sábado, 3 de outubro de 2009

O gênio das letras


O gênio das letras

CECÍLIA PRADA

A obra literária de Joaquim Maria Machado de Assis, como a de todos os grandes artistas criadores, resiste no tempo de maneira constante.

Noventa anos após a sua morte, seus livros constituem um patrimônio indiscutível da nacionalidade, pedra fundamental da língua e da expressão, retrato animado da sociedade brasileira do Segundo Império, mas que consegue transcender a época e chegar ao umbral do século 21 como fonte permanente de prazer estético e de reflexão.

Como homem, Machado tem também oferecido campo psicológico dos mais interessantes para estudo.

As incontáveis análises críticas e biográficas que motivou certamente não esgotaram ainda o grande mistério que cercou, durante muito tempo, a personalidade daquele que se transformaria no nosso maior escritor.

Até a década de 40, pouco se sabia das circunstâncias em que Machado nascera e fora criado. A maior parte de seus biógrafos pasmava, sem atinar como um menino pobre, mulato, doentio, que diziam todos ter nascido na miséria, no morro do Livramento, filho de um pardo e de uma lavadeira portuguesa, conseguira sozinho abrir uma brecha e ascender verticalmente até posições de prestígio. E como pudera descrever tão bem uma camada social à qual não teria tido acesso.

A grande discrição mantida sempre pelo escritor sobre a família, a ausência de documentos válidos, dera origem a essa lenda romântica, de irresistível atração para os biógrafos, mas em nada condizente com a realidade. