Norberto Luiz Guarinello
Professor de História Antiga do Departamento de História – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – USP – 05509-900 – São Paulo/SP. E-mail: guarinel@usp.br
A violência tem muitas faces. Lamentamos a violência crescente da criminalidade, mas também consideramos uma violência a brutal desigualdade que produz, ao menos em parte, nossos criminosos. Criminosos que condenamos, justa ou injustamente, à violência de nosso sistema prisional – um dos mais brutais deste planeta. Observamos horrorizados à violência dos chamados terroristas, mas a violência da ação imperial dos países dominantes do mundo tampouco nos reconforta. Condenamos a violência doméstica ao mesmo tempo em que reclamamos da falta de limites das novas gerações. Violência é uma palavra latina, derivada de vis, força, e nós a empregamos em um sem-número de sentidos: a força da natureza, do mar, do vento, dos elementos, a força física que obriga um ser humano a fazer o que não quer, a força social que mantém os oprimidos e explorados em seus lugares, a força moral, intelectual, que domina nossas mentes e nos faz achar nosso próprio mundo normal, muito normal. Parte integrante e necessária da vida, instinto de morte ou de poder ou, ao contrário, ruptura de relações estabelecidas, ato de um poder perverso e perversamente exercido? Não tenho respostas: a violência, em qualquer caso, só nos é presente, só se manifesta, quando nos incomoda, quando parece fugir de nosso controle, quando está além do "normal", além do esperado. Muitos pequenos atos de nosso cotidiano, para nós absolutamente normais e corriqueiros, podem parecer absolutamente violentos, quando vistos por um estranho, quando encarados da fronteira que separa o "nós" do "outro". A violência, assim, antes de ser um fato sociológico é, primordialmente, um fato antropológico, que se desvenda e se constrói na diferença. E, portanto, é também um fato histórico, na mesma medida em que o passado, que a história estuda, é uma terra estrangeira, é um outro, diferente de nós.
Dito em outros termos: para entendermos e estudarmos a violência entre nós, para estabelecermos juízos sobre ela, para a aceitarmos em suas várias formas ou negá-la, é importante refletir sobre ela fora de nós, entendê-la no outro, chocarmo-nos mesmo com a violência do outro, para depois repensá-la em nosso próprio mundo.
Não é difícil encontrar violência em mundos diferentes do nosso. Os romanos, por exemplo, expunham os bebês indesejados ao apetite dos animais da floresta, ou à bondade, ou interesse, de pessoas que os encontrassem e se dispusessem a criá-los, como filhos ou como escravos. Mas não é tão diferente. Nós simplesmente abortamos os filhos indesejados, por mais que a prática seja ilegal em nosso país. Talvez mais diferente de nós seja o fato de que os romanos supliciavam seus condenados, matavam-nos com requintes de crueldade, expunham seu suplício à vista de todos, transformavam sua morte em espetáculo. Mas o estranhamento não é tão grande assim: muitos em nosso mundo defendem a pena de morte como exemplo e como ato de vingança reparatória. Até bem adentrado o século XX a execução pública de criminosos era considerada um ato exemplar e socialmente útil e, em alguns países, ainda é assim considerada, como nos EUA, na China ou em países que adotaram uma certa interpretação estrita da lei islâmica.
Talvez consideremos os romanos especialmente cruéis, pois seus métodos de execução incluíam a exposição a feras selvagens, a condenação ad bestias, ou a crucificação, muitas vezes como parte de um espetáculo. 1 Mas esperar cinco ou 10 anos no corredor da morte, depositar as esperanças em cada um dos incontáveis recursos, contar com uma última apelação, quase sempre recusada, não é, necessariamente, menos cruel ou violento que uma simples condenação na arena. Como não é menos violento ser condenado, como em nosso país, ao suplício de conviver confinado num espaço onde caberiam 160 pessoas, com outras 1.600, seja como mero acusado, aguardando um julgamento que nunca virá, seja cumprindo uma pena pequena por um delito de menor importância. Não! A crueldade penal romana só chocaria aos menos informados sobre nosso próprio mundo, tanto nos países dominantes como nos demais.
