terça-feira, 6 de outubro de 2009

Superstições e Religiosidade na Res Publica: Espaços de Poder?(1)


A proposta deste texto é discutir as ligações entre religião e profecia como formas de poder em Tito Lívio.

Luís Filipe Silvério Lima
No século II a.C., o historiador grego Políbio, em sua História, comentando sobre a alta religiosidade em Roma, indica como uma das razões para a superioridade da república romana (e de sua estabilidade) o uso das superstições para conter a massa popular “por temores invisíveis e por criações semelhantes a imaginação” (POLÍBIO, 1985: IV, 56). Moses I. Finley, buscando as origens da estabilidade e autoridade nas cidades-Estado do mundo clássico, remete, em uma curta digressão sobre o papel da religiosidade neste contexto, a essas impressões do historiador grego (FINLEY, 1983: 26).
O autor inglês, contudo, vê nessas manifestações religiosas não mais do que um fator residual para legitimar o sistema como um todo. Não considera a religião como quesito decisivo ou sequer suficiente “in the process by wich such great authority was acquired by the system and then maintained for a long time” (FINLEY, 1983: 27). Para compreender esse processo parcialmente, vai construir – sem, porém, negar a importância dos aspectos culturais (2) – seu texto a partir de explicações calcadas nas relações materiais dentro das esferas estatais e sociais, e entre estas. De certa forma, Finley, em sua análise, desmonta a afirmação de Políbio, mesmo tendo percebido o enorme imbricamento entre a liturgia, como no caso dos auspícios, e a vida sócio-política no mundo clássico.

Partindo desta reflexão de Finley sobre o poder no mundo clássico, tentamos encontrar na História de Roma, de Tito Lívio, evidências que nos possibilitassem uma reflexão sobre o papel da religião na Roma republicana. A religião, neste caso, faz-se essencial para examinarmos as estruturas e relações de poder, constituintes da sociedade e da civitas romana.

Enquanto Políbio escreveu em momento de grande expansão do império romano – foi espectador da queda de Cartago –, Tito Lívio começou sua obra na década de 30 a.C., período precedido por grandes batalhas intestinas, no qual se atropelou o mos. Somente com a vitória de Otaviano, tornado Augusto e príncipe do Senado, foram as portas do templo de Jano Quirino cerradas (Res Gestae, 13). Esta nova configuração de poder rompeu com a debilitada República romana. Centralizado na figura de Augusto, que possuía, naquele momento, o imperium dos cônsules e pretores e o caráter sacrossanto dos tribunos da plebe, inaugurou-se o que posteriormente se denominou o Império. Essa ruptura, porém, não se fez no discurso, Otaviano, nos seus dizeres, transferiu “o governo da república, passando-o da minha pessoa [de Augusto] às mãos do senado e do povo romano” (Res Gestae, 34).

Cientes do contexto de turbulência e restruturação de Roma em que se escreveu a obra, foi que compulsamos Lívio (3). Preocupados com as práticas e manifestações religiosas, viramo-nos para um ponto convergente nos textos de Políbio e Finley: as superstições, nos dizeres do historiógrafo grego, ou ainda, os auspícios e prodígios. Para tanto, analisamos o livro XLI, catalogando o grande número de prodígios e auspícios, razão da escolha. Além deste, iremos usar trechos de outros livros da História de Roma, nos quais percebemos relações com o objetivo proposto. Estes outros, entretanto, vão ser limitados a um pequeno espectro temporal dentro da narração liviana, com algumas exceções, pois não intendemos perder o fio condutor estabelecido no livro XLI.

Antes, porém, tentaremos definir as diferenças entre auspícios e prodígios. Auspícios são sinais de Júpiter para nos fazer conhecer sua vontade e aprovação, percebidos através de consultas realizadas pelos magistrados e sacerdotes romanos, nos assuntos públicos (auspicia publica) e em situações extraordinárias (SCHEID, 1991: 54-5). No dicionário Mythologie et Antiquités Grecques et Romaines (LAVEDAN, 1931), ainda encontramos sua classificação pelas funções e tipos, sendo de nosso interesse os auspicia ex avibus e auspicia ex tripudiis, na convocação dos comícios, e os auspícios de guerra (auspicia bellica), para iniciar ou continuar uma guerra e/ou batalha, ou mesmo sua estratégia - ainda há nesse sentido uma divisão aos vários auspicios relativos a vida da Urbs, ou de Roma enquanto cidade-Estado possuidora de vida política e social, o auspicia urbana, e essa segunda divisão, os auspicios de guerra, ligados a consulta à Júpiter em momentos de guerra. (LAVEDAN, 1931: 145-6). Temos em Lívio exemplos, a título de ilustração, de auspícios de guerra:

(…) não desejando [os cônsules] atacar o inimigo pelo mesmo lado, sortearam as direções que tomariam. Quanto a [o cônsul Cláudio] Valério, o sorteio se realizou incontestavelmente de acordo as exigências dos auspícios, pois aconteceu dentro do espaço consagrado (…) (XLI, 18);

na convocação de comícios:

(…) Quinto Petílio ficou encarregado de, logo que os auspícios o permitissem, reunir os comícios para dar substituto ao colega (…) (XLI, 16).

Era considerado de bom agouro que os auspícios atingissem seus objetivos na primeira tentativa, como vemos no caso da guerra contra o rei Antíoco, nos consulados de Públio Cornélio Cipião e Mânio Acílio Glabrião:

(...) Todos esses sacrifícios foram auspiciosos; desde as primeiras vítimas os presságios se mostraram favoráveis, de sorte que os arúspices responderam que “aquela guerra alargaria as fronteiras do povo romano, estando em vista uma vitória e um triunfo”. (Livro XXXVI, 1)

E, obviamente, ocorria no caso inverso.

Os prodígios também eram sinais enviados pelos deuses (4), entretanto, vinham, enquanto fatos extraordinários, no sentido de uma revelação, não na acepção da teologia cristã, de suas vontades e humores; não constituíam, como os auspícios, consultas ao divino, pedindo aprovação ou legitimação dos atos da vida romana. Seus sinais, quando não prontamente resolvidos pelos magistrados (5), eram interpretados pelo pontífice e colégio pontificial, ou pelo colégio dos áugures, que consultavam, nos casos mais graves, os Livros Sibilinos. Depois encaminhava-se a liturgia – auspícios, suplicações, sacrifícios – necessária (LAVEDAN, 1931). Iremos transcrever, à guisa da exemplificação, dois casos narrados por Tito Lívio, o primeiro com a ação dos cônsules, o segundo com a dos pontífices:

(…) A fim de expiar esses prodígios, os cônsules imolaram vítimas adultas e determinaram uma suplicação de um dia em todos os santuários (XLI, 9);

(…) em Túsculo, avistara-se uma tocha no céu; em Gábios, o templo de Apolo e diversas residências foram feridas pelo raio, sucedendo o mesmo a um muro e uma porta em Graviscas. Ordenaram os senadores que esses prodígios fossem expiados segundo prescrição dos pontíficies (XLI, 16). (6)

Presentes no livro XLI, os prodígios permeiam uma série de vitórias e êxitos militares, além dos inícios políticos da guerra contra a Macedônia, que se tornará uma importante conquista romana. Através desse conteúdo bélico não é possível alinhavar os acontecimentos narrados dentro do espectro religioso, indicador aqui do desagrado de Júpiter, causando um descolamento entre a campanha militar, favorável, e os sinais divinos, normalmente desfavoráveis. Quais seriam, então, os possíveis motivos olímpicos da interferência divina? Para tentar alcançar esta questão, favoravelmente, iremos elencar rapidamente os prodígios ocorridos entre o período abarcado pelo livro, 178-174 a.C.

Os primeiros prodígios ocorrem nos consulados de Caio Cláudio Pulcro e Tibério Semprônio Graco, em 177 a.C., antes que sorteassem as províncias da Ístria e Sardenha entre eles, na forma de pedra caída no bosque sagrado de Marte, um recém-nascido sem membros, uma serpente de quatro patas, fogo celeste e raio. E enquanto se divulgavam tais prodígios, na própria Roma um lobo foi perseguido pelas ruas; entrando pela porta Colina, escapou pela porta Esquilina (XLI, 9).

Ainda sob o consulado de Cláudio e Graco, outros anunciaram-se. Um pássaro feriu uma pedra sagrada, uma vaca falou, uma estátua de bronze, representando uma novilha é coberta por um touro (XLI, 13). No ano de 176 a.C., apareceram uma tocha no céu e um raio danifica construções e o templo de Apolo (XLI, 16). Nasceram, no ano seguinte, crianças com duas cabeças, sem mão, com dentes; houve arco-íris em dia de sol sem chuva; surgiram três sóis e meteoritos no céu, e uma serpente flamejante em cidades; além de um boi falante (XLI, 21).

Enfeixando cada grupo de portentos (7) com os outros acontecimentos narrados no livro, não encontramos em todos correlações diretas, ou, pelo menos, nem todo prodígio era acompanhado de um fato significativo. Temos como exemplo o primeiro caso dos descritos acima, no qual, após o aparecimento dos prodígios, os cônsules levaram adiante com êxito as batalhas contra os sardos e ístrios.

Por outro lado, os últimos ocorreram em um momento de peste em Roma, onde muitos habitantes morreram dificultando o recrutamento de soldados. A epidemia prolongada, que, no ano anterior, atacara o gado, havia levado o Senado a decretar que os decênviros consultassem os livros sibilinos (XLI, 21).

Há ainda no texto de Lívio, uma terceira variante. O segundo conjunto de prodígios anunciados no ano de 177 a.C., no qual um xofrango (8) bicara uma pedra sagrada, uma vaca falara, uma novilha de bronze fora aspergida de esperma por um touro (XLI, 13), foi seguido pela morte do pontífice Marco Cláudio Marcelo (que fôra cônsul e censor). Se estabelecermos alguma relação entre esses portentos e o falecimento do pontífice – é importante frisar que Lívio não fez essa ponte –, criamos uma terceira categoria de sinais divinos, os presságios, no caso relacionados à morte de um bonus, caracterizando um omen de morte. Os presságios, favoráveis ou não, eram indícios divinos dos acontecimentos futuros, diversos das consultas auspiciais, que originavam presságios, ou dos prodígios (9).

É importante notar a existência de casos, nos quais esses três tipos de evento se relacionam, aos pares, mormente, costurando-se com os acontecimentos. Um exemplo, entre presságio e auspício, citado anteriormente, está em XLI, 18:

(…) não desejando [os cônsules] atacar o inimigo pelo mesmo lado, sortearam as direções que tomariam. Quanto a [o cônsul Cláudio] Valério, o sorteio se realizou incontestavelmente de acordo as exigências dos auspícios, pois aconteceu dentro do espaço consagrado; mas, relativamente a Petílio, os áugures declararam posteriormente que o rito fora viciado, uma vez que (…) a sorte que lançara na urna (…) Petílio ergueu acampamento face à cadeia formada pelos montes Leto e Balista (…) E ali, ao que se diz, arengando aos soldados reunidos em assembléia, anunciou à guisa de presságio, mas sem notar para ambigüidade do termo, que no mesmo dia tomaria Leto. (…) [o cônsul Petílio, durante a batalha, já vitoriosa] avançando com excessiva imprudência adiante das insígnias, caiu varado por uma dardo. (…) O que se passou não foi apenas o resultado manifesto de um presságio sinistro: também se ouviu de um pulário (10) que houvera falha na tomada dos auspícios, fato que o cônsul não ignorava.

