todavia, não parece impertinente esta pergunta: quem, ante os tumultuarios e arrazantes "rushs" dos paulistas, poderá atirar-lhe a primeira pedra?
Tudo o que os bandeirantes fizeram de possivelmente barbaro no cyclo da caça ao indio, está longe, astronomicamente longe, do que fez aquelle antigo guardador de porcos que se chamou Francisco Pizarro, devastando, com indescriptivel ferocidade, a maravilhosa civilização incaica e trucidando um povo que viera amigavelmente ao seu encontro, um povo cuja cultura estava ao par, senão àcima de muitos outros da civilizadissima Europa (3). E, todavia, não faz ainda um anno que se inaugurou em Trujillo, uma estatua do conquistador...
Longe ainda, infinitamente longe, das famigeradas crueldades dos bandeirantes, estão as incriveis façanhas de Fernando Cortez, reduzindo a escombros a incomparavel civilização aztéca, no Mexico, tão maravilhosa quanto a incaica do Peru. E o que este ibero feroz realizou no imperio de Montezuma, não está muito distante do que fizeram La Salle De Soto na America do Norte. E, se estes ainda não possuem estatuas glorificadoras, estão emprestando o nome illustre a duas marcas de lindos automoveis.
Longe, ainda, estão, as crueldades dos paulistas, das arripiantes incursões do francez Dlonnais que arrazou Maracalbo, S. Antonio de Gilbraltar, Puerto Cavallo e S. Pedro. Esse tremendo filibusteiro só não incendiou mais porque, a paginas tantas, os indios conseguiram agarral-o e, depois de o assarem com todas as regras culinarias, devoraram-no.
Foi assim que povos civilizados, cometteram as maiores scenas de barbarie, não só no Novo Mundo, como tambem no Velho. Não ha quem desconheça as atrocidades praticadas pelos anglo-saxões contra os Pelles-Vermelhas nos Estados Unidos, pelos hespanhóes contra os "yumas" do Colorado, os "quixúas" do Peru e os "guaranys" do Paraguay; pelos francezes contra os indios da Guyanna; pelos germanos na Venezuela, na sua ephemera tentativa de colonização.
"O inicio dos "estabelecimentos", diz Cochin, é um misto de heroismo e de desordem, de sublime devotamento e de cupidez feroz. Foi um heroico navegante, Enambuc, de Picardie, o fundador da colonização das Antilhas. Foi um soldado heroico, o cap. D'Olive, quem, com M. de Plessis, pediu, em 1635, aos Senhores da Companhia das Ilhas, uma commissão para occupar Guadalupe. Sabe-se, porém, com que selvageria, depois da morte do seu companheiro, elle se atirou sobre os infelizes "caraibas", declarando-lhes - segundo o relato de um jesuita - uma guerra tão injusta quão vergonhosa". (4).
A propria Inglaterra que, no anno de 1102, tinha extinguido a escravidão, restaurou-a alguns seculos depois, "aperfeiçoando-a" com o famoso tratado anglo-hespanhol que lhe dava o monopolio do trafico, apezar dos clamores indignados do general William Wilberforce (5).
A barbarie, nesse periodo torvo da humanidade, era geral, mas, pode-se affirmar que os indios escravizados em S. Paulo não soffriam mais, não soffriam tanto como os que se entregavam ao labor martyrizante nas minas de Potosi, nos hervaes paraguayos de Maracaju, nos engenhos do Norte do Brasil ou nas lavouras de Cuba, Haiti e S. Domingos...
Couto Magalhães affirma: "tempo houve em que, só ao redor de São Paulo, existiam mais de 60.000 indios". Ora, conhecendo-se a rebeldia innata no selvicola e sabendo-se que, nessa época, a população de S. Paulo não ia além de 4.000 brancos e mestiços (6), não se faz mistér muita imaginação para calcular-se a facilidade com que os senhores seriam chacinados pelos escravos, caso tentassem martyrizal-os...
É verdade que, nesse cyclo tumultuario e dramatico da Historia do mundo, surgiam, às vezes, visionarios - como foi o caso de "sir" Walter Raleigh. Este, porém, além de aventureiro era poeta. E, na conquista dos Estados Unidos, quiz agir como poeta, à moda romantica.
Resultado: "tres expedições successivas foram tres irremediaveis desastres: a fome e, principalmente, os indios, mataram os expedicionarios."
"Sir" Raleigh só acordou de seu sonho de visionario muitos annos depois. E voltou à America, não mais como poeta, mas como um homem do seu tempo:" Il suivit l'usage du temps ou la piratarie etait encore la guerre, ou Draka illustra son nom em arretan les galions de l'Espagne, avec laquelle l'Anglaterra etait en paix: Releigh se vengea de sa mauvaise fortune, en pillant et en destruisan l'establishment espagnol de Saint Thomas" (7).
Seria fastidioso enumerarmos o que de atrós e de barbaro se praticava no mundo, nesse periodo cyclonico. A historia da Inquisição ahi está no conhecimento de todos; ahi estão ainda os arripiantes "pogromos" com que, desde a Edade Média, a civilizada Europa vem estarrecendo os proprios selvagens da Africa: judeus trucidados ou queimados vivos, na praça publica, na França, Allemanha, Russia, Portugal, Hespanha, desde o anno 1000 até aquem do seculo XIII; chacina de mulheres judias na Ukrania em 1918, já em pleno seculo da Civilização; creanças massacradas em Ekaterinoslaw e Bilostok, em 1905...
Para que proseguir?
Deante de tudo isso e de tudo quanto, nas guerras de conquista, se tem praticado no mundo; deante dos horrores que se testemunharam ha vinte annos atrás, durante a guerra européa; deante das horipilantes invenções chimicas e mecanicas e das composições bacteriologicas com que as potencias do mundo se preparam para uma proxima guerra de vingança e de odio - deante de tudo isso, as famosas "atrocidades" dos bandeirantes como que se ennevôam, se esgarçam, se diluem...
E, entretanto, para certos juizes apressados, os unicos bandidos do mundo continuam sendo os paulistas do bandeirismo...
Do livro
"Bandeiras e Bandeirantes" em preparo.
_____________
(1) - Doc. sobre as Bandeiras Paulistas. - Do "Archivo General de Indias" em Sevilha, Sep. t. V dos "Annaes" do Museu Paulista, pag. 7.
(2) - "Real Cedula al provincial de la Comp. de Jesus del Paraguay. - Op. Cit.
(3) - William Prescott - "Les Incas et la conquête du Perou".
(4) - A. Cochin - "L'Abolition de l'escelavage", pag. 4.
(5) - Rob, and Sam Sons - "The life of W. Wilberforce.
(6) - A. Taunay - "Hist. Geral das Bandeiras Paulistas", vol. 1,pag. 70.
(7) - E. Laboulaye - "Hist. Des Etats Unis", pag. 66.
Folha de São Paulo
"O artista tem que viver entre o povo, embora não deva fazer concessões à popularidade. Ser popular não é o mesmo que ser vulgar. O "xis" da questão está em tomar um assunto complicado e difícil, digerí-lo, simplificá-lo e torná-lo acessível ao grande público. Resumir numa charge, por exemplo, um problema econômico ou financeiro, eis o ideal(...) fazer arte para ser entendido por algumas pessoas é criar uma aristocracia artística."
Belmonte
domingo, 24 de novembro de 1935
Neste texto foi mantida a grafia original
Iniciava-se, assim, o tumultuoso cyclo da caça ao indio:
As terras ferteis se estendiam, promissoras de séaras opulentas, mas arranhadas apenas, aqui e ali, desordenadamente, em culturas primarias, pela ausencia quasi absoluta do operario rural. No norte, após o ensaio quasi inoperante da escravidão selvicola que, mesmo assim, conseguira arrancar do sólo o esplendor da cultura da canna, o indio fôra substituido, no problema servil, pelo negro africano que, em levas successivas e systematicas, atravessava o oceano, despovoando a Costa da Mina e a Guiné em favor das terras virgens do novo mundo.