Para explorarmos, com a ajuda do mundo antigo, nossa própria sensibilidade e nossa noção do que é violência, há uma prática social romana que nos parece peculiarmente estranha e singular, pois combina a violência do derramamento de sangue e as emoções do espetáculo, sem que haja qualquer expiação de culpa, qualquer retribuição por um crime cometido; as lutas entre gladiadores. 2
Combates sangrentos. 3 Diferentemente de nossos jogos coletivos, que também atraem multidões para estádios fechados, os jogos gladiatórios romanos eram combates pela vida, eram disputas que podiam resultar na morte de um dos competidores. Seriam os romanos mais cruéis do que nós? Gostariam, mais do que nós, de ver o sangue derramado sobre a areia dos anfiteatros? De ver a morte acontecer, real, concreta, material, sob os próprios olhos que a testemunham? E, se a resposta for afirmativa, por quê?
Qualquer resposta que se dê a essa questão deve enfrentar primeiro a descrição que Agostinho nos oferece de um jovem cristão, atraído involuntariamente às disputas entre gladiadores em meados do século IV d.C. Agostinho fala de seu amigo, o cristão Alípio:
Não desejando de modo algum abandonar a vida deste mundo a que o estimulavam seus pais, tinha me precedido em Roma para estudar Direito e lá foi vítima, em condições inacreditáveis, de uma paixão igualmente inacreditável pelos espetáculos de gladiadores. No início odiava esses espetáculos. Mas alguns amigos, companheiros de estudo, que voltavam de um jantar, encontraram-no por acaso na rua. Tentou resistir energicamente, mas seus amigos o impeliram com uma violência amistosa e o levaram ao anfiteatro, onde nesse dia, ocorriam esses jogos cruéis e funestos. Ele lhes dizia: "meu corpo, vocês podem arrastar e instalá-lo nas arquibancadas, mas poderão fixar meus olhos e meu espírito, pela força, nesses espetáculos? Estarei como que ausente e triunfarei sobre vocês e sobre eles". Essas palavras não impediram seus amigos de levá-lo. Queriam ver se conseguiria fazer o que dizia. Chegaram, sentaram-se como puderam, todo o anfiteatro ardia com as mais selvagens paixões. Alípio, fechando seus olhos, proibiu seu espírito de participar dessas atrocidades. Pena que não tenha também abafado seus ouvidos. Pois aturdido pelo grito tonitruante de toda a multidão após a queda de um dos gladiadores, foi vencido pela curiosidade e, como se estivesse preparado para suportar e desprezar o que fosse que estivesse acontecendo, abriu seus olhos e recebeu em sua alma uma ferida mais severa do que o gladiador recebera em seu corpo, e caiu mais miseravelmente que o homem cuja queda suscitara o grito. Pois quando viu o sangue, imediatamente sorveu a selvageria e não virou o rosto, mas fixou-se na imagem que via e absorveu a loucura e perdeu seu senso crítico e deleitou-se com a luta criminosa e embebedou-se num funesto prazer. Não era mais o homem que tinha ido ao espetáculo, mas um membro da multidão, um verdadeiro companheiro daqueles que o haviam trazido. Em suma, acompanhou o espetáculo, gritou, ferveu de emoção e saiu de tal modo insano que estava pronto, não apenas para acompanhar de novo os que o haviam trazido, mas para convencer outros a ir. (Agostinho, Confissões, VI,8).
O que aconteceu com o cristão Alípio? Por que a violência do espetáculo pareceu-lhe, não apenas aceitável, mas desejável e emocionante?