A não observância correta dos auspícios, e a não percepção do duplo significado entre tomar o Leto (Letum capturum), a montanha, e letum, falecimento, levaram o cônsul Quinto Petílio ‘a ganhar’ a morte. Um exemplo, ligando prodígio e presságio, é o dado nos infrutíferos sacrifícios levados adiante por Cneu Cornélio e Quinto Petílio, no momento da investidura do consulado. Petílio, ao imolar um boi em homenagem a Júpiter, não encontrou a ponta do fígado, sendo mandado novamente pelo Senado sacrificar gado até obter a satisfação (XLI, 14). Depois, Cneu Cornélio entrou no Senado

(…) com o semblante desfeito e informou aos senadores que o fígado do boi scesnaris que imolara se liqüefizera (…) enquanto o resto das vísceras permanecia intacto, o fígado fora inteiramente devorado por indiscritível podridão. Não bastasse o fato de os Senadores se assustarem com o prodígio, o outro cônsul aumentou-lhes ainda mais a inquietação: declarou que não conseguira obter presságio favorável depois de sacrificar três bois, todos sem ponta de fígado (XLI, 15).

Aqui o prodígio, caracterizado na dissolução e inexistência do fígado, indica maus presságios. O Senado, ciente disso, mandou seguir com quantos sacrifícios fossem necessários até a obtenção dos resultados favoráveis; alcançados de todos os deuses, só da Salvação [Salus], ao que se diz, Petílio, não os pôde obter (XLI, 15). Como visto anteriormente, o cônsul Petílio morreu em batalha, não tendo observado corretamente os auspícios; entretanto, mesmo sem líder, a vitória foi romana.

Seu colega de magistratura, Cneu Cornélio, morrera antes, durante um impasse, pela não observância dos procedimentos religiosos, diante às datas das Férias Latinas – de caráter fortemente litúrgico. As superstições, alimentadas pelo impasse, segundo Lívio, foram aumentadas por este falecimento e pelos prodígios que se seguiram. Para substituí-lo, Quinto Petílio precisou consultar os deuses, através da permissão dos auspícios, no intuito de convocar novos comícios. O Senado por sua vez, fez realizar as medidas indicadas pelos pontífices para se voltar a normalidade (XLI, 16).

Nestes dois casos dos cônsules, terminando em falecimentos, todo o mau presságio se concretiza em termos individuais. É o cônsul Quinto Petílio morto em batalha, quem sofre, segundo se diz – destacaria Tito Lívio –, a não execução devida dos auspícios e o omen desfavorável. O povo romano representado no exército foi vitorioso, alcançou seu objetivo, mesmo só tendo um dos cônsules, Cláudio Valério, obtido nos auspícios de guerra presságios favoráveis.

Não ocorre neste episódio, como no caso da peste (XLI, 21), uma possível interrelação entre os sinais divinos, no caso, os prodígios, e Roma como um todo orgânico. O caso de Petílio assemelha-se a história do censor Quinto Fúlvio.

Tito Lívio nos conta no livro XLII, 3, no ano de 173 a.C., que o templo de Juno Lacínia havia sido conspurcado, pois o censor, intentando usar o belo teto de mármore em um templo por ele erguido na Espanha, destelhara o edifício. Este ato sacrílego foi repudiado imediatamente pelo Senado, acusando e injuriando o censor, cuja função, segundo os Senadores, incluía a manutenção do costume e dos prédios públicos e religiosos. Findo o episódio, as telhas devolvidas, porém não colocadas apropriadamente, o censor continua suas funções normalmente, mesmo tendo implicado

(…) o povo romano numa ação sacrílega, a de levantar templos com derrubados, como se os deuses imortais não fossem os mesmos em toda a parte (11) e devessem ser paramentados e honrados com os despojos uns dos outros. (XLII,3).

No ano seguinte, porém, Quinto Fulvio morre, tendo deixado a magistratura censorial e agora como pontífice, suicidando-se na forca. Tito Lívio aponta como motivo a dor e a inquietude ao saber dos filhos que morreram no exército da Ilíria. Coloca ainda a história corrente

(…) que, finda a censura, perdera a razão, murmurando-se que aquilo era a conseqüência da cólera de Juno Lacínia, cujo templo ele profanara e que por isso lhe perdera o espírito (XLII, 29).