Mas o Norte nadava em ouro. Os ricos senhores de engenho, graças ao concurso do braço indigena, podiam, quando o quizessem, dar-se o luxo de comprar "peças" africanas, dispensando os riscos da captura e forrando-se aos onus da exploração dos autochtones, embora a legislação das cortes portuguezas, tendentes a assegurar a liberdade dos índios, não passasse de puro despistamento juridico. Leis, alvarás e cartas-regias sahidas, com tão impressionante exhuberancia, através tres seculos, das immediações da Real Fazenda, nada mais eram, no dizer de Taunay, do que "refalsada hypocrisia".
Até então, escravizavam-se indios no Brasil inteiro. Já em 1550, Manuel da Nobrega escrevia ao seu provincial: "Nesta terra, todos ou a maior parte dos homens têm a consciencia pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão".
E se, no seculo do bandeirismo, apenas os paulistas realizavam, com intensidade, esse trafico, foi pela razão muito natural de que, sendo elles no geral pobres, não podiam ser humanitarios... comprando negros na costa da Africa. Dir-se-á, para suprema ignominia dos chefes bandeirantes, que uma coisa é comprar escravos e outra, muito diferente, é escravizal-os. O argumento, como se constata, é irretorquivel, e lembra o caso daquelle santo homem da anecdota que era um grande amigo dos animaes. Não matava um frango porque, dizia elle, lhe confrangia fundamente a alma judiar das pobres avesinhas. O que, aliás, não o impedia de lamber os beiços e sentar-se soffregamente a mesa, empunhando um facalhão, toda vez que lhe apresentavam um frango assado ou uma gallinha de molho pardo...
Todos quantos se lembram de investir contra os bandeirantes, accusando-os de terem praticado as maiores atrocidades contra os "pobres selvicolas", fiam-se excessivamente na documentação dos missionarios hespanhoes - parte interessadissima na secular contenda entre as duas forças que se chocaram, vezes sem conta, nas terras barbaras do novo mundo. Emquanto os hespanhoes se apossavam do territorio sul americano, pelo sul e pelo oeste, na tentativa de estabelecer o seu grande imperio theocratico hispano-guarany, os paulistas, na sua ansia expansionista, rompiam a linha tordezilhana que tentava contel-os no ambito asphyxiante da capitania, e sahiam - como dizem os documentos coévos - em busca de "remedio para a sua fraqueza", isto é, dos braços de que necessitavam para suas lavouras.
Incidem num juizo falso e absurdo, todos quantos suppõem que, nas suas arremettidas contra as reducções, fossem os bandeirantes encontrar, sempre, indios inoffensivos e missionarios inermes. Tanto isso não é verdade que, em innumeros documentos escriptos pelo punho dos proprios jesuitas, se constata, a todo passo, a bravura com que elles se defendiam e, muitas vezes, atacavam. Numa carta dirigida em 12 de novembro de 1648, ao governador do Paraguay pelo padre Justo Mansilla, escrevia este:
Ihs - Senor governador. Sabado y noviembro 7 dieram los nuestros assalto al enemigo en su real que era el puesto en donde, el ano passado, por otra invasion del mismo enemigo, se avia retirado la segunda reducion y sacaran al Padre xpl de arennas, a quien el enemigo tenia preso y con guardas de dia y de noche e dias avia, y mataram a seys o sete Portugeses a pelotassos, y algunos Tupis, con mucho animo y brio", etc. (1).
Mas não era sempre que as reducções atacavam os paulistas, matando-os a pelotaços, com "mucho animo y brio". Defendiam-se, tambem, com armas de fogo e eu acho que tolos seriam elles se são o fizessem. No assalto a uma das villas do Paraguay, segundo relata o capitão Domingos Gonzales a Sebastian Solorçano, secretario da Casa de Contratação de Sevilha, foram mortos 140 paulistas. Como se vê, os bandeirantes não investiam contra gente inerme. As reducções viviam, aliás, em constantes questões com as autoridades hespanholas, quer do Paraguay, quer do vice-reino do Prata e mesmo da Côrte. Na documentação colhida no enorme acervo do "Archivo General de Indias", em Sevilha, carinhosamente colligidas nos "Annaes" do Museu Paulista, é constante, insistente mesmo, o encontro de cartas vindas da Côrte, e dirigidas às reducções que se esparramavam pelas regiões do Guayrá, Tape e Uruguay, pedindo-se a devolução de armas e munições. Num desses documentos pede-se ao provincial ibero que "todas las armas que esa Religion tenia em las doctrinas de ellas y las que huviesse repartido a los indios de que se conponen, se la entregassen para que estuviessen a disposición de esa Religion, ni se entrometiesen los religiosos a exercitar los yndios en lo manejo dellas ni en los allardes otra acion politica ni militar", etc. (2).
... Noutra carta, pede a Côrte ao governador do Paraguay que retire 150 arcabuzes e mosquetes, 70 "botijas" de pólvora e 70 quintaes de chumbo, sendo que havia nas reducções jesuiticas, então, segundo testemunho do governador, nada menos de 800 boccas de fogo. As reducções defendiam-se bravamente e faziam muito bem.
Como se vê, os hespanhóes não andavam absolutamente tranquilos, ao saberem que seus indios estavam de tal modo armados. Forneciam-lhes armas, é verdade, quando os paulistas ameaçavam as reducções, mas tratavam prudentemente de recolhel-as, logo depois, porque, como escrevia don Gregorio Henestrosa, governador do Paraguay, ao presidente da Real Audiencia de La Plata "a estos yndios no se deben consentir estas armas de fuego, aun que sean para su defensa, fundandose em que pueden con el tiempo venir a usar mal de ellas, volviéndolas contra los espanoles de estas partes".
Tudo isso é symptomatico e quem quer que saiba lêr nas entrelinhas, se convencerá de que as famigeradas "atrocidades" dos paulistas não foram tantas nem tamanhas como pretendem. Tanto isso é provavel que, muitas vezes, os indios das reducções adheriam logo aos invasores: "los yndios reducidos se dan la mano con los que entram por el ytatin". Numa "Real Cedula" dirigida ao vice-rei do Peru', marquez de Mansera, narrando occorrencias no Sul, confessava a Côrte que os paulistas tinham se apoderado de tudo, porque "todos, indios e residentes, tinham-se juntado aos invasores, davam-lhes informações e os guiavam a outras villas e reducções".
Seria insensatez, evidentemente, rogar-se a grandiosidade da obra evangelizadora dos jesuitas na America, principalmente diante das figuras impressionantes de Anchieta e Nobrega no Brasil e de Jumpero Sierra e Garcez na California. Innumeros jesuitas foram, póde-se affirmar, mais santos do que homens. Isso, todavia, não quer dizer que, para o Brasil, seria uma das sete maravilhas do mundo o estabelecimento do Imperio Theocratico que, na opinião de Sylvio Romero, os hespanhóes, com tanta pertinacia, levavam à realidade na America, escorados no meridiano de Tordesilhas. Nesse sentido, a devastação leva a effeito pelos bandeirantes na Guayrá, no Tape e no Paraguay, é um feito que deve orgulhar a raça paulista porque dahi resultou a extincção definitiva da sorrateira ameaça e o avanço implacavel das fronteiras orientaes do Brasil até quasi a cordilheira dos Andes.
Dêmos de barato, porém, para argumentar, que a escravização de indios pelos paulistas, nesse tempo, fosse uma ignominia. E concordemos também em que os bandeirantes, nessas lutas, commetteram atrocidades.
Já dissémos - e todo o mundo o sabe - que não foram os paulistas que inventaram a escravidão, nem tiveram privilegio della. No Brasil inteiro se escravizaram indios, façanha que só terminou no Norte, quando se percebeu que o escravo negro, caçado na Africa, era mais submisso e mallevavel do que o indigena. Todavia, essa submissão e essa maleabilidade produziram, sabe Deus porque, a dantesca tragedia dos Palmares, para cuja extincção se appellou, em ultima instancia, para os "famigerados" bandeirantes de São Paulo... E se os negros da Guiné e da Costa da Mina, tão conformados e tão humildes, chegaram àquelle extremo, fugindo aos senhores de engenho como diabos que fugissem da cruz, deviam ter razões muito poderosas para fazel-o...
Tudo isso, porém, estava no espirito da epoca e, principalmente, nos costumes da terra semi-barbara. Todos quantos observam, e tentam julgar, os acontecimentos do seiscentismo e do setencentismo paulistas através do prisma civilizado dos nossos dias, devem lamentar-se de não terem os indios americanos se munido de "habeas corpus" preventivos contra as incursões dos bandeirantes, nem, ante a ameaça da escravização, appellando para a Lei de Segurança Nacional...
Todavia, não parece impertinente esta pergunta: quem, ante os tumultuarios e arrazantes "rushs" dos paulistas, poderá atirar-lhe a primeira pedra?
Tudo o que os bandeirantes fizeram de possivelmente barbaro no cyclo da caça ao indio, está longe, astronomicamente longe, do que fez aquelle antigo guardador de porcos que se chamou Francisco Pizarro, devastando, com indescriptivel ferocidade, a maravilhosa civilização incaica e trucidando um povo que viera amigavelmente ao seu encontro, um povo cuja cultura estava ao par, senão àcima de muitos outros da civilizadissima Europa (3). E, todavia, não faz ainda um anno que se inaugurou em Trujillo, uma estatua do conquistador...
Longe ainda, infinitamente longe, das famigeradas crueldades dos bandeirantes, estão as incriveis façanhas de Fernando Cortez, reduzindo a escombros a incomparavel civilização aztéca, no Mexico, tão maravilhosa quanto a incaica do Peru. E o que este ibero feroz realizou no imperio de Montezuma, não está muito distante do que fizeram La Salle De Soto na America do Norte. E, se estes ainda não possuem estatuas glorificadoras, estão emprestando o nome illustre a duas marcas de lindos automoveis.
Longe, ainda, estão, as crueldades dos paulistas, das arripiantes incursões do francez Dlonnais que arrazou Maracalbo, S. Antonio de Gilbraltar, Puerto Cavallo e S. Pedro. Esse tremendo filibusteiro só não incendiou mais porque, a paginas tantas, os indios conseguiram agarral-o e, depois de o assarem com todas as regras culinarias, devoraram-no.
Foi assim que povos civilizados, cometteram as maiores scenas de barbarie, não só no Novo Mundo, como tambem no Velho. Não ha quem desconheça as atrocidades praticadas pelos anglo-saxões contra os Pelles-Vermelhas nos Estados Unidos, pelos hespanhóes contra os "yumas" do Colorado, os "quixúas" do Peru e os "guaranys" do Paraguay; pelos francezes contra os indios da Guyanna; pelos germanos na Venezuela, na sua ephemera tentativa de colonização.
"O inicio dos "estabelecimentos", diz Cochin, é um misto de heroismo e de desordem, de sublime devotamento e de cupidez feroz. Foi um heroico navegante, Enambuc, de Picardie, o fundador da colonização das Antilhas. Foi um soldado heroico, o cap. D'Olive, quem, com M. de Plessis, pediu, em 1635, aos Senhores da Companhia das Ilhas, uma commissão para occupar Guadalupe. Sabe-se, porém, com que selvageria, depois da morte do seu companheiro, elle se atirou sobre os infelizes "caraibas", declarando-lhes - segundo o relato de um jesuita - uma guerra tão injusta quão vergonhosa". (4).
