A persistência da teoria da degeneração indígena e do colonialismo nos fundamentos da arqueologia brasileira
Francisco Silva NoelliI; Lúcio Menezes FerreiraII
ILaboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História – Universidade Estadual de Maringá. Rua Culto à Ciência, 423/41. 13020-060 Campinas – SP – Brasil. ffnoelli@wnet.com.br
IINúcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. Rua Culto à Ciência, 423/41. 13020-060 Campinas – SP – Brasil. luciomenezes@uol.com.br
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Georges Canguilhem (1979, 1989) argumenta que a história de conceitos científicos não apresenta uma racionalidade progressiva e que a história das ciências não exibe, necessariamente, uma cadeia dedutiva de aperfeiçoamentos. Paradoxalmente, conceitos científicos podem repetir-se, ainda que modificados, em diferentes contextos históricos. Adquirindo outras roupagens metodológicas, são reutilizados, amolgando-se a lugares diversos de constituição e de validade, a regras distintas de aplicação e a meios teóricos múltiplos, incluindo o poder atrelado às ciências.
Essas proposições esclarecem a persistência de alguns fundamentos da arqueologia brasileira e do pensamento americanista: o cotejo da bibliografia revela que teorias e conceitos do século XIX, já criticados, ainda circulam na produção acadêmica contemporânea. Isso é evidente se considerarmos uma parte da influente obra de Betty Meggers. Se analisados em suas representações arqueológicas, seus textos revelam uma surpreendente coincidência: repetem, em boa medida, aspectos centrais da arqueologia do Brasil Império, sobretudo as de Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). Como já assinalou Bruce G. Trigger (1990, p.294), a equação arqueológica de Meggers, segundo a qual a cultura é determinada pelas relações entre ambiente e tecnologia, assemelha-se às abordagens de muitos antropólogos do século XIX.
Obviamente, entre as arqueologias do Brasil Império e a da atualidade há um largo interregno, com suas especificidades e seus suportes teóricos e institucionais. Mais de cem anos de pesquisas arqueológicas separam Martius e Varnhagen de Meggers, período que precisa ser mais estudado. Contudo, hoje, principalmente as idéias de Meggers são discutidas no intuito de avaliar suas contribuições, particularmente para a arqueologia amazônica. Passa-se em revista a obra de Meggers e a história pré-colonial da Amazônia e debatem-se os modelos etnográficos para a arqueologia amazônica e as implicações das pesquisas arqueológicas para a autodeterminação das atuais sociedades indígenas.
Esse relevante debate não se abriga, para usarmos a metáfora de George Orwell (2005), dentro da baleia. Ao propor visões alternativas para a pesquisa arqueológica, os participantes da discussão posicionam-se publicamente num contexto mundial em que as sociedades indígenas firmam sua ligação histórica com o passado para legitimar sua soberania política no presente. Parece-nos, porém, que não se detêm especificamente sobre a existência de um legado duradouro da história da arqueologia brasileira: a teoria da degeneração indígena e a permanência de representações arqueológicas colonialistas.
Nosso objetivo, neste artigo, é analisar esse legado. Para tanto, é preciso clarificar a noção de representação arqueológica colonialista. Quando se pensa em representação arqueológica, não há, de fato, como se abrigar dentro da baleia. Não há um ponto arquimediano em que as representações sobre o passado sejam purgadas das pressões políticas e posições institucionais contemporâneas. As representações arqueológicas nunca estão fora da política (Veigt, 1989). Quando falamos, portanto, de representações arqueológicas colonialistas, não conferimos ao último termo nenhuma volatilidade ou fluidez. Por 'colonialismo' entendemos não somente o governo e a exploração direta dos territórios nativos e de seus habitantes (Bohemer, 1995), não apenas a conquista militar, política e econômica, mas também a dimensão propriamente cultural ou científica do colonialismo, aquela que justificou as missões civilizadoras, isto é, as narrativas ou representações, arqueológicas ou não, que colocaram as sociedades indígenas em posição de inferioridade cultural, classificando-as como bárbaras, primitivas e, como no caso aqui analisado, degeneradas.
Como veremos a seguir, ao classificarem os povos indígenas de degenerados, Martius e Varnhagen legitimaram um colonialismo interno. Betty Meggers, por sua vez, nuançou o conceito de degeneração, deu-lhe outros significados, inserindo-o no quadro do determinismo ecológico. Ao fazê-lo, partiu de uma visão geral da pré-história americana. Longe de ser somente uma narrativa inócua sobre o passado, a pré-história da América, em Meggers, serviu-lhe para explicar as presentes desigualdades regionais do continente.
Colonialismo interno
Stuart Hall (1996) argumenta que o colonialismo, em meio aos processos de transculturação entre o global e o local promovidos pelas políticas imperialistas, tornou-se uma realidade difusa, vigente mesmo nos Estados pós-coloniais. Tal vigência tem sido conceituada como 'colonialismo interno' (ver, por exemplo, Brydon, 2000, e Quayson, 2000). Ele ocorre quando, dentro de uma fronteira nacional, elites locais entronizadas no Estado e em seus aparelhos imaginam e desencadeiam projetos de colonização e conquista dos nativos e da geografia; ocorre quando essas elites, valendo-se dos aparatos da ciência, asseguram uma hierarquia interna baseada no governo racial (Goldberg, 1999).
Para instaurá-lo, foram peças-chave desse mecanismo os discursos das humanidades. Escreveram-se 'histórias da nação' organizadas como prosas do poder (Bhabha, 1990, p.5) que conjuraram, para além de suas margens e linhas oficiais, todos os acontecimentos e etnias indesejados (Chatterje, 1993). Elaboraram-se narrativas que justificaram a manutenção dos binarismos raciais plasmados pelas sociedades coloniais, reanimando-os no domínio dos subalternos pelas elites locais (Prakash, 1995). Nesse viés de governo racial, os Estados pós-coloniais latino-americanos instituíram, também eles, um colonialismo interno (Young, 2001; Loomba, 2000). No Brasil monárquico (1822-1889), por exemplo, vê-se claramente as ciências confluindo com projetos coloniais.
Em particular a arqueologia – cuja relação com o imperialismo e o colonialismo já foi, alhures, amplamente analisada (para um texto mais recente, ver Díaz-Andreu, 2003) – institucionalizada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e no Museu Nacional teve uma tríplice função científica e política. Em primeiro lugar, observar os vestígios arqueológicos como hipotéticos depositários de signos de civilização, observá-los como índices para compor-se uma identidade nacional coroada por culturas indígenas elaboradas. Em segundo lugar, coube-lhe observar os artefatos como instrumentos passíveis de desenhar retrospectivamente, com sua materialidade tangível, as fronteiras nacionais. Por fim, coube à arqueologia, em compasso com a antropologia, examinar não só o índio morto mas também o índio vivo, escrutá-lo em seus graus de civilização para estipular uma política colonial, para selecioná-lo e arregimentá-lo como mão-de-obra sucedânea aos braços escravos. Quanto mais civilizado, melhor operário seria um indígena (Ferreira, 2003, 2005).
A arqueologia esteou-se numa geoestratégia. Reservou-se-lhe não apenas o papel de dar conteúdo manifesto à idéia abstrata de Brasil, margear suas fronteiras e computar a ancianidade de sua ocupação, como também o de interiorizar a civilização e civilizar as populações indígenas. Haver-se com os indígenas, tomá-los como objeto de discurso implicava formular projetos de colonização do território nacional. É no âmbito dessa tríplice função que devem ser compreendidas as representações arqueológicas de Martius e Varnhagen.
O legado de Martius e Varnhagen
Karl Ph. von Martius, em seus ensaios (1907, 1905, 1844) e em seu romance (1992), concluiu que as populações indígenas eram degeneradas. O índio, para ele, era o testemunho da imobilidade e estagnação de uma raça, estampava os sinais iniludíveis de uma involução. Seu corpo seria um fóssil vivo, uma superfície calcinada, macerada pela degeneração. O naturalista amparava-se na idéia de recapitulação: os adultos das raças inferiores, do ponto de vista intelectual, seriam como as crianças das raças superiores. O indígena reuniria os dois pólos opostos da vida intelectual: moralmente ainda na infância, na minoridade, a civilização não o altera, não o emula, sua inaptidão para o progresso assemelhando-o a um velho estacionário. Tal condição do indígena, contudo, não era natural (1907, p.20). Ele não galgou a evolução da humanidade, não se acha, como queria Rousseau, no estado primitivo (1907, p.21, 1844, p.393); na realidade, pertenceu a uma civilização que habitou todo o continente americano, mas que, no entanto, foi fustigada pela degeneração.
Para Martius, haveria três evidências dessa antiga civilização americana. Em primeiro lugar, as edificações colossais que se espraiam pela América Central e pelo México; herdada, contudo, por povos cujas teocracias, muito antes da conquista espanhola, não podia deter o processo de franca degeneração que as fragosidades das florestas tropicais lhe impunham (Martius, 1907, p.18). Em segundo lugar, a América apresentaria um conjunto de animais e plantas úteis, domesticados por um povo antes civilizado, guardião de uma força intelectual que degenerou. A terceira evidência seriam os tupis. Originários dos Andes, eles descendiam dos incas. Dos Andes, chegaram ao Sul do continente americano e alcançaram, depois, o Norte. Das regiões do rio da Prata à Amazônia, os tupis eram civilizados, povos que se imbuíram da perícia cultural incaica e realizaram uma das maiores diásporas do mundo, porquanto seus vestígios lingüísticos se acham desde o Caribe até o Paraguai; contudo, em virtude da miscigenação com raças bárbaras e da exposição tropical, degeneraram (p.17-18, 80-82; para uma história das idéias dessa hipótese de migração, cf. Noelli, 1996, 1998).
O determinismo ambiental e a miscigenação explicam, pois, a degeneração indígena. Mas para Martius a dissolução física e intelectual do indígena repousa, ainda, em outros fatores: primo, nas regras de direito que promulgavam uma hobbesiana guerra de todos contra todos – as relações mantidas entre os grupos que se imaginavam aparentados por uma origem comum prefiguravam táticas de aliança e defensivas, ditavam as normas para a divisão dos despojos e a obtenção de escravos, presidiam o caráter ardiloso e antropófago dos indígenas (Martius, 1907, p.20-82). O segundo fator seria o homossexualismo, o peccatum nefandum – a presença de uma casta de andróginos entre os grupos indígenas condensou uma raça marcada pela "maldição da esterelidade" (p.30-31).
Para Martius as populações indígenas, afetadas por úteros infecundos, seriam reduzidas e irregularmente distribuídas. Não lhes atribuiu um número, mas afirmou que elas não passariam de "ruínas de povos" (Martius, 1844, p.393). Haveria um "defeito geral na organização desta raça vermelha" – ela guardaria o germe de seu desaparecimento prematuro (1907, p.81-82,1905). Assim, seria vão qualquer esforço para torná-la sujeito de direito, para amoldá-la à vida orgânica da monarquia constitucional. O índio, como súdito potencial do império, seria, para Martius, sujeito de evicção de direito, irrecuperável para os propósitos civilizatórios do governo monárquico. Ele interessaria, contudo, como documento para a escrita da história primitiva do Brasil.
Para deslindar a origem dos indígenas, Martius (1844) indicou algumas diretrizes metodológicas. O naturalista articulava, numa mesma grade disciplinar, a filologia, a etnografia e a arqueologia. Em procedimento corrente depois do Sturm und Drang, tanto na Europa como nos Estados Unidos, a abordagem filológica em etnografia e arqueologia permitia chegar à etnogênese de uma população (Horsman, 1981, p.32-33; Champion, 1990, p.89; Bandinelli, 1984, p.157; Bravo, 1997). Para Martius o estudo das línguas indígenas equivalia à etnografia: a compilação do conjunto de mitos indígenas levaria à dedução dos cursos imigratórios das populações nativas. Os mitos, como objetos de estudo, autorizariam a interpretação arqueológica, isto é, nessa acepção, as análises sobre a origem dos indígenas. Além disso, a arqueologia se faria em meio às viagens científicas. Ao lado do estudo filológico-etnográfico dos mitos, as viagens científicas descortinariam as rotas de imigração indígena, os vestígios de civilização, os monumentos delidos e esparsos entre as adjacências dos rios Tocantins, Xingu e Araguaia (Martius, 1844, p.392-395).
Além de traçar as linhas do trabalho a ser realizado pelo historiador brasileiro, que escreveria um epos a debandar os perigos do republicanismo e do lema divide et impera (Martius, 1844, p.409), o naturalista esmiuçou a especificidade da formação racial do Brasil. Da mescla das três raças que compunham o Brasil (brancos, negros e índios), coube a cada uma, com sua índole inata, um movimento histórico particular, um motor que, uma vez acionado, propeliu a nação. O historiador formularia, num mesmo gesto de escrita, uma identidade nacional e projetos de colonização tipicamente eugênicos; apontaria como se consignariam as condições para a evolução das três raças do Brasil, para vivificá-las numa nação nova e robusta. Os indígenas, como grupos isolados, não poderiam ser politicamente aproveitados pelo Império, mas concorreriam para uma miscigenação saudável, que, nutrida inicialmente por entre as 'classes baixas', vigoraria, nos séculos vindouros, nas 'classes altas' (p.389-391). A degeneração indígena anular-se-ia, diluindo-se no futuro corpo vigoroso da nação.