A vingança divina por parte de Juno, nesta versão ‘supersticiosa’ para o suicídio de Quinto Fúlvio, não recaiu sobre o povo romano – nem dentro das concepções da época, narradas e recriadas por Tito Lívio. Foi sobre o censor, como indivíduo, que recaiu a pena pelo sacrilégio do destelhamento, mesmo o Senado tendo indicado a implicância disto sobre o populum Romanum (XLII, 3).

Tal qual no caso do Censor Cneu Cornélio, as implicações religiosas, dentro de Lívio, caíram sobre o homem, não sobre o cidadão ou magistrado nem sobre Roma e seu povo. Longe de formular um hipótese, esses dois casos comparados indicam uma possível problematização, dentro do texto, entre as esferas do privado e do público (12), no âmbito da religião. Em ambos episódios, como em outros, há uma divisão tênue e indutiva, posta no corria que, ao que se diz, pois se ouviu, entre o acontecimento político e o fato místico, religioso. Tito Lívio explica-se assim:

(…) Não ignoro que, em virtude da mesma indiferença que nos faz duvidar, hoje em dia, dos sinais enviados pelos deuses, não mais se anunciam prodígios oficialmente, nem são eles mencionados já nos anais. Quanto a mim – ao escrever a história dos tempos antigos, fiz-me, não sei como, uma alma antiga –, um certo escrúpulo impede que considere indignos de relato certos acontecimentos que homens cheios de sabedoria daquelas épocas não hesitaram em transformar em objeto de consultas oficiais (XLIII, 13).

Nesta justificativa, Lívio aponta, de modo ou outro, uma crítica a sua contemporaniedade, defendendo a sabedoria dos tempos ulteriores – a tradição, o mos maiorum – e, transformando-se em um deles ao relatar-nos suas histórias, eleva-se para mostrar o passado como exemplo para o futuro, dentro de uma concepção universalista e total do império romano. Neste transporte do narrador pelo tempo, estabelece-se uma contraposição entre Tito Lívio, num momento de mudança e restruturação política, e Políbio, no auge da estrutura política buscada por Lívio. Sob o aspecto da religião, estabelecemos nesse diálogo pistas para, através dos autores, uma possível periodização sobre o poder social da religião, que necessariamente deve ser completada e verificada em uma pesquisa mais ampla das fontes.

Neste sentido, o texto de John Scheid, “O sacerdote”, ilumina amplamente a discussão (SCHEID, 1991). O autor descreve a liturgia envolvida nos auspícios, demonstrando que todo o complexo ritualístico envolvido, onde os magistrados eram normalmente os líderes, tinha por trás uma intenção pragmática de reafirmar na figura do sacerdote os desejos do povo romano, sem qualquer intromissão individual. Mais do que isso, o forte formalismo dos auspícios levava não a uma consulta no sentido de uma permissão por parte de Júpiter ou dos outros deuses, mas sim no viés de uma confirmação, dada a priori como certa desde o pacto ancestral da fundação romana. Segundo Scheid, é na perfeição ritualística que a divindade está interessada, e só quando esta não é observada corretamente há o descontentamento, como no caso de Cneu Cornélio. Os reais humores dos deuses são dados através de “fenómenos espetaculares e ameaçadores” (SCHEID, 1991: 66), os prodígios.

Indo para além do autor e aquém de uma constatação, podemos rascunhar uma primeva classificação no qual o não cumprimento das conformidades ritualísticas nos auspícios e o desrespeito ao sagrado gerariam, nos episódios analisados, a desgraça individual, privada - Quinto Fulvio sofre somente depois de deixar a magistratura, com a morte de seus filhos
(XLII, 29) - , enquanto, como no caso da peste (XLI, 21), os prodígios representariam complicações coletivas, públicas - isto, talvez pelo fato de, ao desrespeitar o sagrado, o magistrado, como representante eleito pelo povo e/ou empossado pelo Senado (os constituintes da Res publica), perca essa esfera, ou ainda, ao sair desses cargos representativos, e responda aos deuses no âmbito do privado.

Voltando ao aspecto da autoridade, Scheid mostra-nos que ao empossar um cargo sacerdotal – e os magistrados o faziam – se revestia de um poder, não só religioso, mas representativo de toda Roma. Esta prática, amplamente demonstrada em Lívio, com os cônsules executando os auspícios e o Senado sendo palco das decisões e consultas nos momentos de dúvida e prodígios, nos remete ao texto de Finley, na discussão inicial. Quais os espaços de poder e autoridade, política e social, da religião no mundo romano da República?

Ao retomarmos a História de Roma, de Lívio, perceberemos que todos os problemas tangentes e tangíveis às manifestações divinas, demonstrados nos prodígios, auspícios e presságios, são resolvidos de forma pontual, não-oracular nem revelatória, na acepção cristã, e, senão obtido o resultado desejável, são tentadas até o êxito. Como coloca Scheid (1991: 67), há em Roma sempre uma solução pragmática e formal para o obter o sucesso. Em Tito Lívio, esta solução vem do poder dos magistrados, do Senado, que consulta os colégios sacerdotais. A religião entra então como mais um afirmador do destino manifesto de Roma, só que através da elite, dos boni, das esferas do poder instituído, eternos mantenedores do mos maiorum, não importando seu conteúdo, mas sim seu conceito. Mesmo Lívio não demonstrando crer, e contando que não mais se dava a importância, no final do século I a.C., aos sinais divinos, eles aparecem como, dentro de uma visão do passado, essenciais para a res publica. Uma res publica vista a partir de cima, hierarquicamente interessada no desenrolar político, onde as personagens principais são os magistrados e o Senado, ou seja, a aristocracia romana.

Infelizmente, mesmo a partir dessa hipótese indutiva, não se torna possível resolver a questão proposta no início. Não somos capazes, com o material compulsado, estabelecer um parâmetro crítico que argumentaria, corroborando ou não, com a tese de Finley. A religião assume aqui um papel na constituição da autoridade, e portanto da diferença entre os cidadãos romanos, na esfera das idéias e crenças, mas se restringe a isso, não alcançando os níveis do fazer política (“policy”), como já advogado por Finley. Fica necessário em uma segunda etapa estabelecer o quão profundos são esses níveis de poder e autoridade constituídos pela religião, e quanto contribuem para entender as diferenças na sociedade romana graduando entre os boni até os improbii, numa busca da compreensão da civitas republicana.



Fontes
LIVIO, Tito. História de Roma (intr., trad. e notas de Paulo Matos Peixoto). São Paulo: Paumape, 1989, 6 vol.

LIVY. Livy (trad. de Evan T. Sage e Alfred C. Schlesinger). Loeb Classical Library 12. Cambridge: Harvard University Press, 1991.

POLÍBIO. História. Brasília: Ed. Univ. de Brasília, 1985.

Res Gestae divi avgvsti (trad. Giovanni D. Leoni). São Paulo: Politipo, 1957.

Bibliografia

FINLEY, M. I.. Politcs in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

LAVEDAN, Pierre. Mytologie et Antiquités Grecques et Romaines. Paris: Librarie Hachette, 1931.

SCHEID, John. “O sacerdote”. In: GIARDINA, Andrea (dir.). O homem romano. Lisboa: Ed. Presença, 1991, p. 49-72.

VEYNE, Paul. “O império romano”. In: ARIÉS, Philippe & DUBY, Georges. História da vida privada I - Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

Notas

1) Este texto originou-se de um trabalho de curso da profa. Maria Luiza Corassin, a quem agradecemos pelo apoio, leitura e comentários.