A propria Inglaterra que, no anno de 1102, tinha extinguido a escravidão, restaurou-a alguns seculos depois, "aperfeiçoando-a" com o famoso tratado anglo-hespanhol que lhe dava o monopolio do trafico, apezar dos clamores indignados do general William Wilberforce (5).
A barbarie, nesse periodo torvo da humanidade, era geral, mas, pode-se affirmar que os indios escravizados em S. Paulo não soffriam mais, não soffriam tanto como os que se entregavam ao labor martyrizante nas minas de Potosi, nos hervaes paraguayos de Maracaju, nos engenhos do Norte do Brasil ou nas lavouras de Cuba, Haiti e S. Domingos...
Couto Magalhães affirma: "tempo houve em que, só ao redor de São Paulo, existiam mais de 60.000 indios". Ora, conhecendo-se a rebeldia innata no selvicola e sabendo-se que, nessa época, a população de S. Paulo não ia além de 4.000 brancos e mestiços (6), não se faz mistér muita imaginação para calcular-se a facilidade com que os senhores seriam chacinados pelos escravos, caso tentassem martyrizal-os...
É verdade que, nesse cyclo tumultuario e dramatico da Historia do mundo, surgiam, às vezes, visionarios - como foi o caso de "sir" Walter Raleigh. Este, porém, além de aventureiro era poeta. E, na conquista dos Estados Unidos, quiz agir como poeta, à moda romantica.
Resultado: "tres expedições successivas foram tres irremediaveis desastres: a fome e, principalmente, os indios, mataram os expedicionarios."
"Sir" Raleigh só acordou de seu sonho de visionario muitos annos depois. E voltou à America, não mais como poeta, mas como um homem do seu tempo:" Il suivit l'usage du temps ou la piratarie etait encore la guerre, ou Draka illustra son nom em arretan les galions de l'Espagne, avec laquelle l'Anglaterra etait en paix: Releigh se vengea de sa mauvaise fortune, en pillant et en destruisan l'establishment espagnol de Saint Thomas" (7).
Seria fastidioso enumerarmos o que de atrós e de barbaro se praticava no mundo, nesse periodo cyclonico. A historia da Inquisição ahi está no conhecimento de todos; ahi estão ainda os arripiantes "pogromos" com que, desde a Edade Média, a civilizada Europa vem estarrecendo os proprios selvagens da Africa: judeus trucidados ou queimados vivos, na praça publica, na França, Allemanha, Russia, Portugal, Hespanha, desde o anno 1000 até aquem do seculo XIII; chacina de mulheres judias na Ukrania em 1918, já em pleno seculo da Civilização; creanças massacradas em Ekaterinoslaw e Bilostok, em 1905...
Para que proseguir?
Deante de tudo isso e de tudo quanto, nas guerras de conquista, se tem praticado no mundo; deante dos horrores que se testemunharam ha vinte annos atrás, durante a guerra européa; deante das horipilantes invenções chimicas e mecanicas e das composições bacteriologicas com que as potencias do mundo se preparam para uma proxima guerra de vingança e de odio - deante de tudo isso, as famosas "atrocidades" dos bandeirantes como que se ennevôam, se esgarçam, se diluem...
E, entretanto, para certos juizes apressados, os unicos bandidos do mundo continuam sendo os paulistas do bandeirismo...
Do livro
"Bandeiras e Bandeirantes" em preparo.
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(1) - Doc. sobre as Bandeiras Paulistas. - Do "Archivo General de Indias" em Sevilha, Sep. t. V dos "Annaes" do Museu Paulista, pag. 7.
(2) - "Real Cedula al provincial de la Comp. de Jesus del Paraguay. - Op. Cit.
(3) - William Prescott - "Les Incas et la conquête du Perou".
(4) - A. Cochin - "L'Abolition de l'escelavage", pag. 4.
(5) - Rob, and Sam Sons - "The life of W. Wilberforce.
(6) - A. Taunay - "Hist. Geral das Bandeiras Paulistas", vol. 1,pag. 70.
(7) - E. Laboulaye - "Hist. Des Etats Unis", pag. 66.
Folha de São Paulo
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