Idéias colonialistas também se firmam na obra do historiador Francisco Adolfo Varnhagen, que não se eximia de utilizar taticamente o seu saber historiográfico. Num momento em que a interligação física e administrativa do território nacional era um imperativo para o projeto centralizador da monarquia, Varnhagen foi convocado por Paulino José Soares de Souza (1807-1866), ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, para intervir em questões geopolíticas. Escreveu uma "Memória" (Varnhagen, 15 jul. 1851), analisando documentos oficiais para encaminhar as negociações das raias do Império com as Guianas, o Equador, o Peru, a Bolívia e o Paraguai.
No tocante às populações indígenas, Varnhagen também laborou estratagemas. Como membro do IHGB, tratava-se para ele de pensar as possibilidades de integração concreta dos grupos indígenas – como parte de uma política mais ampla de construção nacional – a um território definido geopoliticamente como território da nação. Assim, em 1841, propõe a efetivação da Seção de Etnografia e Arqueologia no IHGB, a ser acrescida àquelas já existentes de História e Geografia, cujos . A Seção teria como propósitos investigar línguas, usos e costumes das populações indígenas; fazer-lhes a demografia e a cartografia para esboçar uma "carta etnográfica" e colonizá-las (Varnhagen, 1841, p.63). Seus objetivos eram mapear o território brasileiro em seus ângulos etnográficos e recolher materiais para organizar um saber sobre a história primitiva do Brasil. Para escrevê-la, Varnhagen sempre recorreu, nos anos seguintes, à arqueologia. Num texto de 1849, ele noticiou a existência de "sepulturas indígenas", das "casas de pedras" do sul do Brasil e dos sambaquis do Maranhão e de Santos. E, afinando-se pelo diapasão de Martius e de tantos outros intelectuais dessa quadra histórica, classificou os indígenas como raça decadente. Em virtude da ação deletéria dos trópicos e da miscigenação desenfreada, os indígenas estariam em irreversível degeneração (Varnhagen, 1849, p.370).
Em termos metodológicos, os textos de 1841 e 1849 são reiterados na sua obra magna, a História Geral do Brasil, de 1854 (Varnhagen, 1975). O estudo das raças que estão na infância intelectual, dos povos rudes que não possuem escrita e história, só a etnografia pode fazê-lo: "De tais povos na infância não há história: há só etnografia. A infância da humanidade na ordem moral, como a do indivíduo na ordem física, é sempre acompanhada de pequenez e miséria" (p.30). Varnhagen entende por etnografia não só o trabalho de campo – e em viagens pelo Brasil ele coligiu os costumes e vocabulários indígenas –, mas também a leitura de crônicas coloniais e relatos dos naturalistas, por meio dos quais apreender-se-iam os usos e os mitos indígenas. A abordagem filológica, por sua vez, à maneira da filogenética do indo-europeu, permitiria a classificação racial e lingüística dos nativos, revelaria dedutivamente antigas e nebulosas imigrações.
Valendo-se destes procedimentos, concluiu Varnhagen (1975, p.24): "Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoaram o terreno que hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanações de uma só raça, ou grande nação; isto é, procediam de uma origem comum, e falavam dialetos da mesma língua". As diferentes 'nações', portanto, falavam variações de uma mesma língua, o tupi. Os grupos indígenas reduziam-se a uma única célula homogênea. O exame acurado dos mitos e da língua tupis mostra, ademais, que eles eram uma raça invasora, "vindiços alienígenas" (p.52). Tiveram sua origem no Caribe e, a partir do Norte, notadamente das adjacências do Amazonas, vieram, em levas sucessivas, imigrando até o sul do continente americano, ocupando os sertões e a costa litorânea do Brasil. Varnhagen, portanto, aproxima-se e afasta-se da hipótese de povoamento do Brasil estabelecida por Martius: os tupis vieram, sim, do Norte, mas do Caribe e do Amazonas e não propriamente dos Andes, e chegaram ao sul do Brasil sem bordejar, contudo, as cercanias do rio da Prata e o Paraguai.
Os tupis eram beligerantes. Com suas contínuas guerras para ocuparem o território que "hoje é do Brasil", diz-nos Varnhagen, eles fragmentaram-se. Os decadentes tupis, pois, quando da chegada dos primeiros conquistadores portugueses, foram estimados em um milhão de almas nômades com agricultura incipiente ou inexistente. Varnhagen não apontou as fontes que lhe lastraram esse cálculo demográfico, porém equacionou, com esse número, uma proposição de economia política apoiando-se num axioma estatístico de Malthus (1967): em qualquer país, a população só se desenvolve e avoluma quando os seus habitantes abandonam a vida errante e se entregam à agricultura, fixando-se em habitações permanentes. Antes da conquista portuguesa, assim, "o país vinha a estar muito pouco povoado" (Varnhagen, 1975, p.23).
Varnhagen tinha explicações para o despovoamento do território. Em primeiro lugar, porque os tupis guerreavam permanentemente; moviam-se pelo instinto de vingança, viviam hostilizando-se uns aos outros, cobiçosos pelos melhores lugares para pescar e caçar, pelos despojos dos conflitos – escravos para os trabalhos e carne para os festins antropofágicos. Em segundo lugar, os tupis, no seu estado de decadência, desconheciam qualquer visão metafísica de mundo. Nenhuma religião os governava, e dentre a miríade de vícios de que eram possuidores, encontravam-se corrompidos pelo homossexualismo, daí a intensificação do despovoamento. Enfim, sempre segundo Varnhagen, tíbios eram os seus laços sociais, pois a etimologia revela que a palavra 'tupi' não se liga a nenhuma forma de Estado. Viviam errantes, em plena anarquia selvagem. Não possuíam, como os incas, um Estado centralizador, capaz de livrá-los dos interesses ditados pela "conservação vital", com uma aristocracia forte para conduzi-los à civilização e ao crescimento populacional (Varnhagen, 1975, p.26ss).