(2) O autor inglês considera que, para atingir a compreensão da estabilidade política, das relações de poder e da forte hierarquia social das cidades-Estado, é necessário "a history of the material realtions both between the state and its citizens and among the citizens and class of citizens, a hitory of war, ‘national’ pride and patriotism, and a history of ideology in all its sense, including both consciously and unconsciously held ideas, beliefs, culural norms, values." (FINLEY, 1983: 27)

(3) Usamos aqui duas edições do Ab urbe condita libri: a tradução brasileira para o português, de Paulo Matos Peixoto (1989), e a da coleção Loeb Classical Library, edição bilíngüe latim-inglês (1991). Tendo em vista o maior uso da edição em português, os trechos citados serão da edição brasileira, nos remetendo, quando necessário, à edição inglesa. Além disso, citeremos Tito Lívio somente pela numeração do livro e capítulo, sem citar as edições.

4) Paul Veyne discorre sobre a pluralidade semântica que as palavras deus(es) e divino assumem em Roma, tanto na República como no Império, onde podem significar tanto Júpiter, como o conjunto de deuses, visto como categoria única, ou ainda enquanto referente a carecterísticas sobre-humanas. (VEYNE, 1990 : 204-4, 206-8)

5) Apesar de não ser colocado no dicionário compulsado, a interpretação e resolução - por exemplo, nas formas de sacrifícios e imolações - dos prodígios podiam, como pelo menos indica Tito Livio (XLI, 9, 14, 15), muitas vezes ser resolvidas no âmbito senatorial. E, como coloca John Scheid, os sacerdotes, em estrito censo, eram mormente coadjuvantes do momento religioso, onde os senadores eram os "mestres" no palco litúrgico. Neste sentido, há uma passagem em Tito Livio na qual o Senado, como instâncio superior da Res publica, aprova e ordena o encaminhamento liturgíco dos pontíficies, portanto sem autonomia no caso: Ordenaram os senadores que os prodígiod fossem expiados segundo prescrição dos pontíficies (XLI, 16); (LAVEDAN, 1931: 802; SCHEID, 1991: 54-5, 63, 65-7).

6) vide nota anterior

(7) Uma possível análise poderia ser agrupar os portentos anunciado, por aproximação, em três blocos, usando um critério temático de aparição: os animais (os bovinos, aparição de serpentes), humanos (relativos ao nascimento) e os divinos (celestes e relacionados à territórios consagrados). Sem tentar entrar no campo da simbologia, os classificaríamos talvez de forma hierarquizada, através da escala divino>homem>animal, proposta por Veyne, cotejando os eventos com o tipo de prodígio (VEYNE, 1990: 203).

8) Na edição brasileira, traduziu-se avem sanqualem como um xofrango, sentido que se encontra em alguns dicionários. A edição Loeb, por sua vez, mantém o termo em latim ("a bird, called sanqualis"), indicando em nota as versões de Festo, que defende a definição de ossifragus, e portanto, corroborando com a tradução por xofrango, e de Plínio, posicionando-se, sem grande certeza, a favor da relação da palavra com o nome do deus Sangus.

(9) Na bibliografia consultada e na leitura de Tito Lívio, não há indicações de que existisse uma temporalidade específica para os prodígios, não definindo se ocorriam quando em momento de desagrado anterior dos deuses, como um presságio, durante ou num instante logo posterior. Isto talvez não tenha sido traçado com êxito ao compulsarmos a História de Roma pela própria falta de correlação estabelecida por Livio, na maior parte das vezes, entre os presságios/prodígios e os eventos subseqüentes, e, quando o faz, usa a voz dos antigos, indicando que àquele momento viam os romanos o evento como um presságio.

(10) Pullarius era o cuidador das galinhas sagradas, usadas comumente nos auspícios de guerra, para identicar a favorabilidade dos presságios.

(11) Veyne indica que os romanos assumiam uma identificação lingüística, baseada nesse pressuposto, como se os deuses imortais não fossem os mesmos em toda a parte, com os deuses dos outros povos, aliados ou não, por exemplo o caso de Júpiter que se nomeia em Zeus, em grego (VEYNE, 1990: p. 202-3).

(12) No sentido dado por Veyne, (1990: 164).
Revista Mirabilia

Nenhum comentário: