segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Polícia da Corte - Comentário



Ana Carolina Eiras Coelho Soares
Mestre em História - UERJ
Elaine Cristina Ferreira Duarte
Mestre em História - UERJ

O início do século XIX, na história luso-brasileira, foi marcado por dois grandes acontecimentos: a invasão de Portugal pelos exércitos franceses e a transferência da família real e da Corte portuguesa para o Brasil. Conseqüência direta da invasão, a chegada da Corte lusitana, em 1808, representou para o Brasil um momento de efervescência institucional e cultural. Diante da nova condição de sede do governo metropolitano, a colônia americana passou por uma importante reestruturação político-administrativa, dando início à construção do aparato burocrático necessário. Entre as mudanças efetuadas figuram a abertura dos portos às “nações amigas” (1808), a revogação dos decretos que proibiam as manufaturas no Brasil (1808) e a criação de uma série de instituições, como as Escolas de Medicina da Bahia (1808) e do Rio de Janeiro (1809), as Academias de Marinha (1808) e Militar (1810) e a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil (1808).
Até então, no Brasil, as funções policiais estavam entre os encargos dos vice-reis e dos ouvidores gerais, não se dispondo de uma organização policial efetiva. Estrutura básica da atividade policial brasileira, o cargo de intendente geral da Polícia foi criado por d. João através do Alvará de 10 de maio de 1808, seguindo os moldes da Polícia de Lisboa, o que expressava a preocupação do monarca com uma possível disseminação das idéias liberais francesas e o temor de um “ataque” de “espiões e agitadores”.
O cargo de intendente geral de Polícia da Corte foi confiado ao desembargador e ouvidor da Corte, Paulo Fernandes Viana, que o exerceu por cerca de doze anos. Possuindo jurisdição ampla e ilimitada, o intendente geral de Polícia atuava como uma espécie de ministro da Segurança Pública, controlando todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive os ouvidores gerais, os alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estrada e assaltos. Com a reforma do Código do Processo Criminal (1832), o cargo de intendente foi extinto e criado o de chefe de Polícia.
Em 1809, surgiu a Guarda Real de Polícia da Corte, uma força policial permanente, recrutada entre os soldados da cavalaria e da infantaria, para auxiliar o intendente geral de polícia e, ao mesmo tempo, poupar o exército das ações policiais que sobre ele recaíam. Seu primeiro comandante foi o coronel José Maria Rabelo de Andrade Vasconcelos e Sousa, auxiliado pelo major Miguel Vidigal, que realizou um amplo trabalho de repressão à marginalidade da época. Em 1831, a Guarda Real de Polícia foi abolida, sendo criado em seu lugar o Corpo de Guardas Municipais.
A instituição policial no Brasil tornou-se peça fundamental para o controle e ordenação da sociedade ao longo de todo o século. Suas atribuições são reveladoras de um conceito de “polícia” bem diferente do atual. Segundo Morais e Silva, sobre a polícia recaíam o governo e a administração interna, incluindo-se nesta última a “limpeza, asseio, fartura de víveres e vestiário; e a segurança dos cidadãos”.
Alguns exemplos importantes podem ser encontrados na documentação disponível no Arquivo Nacional. Trata-se do fundo Polícia da Corte, que reúne documentos variados como balanços, correspondências diversas, registros policiais, despesas administrativas, devassas da polícia sobre vários delitos e legitimação de estrangeiros. Sobre os serviços mais simples como o abastecimento da cidade e a realização de obras públicas há, por exemplo, o livro de receitas e despesas da Intendência Geral da Polícia do reino do Brasil entre os anos de 1820 e 1821, em que figuravam as despesas com o conserto de pontes, plantação de roseiras, limpeza da cidade, reparo em estradas, entre outros (códice 352, v. 6). A repressão aos roubos e/ou furtos pode ser vista em um ofício do intendente da Polícia ao juiz do Crime de São José, solicitando a investigação do relojoeiro francês João Batista Pletie, que acusado de roubar um relógio posto em conserto, alegava tê-lo comprado no juízo de Ausentes da Bahia (códice 323, v. 2, f. 6v. e 7). Desacatos eram considerados crimes graves, tanto os cometidos contra as autoridades públicas quanto os que ofendessem a “grande autoridade dos pais de famílias”, ou seja, que ferissem a ordem moral e social. É o que consta do ofício do intendente da Polícia ao conde de Aguiar, favorável à deportação para a Índia de um filho desobediente ao pai (códice 323, v. 2, f. 22 a 23) e que com a sua atitude provava ser também um mau vassalo. Vários documentos relatam ferimentos graves imputados a cidadãos, mas há também relatos de abusos cometidos pelos próprios policiais, como no ofício de Paulo Fernandes Viana ao comandante da Guarda Real José Maria de Andrade Vasconcelos e Souza, no qual soldados, ao realizarem uma prisão, teriam espancado João Justino e o levado sem roupas ao quartel do campo (códice 323, v. 2, f. 9 a 10).
Outras formas de transgressões eram relatadas: homicídios, como o caso da morte de um negro cujo corpo já decrépito fora encontrado nos fundos de uma chácara do Engenho Velho (códice 329, v. 3); vadiagem, como o curioso registro de prisão contra o espanhol José Consuelo, que achava-se na rua “fazendo-se suspeitoso” por estar vestido de mulher (códice 401). Eram igualmente da alçada da Polícia ações envolvendo escravos (fugas, revoltas, alforrias e a prática da capoeira), a mendicância, a embriaguez, os jogos e os movimentos políticos. Ou seja, praticamente tudo que envolvesse a ordenação e o funcionamento da sociedade carioca oitocentista, era de responsabilidade da Polícia da Corte.

Arquivo Nacional

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