Entretanto Varnhagen não via razões para desolar-se com esse quadro melancólico. Afinal, conforme se verificava em 'fidedignos' documentos históricos e filológicos, era provável que os tupis, vindos do Norte, especificamente das ilhas do Caribe, proviessem de civilizados povos navegadores do Velho Mundo: fenícios, gregos ou egípcios. Além disso, o visconde de Porto Seguro fazia coro com Martius e outros intelectuais do IHGB – também ele pressupunha que os tupis tiveram um passado glorioso, timbrado por signos de civilização. Para Varnhagen, os tupis eram remanescentes de antigas imigrações transatlânticas, descendentes, em suma, de raças mediterrânicas, nautas e civilizadas. Poderiam, pois, integrar a identidade da nação, desde que o seu passado – encerrado nas matas atlânticas, nos mitos balbuciados por sua linguagem, nas anotações barrocas dos cronistas coloniais e nas minúcias científicas dos naturalistas – apontasse para um percurso histórico-civilizacional. Varnhagen olhava o avesso dos indígenas, o lado reverso, outrora civilizado, daqueles povos que considerava, então, degenerados.
Assim, pautando-se no exemplo dos primeiros colonizadores portugueses, Varnhagen não via outra solução para colonizar os indígenas senão usando a força (Varnhagen, 1975, p.212). Para ele, foi por "mal entendida filantropia", primeiro dos jesuítas, depois decretada pelos reis, que se chamaram os indígenas à civilização unicamente pelos morosos meios da catequese (p.220). Varnhagen não entendia que ainda houvesse cultores de Rousseau ante essas raças degeneradas, pois sem leis e civilização o homem inclina-se à barbárie e à antropofagia (p.52).
O legado da degeneração
Ao falarem de degeneração indígena e ao adotarem explicações difusionistas, Martius e Varnhagen participaram, com efeito, de um amplo debate. Ora, o conceito de degeneração está, desde Buffon, acolchetado à visão da América como um continente jovem, para onde humanos e animais, ao imigrarem da Ásia e da Europa, sucumbiram às asperezas do clima tropical. Ele foi influente a ponto de comparecer obrigatoriamente não só nos debates em história natural e antropologia dos séculos XVIII e XIX (Blanckaert, 1993), mas também na psicologia e na biologia modernas. Foi adotado até meados do século XX por vários autores, e coube a Freud o mérito de solapá-lo (Gould, 1981). Concomitantemente credita-se o aparecimento do difusionismo, na teoria antropológica e arqueológica, ao primeiro terço do século XX. Tanto Friedrich Ratzel quanto Franz Boas teriam fundado seus preceitos científicos fundamentais.
Porém, seu conceito básico, segundo o qual não existem invenções culturais independentes, pois elas se fazem pelos contatos transcontinentais e intercontinentais, pela diáspora dos povos civilizados, pelos mestres peritos a ensinar populações imperitas, já vigia na América do Sul desde o século XVIII. Esse modelo atrelou-se firmemente ao conceito de degeneração. Foi ativado como arma política nas ciências locais. As elites crioulas, na América do Sul, viam na ciência uma forma de ascensão social, de intervenção e engajamento políticos (Pastrana, 1987). Nas palavras de Luis Carlos Arboleda (2000), o erudito conspirador tornou-se, paulatinamente, um sábio republicano. Se as ciências se desenvolveram em concomitância com a expansão imperial européia (Petitjean, 1992), elas geraram nas colônias uma intensa criatividade intelectual; uma dialética entre propagação metropolitana e re-elaboração colonial (MacLeod, 1996; Saldaña, 1986). Foi o que ocorreu, nas ciências naturais, com o conceito de degeneração. Maria Raquel da Fonseca (1996) mostra-nos que, tanto no Brasil como no México, o conceito, que implicava subordinação política e tutela colonial, reverteu-se em caminho de viabilidade para as nações americanas. Contestando os cientistas europeus que forjaram a idéia de degeneração do Novo Mundo, os cientistas locais apontavam, por meio de estudos práticos sobre a natureza, as potencialidades e a fertilidade das terras americanas (p.11).
Isto quanto às ciências naturais. Já com a arqueologia, que lidava com as populações humanas nativas, o problema revestiu-se de outros contornos. O difusionismo atribuiu, quase sempre, uma origem extra-americana para as populações indígenas. Desde Humboldt, postulou-se uma origem asiática para os indígenas americanos. Na América do Sul, essa hipótese era mais ou menos consensual. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, cientistas da América Latina, ocupados com o passado pré-hispânico, corroboraram-na (Sánchez, 2004; Rueda, 2003). Isso explicaria as primeiras teorias sobre o surgimento de civilizações nos Andes e nos planaltos americanos. Na região amazônica, em meio às fragosidades da floresta, os índios teriam degenerado. A região não seria propícia para a formação de Estados centralizados e civilizações. Os poucos grupos que se civilizaram, lograram-no graças aos contatos com as populações andinas ou com aquelas que se desenvolveram no México e na Mesoamérica. Buscava-se assim, na cultura material, correspondências e contigüidades simbólicas e estruturais que provassem a existência de contatos intercontinentais e inter-regionais.
Essas concepções atrelavam-se aos projetos políticos de integração dos indígenas nos Estados sul-americanos. No Brasil monárquico, tais projetos esbarravam no consenso axiomático da degeneração nativa. Não foi à revelia que tanto Martius como Varnhagen fizeram menção a Rousseau; para ambos, assim como para outros intelectuais orgânicos do Império, tratava-se de pensar as condições propícias para compactuar com os indígenas. Como fundar um contrato social com 'ruínas de povos', como colonizar e integrar à sociedade povos degenerados? A discussão prosseguiu, sob outra moldura epistemológica, após 1870, quando, sobretudo no Museu Nacional, os enunciados evolucionistas nortearam as escavações estratigráficas. A degeneração indígena foi materializada em interpretações antropológicas da cultura material e contextualizada geologicamente.
Assim, a ilha de Marajó e a Amazônia, nas pesquisas de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) (1876a, 1876b) e de Domingos Soares Ferreira Pena (1818-1888) (1876,1877), atestaram cerâmicas esmeradas em suas técnicas de confecção e adornos, nos estratos mais antigos dos sítios arqueológicos; em contrapartida, nos solos mais recentes, ocorreram peças rudes. A lógica das escavações revelou, pois, uma 'primitividade ascendente'. O Brasil possuiria, em sua pré-história, ilhas de civilização, culturas dignas de figurar na representação histórico-coletiva da nação, com uma perícia industrial que lembrava a Ferreira Pena e a Barbosa Rodrigues, pela sofisticação de suas inscrições e formas geométricas, a olaria grega. Mas em algum momento de sua história, assim como o inseto de Kafka, os índios metamorfosearam-se naquilo que são no presente: degenerados, incapazes de perpetuar uma tradição civilizada.
Nem todos concluíram pela degeneração indígena. José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), contrapondo-se a Ferreira Pena e a Barbosa Rodrigues, evidenciou, em suas escavações na Amazônia, uma 'primitividade decrescente'. Os indígenas não teriam degenerado – nas camadas arqueológicas dos aterros amazônicos, plásticos artefatos cerâmicos se superpunham à tosca olaria (Magalhães, 1935, p.71-73). Se o índio não é degenerado, pode repudiar-se, como o fez Couto de Magalhães, a solução de Varnhagen, o extermínio indígena, e optar-se pela proposta eugênica promulgada por Martius. Para o general Couto de Magalhães, os indígenas deveriam ser concentrados em colônias militares, no norte do país, onde seriam civilizados e, num segundo momento, miscigenados com imigrantes europeus (Magalhães, 1875). O norte do Brasil seria colonizado por uma raça mais branca e europeizada, e o território nacional, por sua vez, interligar-se-ia por vias férreas, cuja estação central, o ponto meridiano, seria o Rio de Janeiro, a sede do poder monárquico (Magalhães, 1935, p.208). Um Brasil branco, geopoliticamente vincado por ferrovias.
Assim, não surpreende que o conceito, ainda que nuançado, tenha ultrapassado a monarquia e alastrado pelo período republicano, particularmente na obra de pesquisadores norte-americanos. Pode-se notá-lo em Julian Steward, organizador dos seis amplos volumes do monumental Handbook of South American Indians, publicados entre 1946 e 1949 pelo Bureau of American Ethnology da Smithsonian Institution (publicou-se o volume sete uma década depois, em 1959). Fiando-se na carga empírica reunida pelos autores do Handbook e obviamente em suas próprias pesquisas, Steward teceu interpretações arqueológicas sobre as populações nativas dos territórios do leste da América do Sul, repartindo-as num enclave determinista ambiental e definindo-as como áreas culturais. Especialmente no caso do Brasil, Steward fundou uma dicotomia generalizante. Reduziu a imensa gama de ecótonos regionais brasileiros, dividindo-os em duas porções: a várzea e a terra firme (Steward, 1948a, 1948b, 1949a).
Na várzea, as populações seriam mais numerosas. Ofertas naturais abundantes e solos agricultáveis permitiram melhor adaptação evolutiva. Tais grupos, relativamente evoluídos, decaíram culturalmente ao pisarem nas áreas de terra firme. Afastados dos cursos d'água e de seus recursos, os agrupamentos rarearam demogra-ficamente, debilitaram-se culturalmente nas 'áreas marginais' e nas 'áreas de floresta tropical'. Submetidos ao fluxo sazonal dos alimentos em seu entorno, parte das populações tornou-se nômade, vagando pelas terras firmes à cata dos melhores repastos. Os solos das florestas tropicais seriam adversos à ocupação humana. O solo pobre cria homens pobres, com roças efêmeras, com pouco saber agrícola; minora-os demograficamente e em suas realizações culturais. Steward (1949c; Steward, Faron, 1959) classificou os indígenas 'brasileiros' nos últimos patamares de seu modelo evolu-cionista e ecológico de viés determinista. Em consonância com Varnhagen e Martius, para Steward (1949b, p.666) a população indígena tinha baixa densidade, perfazendo, no Brasil de 1500, 1,1 milhão de habitantes. Em suma, Steward filtra o conceito de degeneração, puri-fica-o das máculas da miscigenação. Contudo, concordando com a influência negativa dos trópicos no crescimento demográfico e na complexidade cultural, esse autor reproduziu as mesmas moedas correntes à época da monarquia, os mesmos estereótipos cunhados para as sociedades indígenas.
É verdade que Steward (1949a, p.670) assumiu que muitas das análises do Handbook tinham caráter provisório e sublinhou que vários grupos indígenas foram indevidamente classificados. Ainda hoje, porém, as bases teóricas do Handbook alicerçam o edifício de muitas pesquisas arqueológicas brasileiras, desconsiderando o alerta de Steward sobre as eventuais fissuras nos fundamentos do manual. Isso se deve, em parte, à vulgarização, na década de 1970, do modelo determinista ecológico e da correlação conceitual entre área cultural e área ambiental. Dois livros, nesse aspecto, se destacam na divulgação desses aportes: Índios do Brasil, de Júlio Cezar Melatti (1970) e Os índios e a civilização (1970), de Darcy Ribeiro. A melhor tradutora das idéias de Steward, porém, é Betty Meggers, cujos livros América pré-histórica (1979a) e Amazônia: a ilusão de um paraíso (1977a)1 foram muito lidos pelo público acadêmico brasileiro, notadamente pelos arqueólogos.
O legado de Betty Meggers
O húmus que nutriu a seiva das idéias de Steward formou-se num contexto histórico preciso da antropologia e da arqueologia norte-americanas. Como assinala Thomas Patterson (2001), desde a Grande Depressão a antropologia aliou-se aos propósitos de estabilidade social. Após a Segunda Guerra Mundial, acentuou-se essa preocupação científica com as estruturas da ordem social. A antropologia, então considerada uma prática divorciada do presente, teve como seu Leitmotiv, sobretudo no evolucionismo cultural, a busca de regularidades culturais. A Guerra Fria, entre 1954 e 1964, por sua vez, inaugurou os estudos de modernização, que contrapunham à superioridade cultural e política dos Estados Unidos a inferioridade cultural e racial dos países subdesenvolvidos.
Meggers partilhou, como se verá a seguir, dessa formação acadêmica. Porém sua vinda ao Brasil, no final dos anos 40, situa-se no período em que os Estados Unidos intensificaram os financiamentos das pesquisas de campo no estrangeiro, tidas como estratégicas para as agências militares e o Departamento de Defesa (Said, 1989). Anna Roosevelt (1991) foi a primeira a afirmar que seus pares norte-americanos que trabalharam na América Latina, particularmente os que esposavam a teoria do determinismo ecológico, mantinham ligações com a política externa dos Estados Unidos. Mantendo-as ou não, o fato é que Meggers e Clifford Evans montaram, em 1965, o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), cujo financiamento partiu de Washington, por intermédio da Smithsonian Institution, e de Brasília, através do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq). Entre 1965 e 1971, o Pronapa conduziu trabalhos no país e treinou toda uma geração de arqueólogos brasileiros. Pedro Paulo Funari (por exemplo, 1991, 1995) analisou a atuação do Pronapa durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Recentemente retomou o tema (2003), ensejando um aceso debate com Meggers, que, ao lado de outros arqueólogos brasileiros, negaram a parceria entre o Pronapa e a ditadura militar (cf. Delle, Sept., 2003). Antes dessa polêmica, contudo, já se sugerira a necessidade de aprofundar a questão (Oliveira, 2002).
Não é necessária uma documentação oficial insofismável dos arquivos de Washington ou Brasília para demonstrar os fundamentos colonialistas das representações arqueológicas de Meggers. Eles residem nos axiomas do determinismo ambiental de Steward, cristalizados e maturados por Meggers ao longo de pesquisas iniciadas na década de 1950. Para provar os limites impostos pelo ambiente no desenvolvimento da cultura, Meggers (1954, p.802) propôs que as "diferenças na fertilidade do solo, clima e outros elementos determinam a produtividade da agricultura, a qual, por sua vez, regula a concentração e o número da população, influencia o desenvolvimento sociopolítico e mesmo o nível tecnológico da cultura". O potencial do solo explicaria as regularidades trans-culturais, as diferenças e semelhanças culturais ao longo do mundo (p.802). Além disso, Meggers asseverou que, para ser significativa culturalmente, a classificação do ambiente deveria considerar os tipos de solo do continente americano, que se dividiriam em quatro áreas: 1) sem potencial agrícola; 2) com potencial agrícola limitado; 3) com potencial agrícola incremental; 4) com potencial agrícola ilimitado (p.806-812).
Em publicação posterior, de 1957, à classificação dos solos justapõe-se a tipologia de áreas culturais de Steward, com suas respectivas dinâmicas de desenvolvimento cultural. Assim, os solos tipo 1 e 2 correspondem às áreas marginais e à floresta tropical, em que habitaram – e habitam – nômades caçadores e coletores, bem como agricultores incipientes; nos solos 3 e 4 assentam-se as regiões mais evoluídas e civilizadas, populações volumosas e sedentárias, agricultura em larga escala, grandes cidades e templos, que povoaram os Andes, o Caribe e a Mesoamérica (Meggers, Evans, 1957, p.18). Em 1958, o estudo do potencial dos solos ampliou-se com a análise das divisões climáticas em escala continental. Para Meggers (1958), a relação entre temperatura e chuva seria a determinante do fomento agrícola. Essa abordagem ecológica culminou, em 1971, na publicação de Amazonia: man and culture in a counterfeit paradise. Posteriormente, houve importantes acréscimos: a teoria dos refúgios (Meggers, 1975a, 1977b, 1979a, 1979b; Meggers, Evans, 1973; Meggers, Danon, 1988) e a análise dos impactos do El Niño (Meggers, 1994a, 1994b, 1996a, 1996b).
Meggers ainda aplica esses postulados conceituais desenvolvidos a partir da década de 1950, num grande esforço para detalhá-los ao longo de sua extensa obra, ampliando e renovando diversos aspectos do determinismo ecológico de Steward. Um exemplo dessa permanência é o seu artigo "Prehistoric population density in the Amazon basin" (Meggers, 1992). Para explicar a equação que relaciona limitação ambiental com baixa densidade populacional e cultural, a autora orienta-se por sítios arqueológicos de uma área do rio Tocantins. A área serve de premissa para uma indução ambiciosa: surge como amostra analógica para o padrão de assentamento e capacidade de suporte de toda a Floresta Amazônica. Baseando-se na seriação cerâmica dos sítios arqueológicos da área, tidos como pequenas unidades, Meggers conclui que os grupos que os habitaram deslocavam-se periodicamente, em curtos intervalos, em razão do esgotamento dos recursos e das oscilações na oferta de alimentos ocasionadas pelas mudanças climáticas. Viviam, portanto, em pequenas aldeias. Ademais, esse padrão de assentamento pré-colombiano, com sua diminuta população, congelou-se no presente, fossilizou-se em herança para os grupos indígenas ainda vivos, os habitantes da Floresta Amazônica (p.203).
Meggers vê, pois, as populações pré-contato e atuais como semelhantes, relegando processos passados e a perspectiva histórica da brutal colonização luso-espanhola, que, com o tripé epidemias/pólvora/escravização destruiu modelos de sobrevivência e exterminou populações inteiras. Não obstante, a autora calculou a densidade demográfica da Amazônia à época da conquista. Estimou-a, tanto para a várzea quanto para a terra firme, entre 1,5 e dois milhões de habitantes (Meggers, 1992, p.203). O número de habitantes por milha quadrada, em ambas as áreas, seria o mesmo (0,3 habitante por milha quadrada). E o jogo das semelhanças unificadoras prossegue: as aldeias à beira-rio seriam do mesmo tamanho que as do interior, pois ali as enchentes eliminavam a fertilidade dos solos, deixando-os com uma produtividade tão baixa quanto os da terra firme (Meggers et al., 1988, p.291).
Em Meggers, portanto, temos um efeito cascata na arqueologia brasileira, uma série de enunciados que se reiteram em fluxo sobre fluxo, uma corredeira de proposições que se repetem desde Martius e Varnhagen. Não só os números demográficos de Varnhagen, Steward e Meggers são relativamente aproximados; mais do que isso, Meggers reafirma, dilatando-a, a proposição fundamental de Steward, que é, por sua vez, uma iteração de Varnhagen e Martius e, de um modo mais geral, dos americanistas do final do século XVIII e início do XIX – a Floresta Amazônica, com seu ambiente impiedoso, degenerou as populações indígenas. A Floresta Amazônica estorva a evolução. O esqueleto da idéia de degeneração, em Steward e sobretudo em Meggers, ganha músculos, materializa-se mais ainda do que em Ferreira Pena e Barbosa Rodrigues. Se a degeneração, em Martius e Varnhagen, é a degradação de povos civilizados que, vindos dos Andes, do Caribe ou dos povos nautas da Antiguidade, não suportaram o clima dos trópicos, se artefatos cerâmicos da Amazônia comprovam uma involução, em Meggers acham-se as mesmas conclusões (cf. Meggers, 1954, 1977a, 1979a, 1985, 1994b, 1995, 1997a, 1997b, 1998a, 1999, 2001; Meggers, Miller, 2003; Meggers, Evans, 1957, 1973, 1978), envoltas agora pelo manto da objetividade científica, autenticada com o selo do determinismo ambiental respaldado em análises pedológicas, pela ecologia cultural corroborada pela seriação da cultura material, pelas circunscrições de tradições enfeixadas em áreas culturais, pela definição de regularidades transculturais.
É no conceito de regularidade transcultural que a degeneração se apresenta mais manifestamente em seu processo de iteração da arqueologia imperial. Em América pré-histórica, Meggers (1979a) concebe uma representação arqueológica e geográfica do Novo Mundo, mapeando o continente na correlação entre áreas ambientais e culturais. Para ela, habitats similares ocorrem na América do Norte e na América do Sul – os campos, os desertos, as florestas e as áreas marginais. Isolando constantes culturais isomorfas, Meggers mostra-nos que os laços entre ambiente e desenvolvimento cultural atestam-se por semelhanças nas seqüências evolutivas e pelo caráter geral das configurações de clima em cada par de áreas. Haveria, pois, uma regularidade, normas culturais que se distribuem pelo continente, amoldando-se pelas interdições ambientais.
Ora, o enunciado de economia política de Varnhagen é válido também para Meggers: o aspecto mais significativo para a evolução cultural é a potencialidade agrícola. Daí as 'altas civilizações americanas', os maias, astecas e incas, se erguerem justamente nos solos de tipo 4, nas áreas que ela chamou de 'nucleares'. Tais lugares de civilização são nucleares porque a partir deles e por meio da difusão estende-se sua influência, expande-se seu 'núcleo evolutivo' pela área intermediária (o Caribe), pelos desertos e determinados setores das florestas norte-americanas, áreas ocupadas por agricultores de aldeias e integradas em grandes configurações religiosas e políticas. Os campos, por sua vez, bambearam no limite entre vida nômade e sedentária, o mesmo valendo para as florestas amazônicas, ou, para usar a terminologia de Meggers, os ambientes permissivos. As áreas marginais, que cobrem o Centro e o Nordeste do Brasil, o Canadá e os Estados Unidos, sustentaram economias especializadas na caça e na coleta. Em suma, quanto mais perto das áreas nucleares, maior a evolução de um grupo; a proximidade com os impérios, os contatos com os núcleos de irradiação da difusão civilizam; longe dos núcleos, degeneram-se os índios em ambientes degradantes. Porém, a difusão se esbate numa barreira intransponível: ainda que ela se faça sentir, com sua força de dominação civilizadora, o ambiente pode suprimi-la, impor-lhe restrições climatológicas, amalgamá-la novamente no caldeirão centrífugo das regularidades transculturais.
Assim, os tupis provieram do Norte, de grupos que hauriram das culturas nucleares; mais especificamente, imigraram da base andina da Bolívia. Povoaram as várzeas amazônicas, chegando depois à costa atlântica do Brasil. A aproximação com as hipóteses de povoamento de Martius e Varnhagen, contudo, vai mais além. Se os tupis tinham marcas andinas, elas se apagaram nas florestas, traduzindo-se em cerâmicas pouco apuradas e na relativa ausência de estratificação social, conforme se vê na falta de tratamento funeral, na pobreza ritual dos enterramentos. Ademais, tinham baixa densidade demográfica, viviam em pequenos grupos de casas comunais, as aldeias eram politicamente independentes e suas relações assinalavam-se pela guerra, com freqüentes incursões feitas "para obter prisioneiros, eventualmente sacrificados e comidos", por-quanto trazer "um cativo assegurava prestígio ao captor, mas impunha aos parentes da vítima a obrigação de sangue" (Meggers, 1979a, p.159). A floresta tropical é o Heart of darkness latino-americano.
A repetição de Martius e Varnhagen, contudo, não reside somente na caracterização da degeneração tupi. Meggers, por meio do conceito de difusão, reativando as proposições colonialistas dos difusionistas, faz uma genealogia das áreas nucleares. As 'altas civilizações americanas' tiveram seu nascimento mediante contatos transpacíficos. No Equador, a cultura Valdívia, com seus complexos cerâmicos requintados, não possui uma tradição ancestral plantada em seu solo; na realidade, para Meggers, a cerâmica Valdívia descende dos sambaquis japoneses do Pacífico, cuja seqüência cultural remontaria a 7.000 a.C., redundando, por volta do ano 3.000 a.C., na complexa cultura Jomon. Do Pacífico ela foi trazida ao Equador e seus sinais de difusão se espargiram ao longo da costa do Pacífico, numa corrente cujos elos se prendem às praias da América Central e do México. Numa palavra, as áreas nucleares são de origem extracontinental (Meggers, 1975b, 1979a, p.54-58; 1998b). Porém muitas inovações – entre elas a escrita –, vislumbradas já entre os olmecas, possuiriam correspondência com a cultura Shang da China (1979a, p.71).
Para Meggers, características da cultura Jomon se notam também no norte da Colômbia, de onde se difundiram, em 500 a.C., para a ilha de Marajó. A arte cerâmica 'marajoara', assim como a dos tupis, é, portanto, tributária do Norte; sua origem é, em última instância, também transpacífica. Tal contato inicial com culturas complexas, contudo, não foi duradouro; esmoreceu-se e feneceu à medida que adentrou a faixa costeira da Floresta Amazônica, onde se isolou num planalto semi-árido. Os grupos humanos escassearam, fabricaram cerâmicas mais rudimentares e não se dedicaram à agricultura. O padrão de vida desses grupos, assim, assemelha-se, segundo Meggers, aos das "populações atuais da Amazônia" (Meggers, 1979a, p.58, 153-154). Porém aqui a idéia de degeneração se insinua em seu viés oitocentista mais clássico: a umidade sombria da Floresta Amazônica degenera; a civilização não viceja em florestas tropicais, não obstante sementes transpacíficas terem sido cultivadas em ilhas de civilização. Há aqui, ainda, um deslocamento na representação espacial da degeneração indígena, pois se para Barbosa Rodrigues e Ferreira Pena haveria uma primitividade ascendente na ilha de Marajó e nos aterros amazônicos, uma propagação vertical de barbarismo rumo à superfície dos estratos arqueológicos, para Meggers a involução cultural palmilha o sentido horizontal, percorre as linhas sinuosas da várzea e da terra firme amazônicas, distribui-se numa diáspora de estagnação que se perpetua no presente.
Não há, contudo, somente repetições em Meggers. Conquanto a antropofagia, entre os tupis, persista como signo de involução, a autora não atribui a degeneração indígena a motivos homossexuais ou aos frenéticos desejos da miscigenação; e adverte que as hipóteses de povoamentos transcontinentais têm um limiar intransitável, ao contrário do que pensavam os cientistas do Brasil monárquico. Seria controvertido afirmar a existência de contatos transatlânticos e mediterrânicos entre os indígenas do continente americano, a não ser no caso da difusão de cerâmicas européias no leste dos Estados Unidos (Meggers, 1979a, p.61). Porém jamais os gregos, fenícios ou egípcios comungariam seus elementos culturais com os nativos americanos, porquanto a "disparidade marcante em nível de desenvolvimento cultural entre as áreas doadoras e receptoras" cria sempre severos obstáculos à difusão (p.214). Afinal, os grupos de origem mediterrânica ou européia possuíam "culturas muito mais avançadas do que as que existiam em qualquer lugar ao longo da costa atlântica das Américas ou nas ilhas do Caribe" e, prossegue Meggers, "se um navio de uma de tais origens alcançasse o Novo Mundo teria tido pouco ou praticamente nenhum impacto permanente nos habitantes aborígenes" (p.214).
Degenerar o legado
Certamente, as iterações de Meggers em relação aos contatos transpacíficos não têm o mesmo sentido que tiveram para a arqueologia imperial. A autora não outorga uma identidade nacional 'nobre' para o Brasil ou qualquer nação latino-americana. Os contatos transpacíficos, aliás, em nada depreciam as "altas culturas americanas", pois "isso torna mais fácil integrá-las dentro dos contornos de uma história mundial que estão começando a emergir" (Meggers, 1979a, p.89). São exatamente tais 'contornos' que devem ser rasurados criticamente. Com efeito, os contornos de Meggers, reativando as proposições da arqueologia imperial, requentando os aportes da antropologia colonial e do americanismo do final do século XVIII e início do século XIX, com seu determinismo ambiental e difusionismo, são representações arqueológicas que veiculam, sob o escudo protetor da prova empírica, idéias colonialistas, próprias do contexto de legitimação, por meio das ciências sociais, do império norte-americano. É o que lhe autoriza a seguinte sentença geoecológica:
Na América do Sul [em contraposição à América do Norte], as modernas divisões políticas correspondem mais de perto com as zonas ecológicas. O Brasil é principalmente floresta; a Argentina principalmente campo; o Chile principalmente costa do Pacífico; Colômbia e Venezuela são zona intermediária. Essa diferença é significativa. Se a América do Norte tivesse sido desmembrada em muitos países, um ocupando a floresta, outro os campos, outro o deserto e a costa do Pacífico, a situação seria comparável à da América do Sul e os problemas de desenvolvimento seriam provavelmente análogos. Os acidentes da história são responsáveis por estas fronteiras modernas, mas se compreendermos seu significado ecológico, seremos capazes de lidar mais adequadamente com os problemas que eles suscitam. (Meggers, 1979a, p.12-13)
As representações arqueológicas de Meggers não só repetem o conceito de degeneração, cujo teor, como assinala Homi K. Bhabha (1995, p.70), sempre serviu às técnicas de governabilidade colonial. Os acidentes da história de Meggers são eufemismos que silenciam as expansões territoriais dos Estados Unidos, eufemismos que apagam a tinta colonial com que se inscreveram as fronteiras do passado, o avanço tenebroso nas terras nativas (e no México), coadjuvado pela arqueologia norte-americana nos termos de pesquisas empíricas (MacGuire, 1992) e na articulação, por meio do Bureau of American Ethnology da Smithsonian Institution, de políticas colonialistas (Hinsley, 1981). Esses eufemismos, além de elidir a história imperial dos Estados Unidos, a prorrogam para o presente do continente sul-americano, no melhor estilo francês de mission civilisatrice.
Compreendamos melhor essa versão norte-americana de mission civilisatrice. Não estamos afirmando que Meggers é a personificação real de imaginários personagens literários. Ela certamente não se confunde com o Creighton de Kipling (1901), o administrador colonial e etnógrafo de Kim, a enfatizar a aliança lógica entre a ciência ocidental e o imperialismo inglês na Índia. Meggers não veio ao Brasil para assegurar a colonização de índios; não serviu a um programático colonialismo interno, como os intelectuais orgânicos do Brasil monárquico; ela está longe da idealização das colônias militares de Couto de Magalhães. Porém não se pode apagar o lugar de onde ela fala: para Meggers, à maneira de Hegel, a história corre unilateralmente, do Sul para o Norte (Hegel dizia do Oriente para o Ocidente), tornando-se mais desenvolvida e menos atrasada à medida que avança.
América pré-histórica é uma grande alegoria para o presente, pois assim como para Martius e Varnhagen houve uma área nuclear, foco de luz civilizadora, hoje o núcleo transfere-se para a América do Norte, de onde um arqueólogo, cônscio das regularidades transculturais e dos limites ambientais, pode corrigir os rumos do subdesenvolvimento, ensinando-nos os significados ecológicos da cultura, esclarecendo-nos sobre as nossas ilusões oníricas, ministrando-nos lições sobre o nosso atraso. Afinal, a floresta amazônica é um sorvedouro de civilizações. Ela sempre embalou sonhos de eldorados, acalentou ilusões que desconsideraram indevidamente suas limitações ecológicas, tanto no que se refere ao desenvolvimento cultural na pré-história do Novo Mundo, quanto no tocante à sua capacidade de sustentar uma população urbana moderna (Meggers, 1979a, p.219-220).
América pré-histórica, como alegoria do presente, orna uma justificativa para as desigualdades regionais do continente americano. No livro há representações sobrepostas: à representação arqueológica de um passado distante acresce a representação geográfica das modernas diferenças culturais, políticas e econômicas da América. Seus contornos, portanto, são colonialistas. Como nos mostra Edward Said (1995), o colonialismo não é apenas um ato direto de violência geográfica, mas também aciona uma série de discursos científicos que organizam a hegemonia cultural e geopolítica de uma região sobre outras. O motivo geográfico é a própria metodologia do colonialismo.
Mais importante do que o próprio passado é a influência deste sobre as atitudes culturais do presente. Como diz o arqueólogo sul-africano Martin Hall (2000, p.41-42), representações coloniais ainda povoam as interpretações sobre a cultura material dos "países periféricos". Os arqueólogos, de um modo geral, continuam aprisionados por estereótipos coloniais (Gosden, 2002, p.203). O passado colonial, especialmente para os latino-americanos, não é um resíduo arcaico, mas sim um "artefato herdado" (inherited artefact) que circula ativamente no presente (Meskell, 1998, p.4). Pensar e fazer a crítica dessas circulações seculares, quebrar as grades dessas prisões conceituais, rasurar os contornos dessas insistentes representações é romper com a continuidade duradoura do legado colonialista nas pesquisas arqueológicas no Brasil e na América Latina.
Revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos
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