Em primeiro lugar, devemos desfazer um mal-entendido. Alípio, assim como a massa humana cujo delírio o envolveu, não se deixou seduzir, pura e simplesmente, pela visão da morte de outrem, pelo sangue humano jorrado. Os historiadores do século XIX e de boa parte do XX costumavam, com efeito, atribuir a violência dos jogos de gladiadores aos instintos baixos e vis da população mais pobre de Roma e das províncias, às paixões da plebe, ao mesmo tempo enganada e cúmplice de uma política centrada no binômio "pão e circo". A historiografia contemporânea rejeita, em grande parte, esses estereótipos. 4 No caso particular dos gladiadores, sabe-se hoje que as classes dominantes tinham um envolvimento direto com sua realização, não apenas financiando os jogos, mas, muitas vezes, lutando como gladiadores na arena.5 Além disso, a historiografia moderna procura construir uma nova compreensão dos espetáculos no mundo romano – não apenas como momentos de diversão e prazer, mas como espaços de ação política, religiosa, cultural e identitária.6
Os jogos de gladiadores fornecem um bom exemplo dos intrincados percursos sociais do espetáculo no mundo romano. Quando Alípio se deixou seduzir pelas lutas no Coliseu, as disputas de gladiadores existiam há mais de 700 anos. Eram um fato normal da vida cotidiana há muito tempo. Sua origem ligava-se, provavelmente, a uma prática funerária de origem itálica, talvez etrusca, talvez campana. As primeiras disputas entre gladiadores ocorreram na cidade de Roma em 264 a.C., como parte de um ritual funerário. Ao longo da república os combates foram raros, sempre associados a um ritual em homenagem a um morto. 7 Durante o Império, embora sem perder sua vinculação com a esfera do sagrado, os combates de gladiadores aumentaram de freqüência e se difundiram por todo o mundo romano. No ocidente, como no oriente, surgiu um tipo especial de edifício, o anfiteatro, que funcionava como palco das lutas entre gladiadores e de outras formas de espetáculo. 8 Em Roma, assim como nas províncias, as lutas de gladiadores estavam sempre ligadas à pessoa do imperador. Era ele quem as oferecia em Roma e, nas províncias, eram os sacerdotes do culto imperial os responsáveis por sua realização. 9 Os anfiteatros funcionavam como uma espécie de microcosmo da sociedade romana, como parte e reflexo da vida cotidiana. Os assentos eram repartidos segundo as classes da população e o próprio anfiteatro era um espaço onde a população, não apenas via, mas se fazia ver e ouvir, no qual imperador e plebe, dirigentes e dirigidos, se confrontavam face a face, onde o anonimato da massa conferia força e consistência para o apoio ou as reivindicações da plebe. Nesse espaço, sagrado e mundano, as lutas entre gladiadores ocupavam um lugar especial, ao mesmo tempo de honra e degradação.
O anfiteatro era, para os romanos, um espaço de sua normalidade cotidiana, um lugar no qual reafirmavam seus valores e sua concepção do "normal". Por um lado, como ressaltam estudiosos contemporâneos, a arena atuava como espaço identitário, que separava o romano do não romano, o obediente do resistente, o normal daquele que rompia as normas. Isso explica por que os anfiteatros se espalharam por todo o Império, mesmo para as regiões de fala grega. Nos anfiteatros se expunham, para serem supliciados, bárbaros vencidos, inimigos que se haviam oposto à ordem romana. Nos anfiteatros se supliciavam, também, bandidos e marginais, 10 como por vezes os cristãos, que eram expostos às feras e dados como espetáculo, expostos ao prazer de suas vítimas ou daqueles que defendiam os valores normais da sociedade. 11
Mas os combates de gladiadores ocupavam um lugar à parte, um lugar de honra. Embora, de início, os gladiadores tenham sido, em sua maioria, prisioneiros de guerra ou escravos comprados explicitamente para esse fim (o que explica revoltas importantes, como a do gladiador Espártaco, nos anos 70 a.C.), à época do Império boa parte dos gladiadores era de origem livre. Eram os auctorati, alguns deles de origem nobre, como cavaleiros ou mesmo senadores, que se ofereciam como gladiadores, colocando-se sob o poder de seu mestre (o lanista), ao qual prestavam um juramento sagrado.12 O Satyricon, de Petrônio, preservou-nos as palavras desse juramento: "juro deixar-me ser queimado, amarrado, chicoteado, morto pelo ferro e qualquer outra coisa que meu senhor ordene" (Sat. 177).
Esse juramento era, certamente, um ato de submissão, indigno de um homem livre e, portanto, degradante. Isso explica as repetidas leis imperiais que tentaram impedir o acesso à gladiatura por membros das classes dominantes de Roma e das províncias. Sem muito sucesso, aliás, tendo em vista que até mesmo alguns imperadores sentiram prazer em apresentar-se como gladiadores. E por quê? Porque o juramento transformava o gladiador num ser sagrado, para o qual a dor e a morte deixavam de ser ameaças terríveis para se tornarem parte corriqueira da vida: um simples momento, o momento da verdade, que deixava de ser objeto de angústia para se tornar objeto de honra. Honra e vergonha são palavras-chave para entendermos a paixão que os gladiadores suscitavam no mundo romano. O gladiador vencido, ao invés de lutar inutilmente pela vida, oferecia graciosamente o pescoço a seu adversário e à platéia. Transmutava, assim, a vida num combate glorioso, cujo fim, necessário para todos, podia ser uma morte digna.
Para entendermos a força do gladiador nessa sociedade, devemos por um momento suspender nossos próprios conceitos sobre o certo e o errado. No Império Romano, a pessoa do gladiador podia ser degradada – embora muitos gladiadores conquistassem fama e riquezas e se aposentassem com um belo pecúlio. A figura do gladiador, por outro lado, era um belo espelho de realização humana, um modelo para filósofos e religiosos. 13 Não por acaso, um filósofo sensível como Sêneca escolheu o gladiador como parâmetro ideal para julgar as ações humanas, por seu desprezo da vida, que torna a vida digna possível. Diz-nos ele, em sua Carta 37 a Lucílio:
Você alistou-se (na vida) sob juramento. Se alguém disser que esta é uma maneira fácil e tranqüila de serviço militar, é apenas porque quer fazer pouco caso de você. Não quero que seja enganado: as palavras deste juramento, o mais honroso de todos, são as mesmas daquele juramento, o mais estúpido de todos: ser queimado, ser amarrado, ser morto pelo ferro... Você deve morrer ereto e invicto. Que diferença faria ganhar alguns dias ou anos? Nascemos num mundo sem quartéis. (SÊNECA, Carta 37)
O mesmo modelo se aplicará, nos séculos seguintes, aos mártires cristãos, soldados de Deus, capazes de suportar, sem recuos, as mais inacreditáveis torturas, em respeito a um juramento feito. Homens que desprezam a vida, que nos ensinam que ela é passageira, que enfrentam a morte honradamente, que nos ensinam o que é honra, que nos mostram o que é e como é viver dignamente.14
Dito isso, cabem duas observações: a maioria dos gladiadores não morria em combate e, embora a taxa de mortalidade fosse acima da média (digamos algo como 20%), a maioria morria honradamente, cercada pelos cuidados de seus parentes e amigos, ao menos durante o Império. Em suma, não era o massacre, a vista do sangue, a dor alheia que seduzia os espectadores, mas um uso, todo próprio, todo especial, todo romano, do que nós mesmos consideramos uma violência absurda.
Por outro lado, não devemos nos deixar iludir pelo glamour dos anfiteatros. Era um lugar de sangue, de dor e de morte e muitos eram conduzidos à arena contra a vontade e inocentes de qualquer crime. Um exercício declamatório preservado no corpus de Quintiliano nos oferece uma idéia do que podia ser, para um neófito, ou um simples cidadão injustamente acusado, a perspectiva de enfrentar a morte na arena:
Pseudo-Quintiliano, Exercícios retóricos, 9.6:
... O dia chegara e o povo se reunira para o espetáculo de minha punição. Os corpos dos que haviam de morrer eram exibidos na arena, conduzidos na procissão de sua própria morte. Aquele que oferecia o espetáculo (o editor) estava sentado, acumulando o prestígio que obteria com nosso sangue. Embora ninguém conhecesse minha sorte, minha família, meu pai, pois estava separado de meu lar pelo mar, algo em mim despertou a misericórdia dos espectadores, pois eu parecia completamente despreparado. Meu destino inevitável era ser uma vítima da arena. Ninguém custara mais barato que eu ao ofertante dos jogos. Por todo o lado ouvia-se o barulho feito pelo equipamento da morte: uma espada que se afiava, uma peça de metal que se aquecia, bastões que se preparavam, chicotes. Esses homens pareciam piratas. Os trompetes soavam um tom fúnebre e a procissão funerária prosseguia carregando os leitos de Libitina (deusa romana dos funerais), antes mesmo que alguém morresse... por toda parte ferimentos, gritos, lamentos, só perigo. (Pseudo-Quintiliano, Exercícios retóricos, 9.6).
A honra, o prestígio, a coragem e o valor não eliminavam a violência. Pelo contrário, era a própria violência que lhes dava sentido.
Concluindo: É importante termos consciência de que violência não é um conceito preciso, nem mesmo um termo cujo sentido permaneça o mesmo na medida em que nos movemos no tempo e no espaço, entre culturas ou entre grupos de uma mesma cultura. Há pouco mais de 100 anos era comum bater-se nas crianças nas escolas. Achava-se, mesmo, necessário para seu aprendizado (mas ninguém ouvia as crianças!). Em nosso mundo, a violência pode ser encontrada em qualquer canto, em qualquer lugar. Muitas vozes a defendem explicitamente contra outros seres humanos, apenas por serem diferentes. A consciência do relativismo cultural nos permite apreciar e tentar entender o humano em toda a sua diversidade, mas não nos exime do dever de estabelecer, para nós mesmos, individual ou coletivamente, qual é a violência que julgamos aceitável e qual deve ser reprimida ou abolida de nossas vidas.
Revista História - UNESP
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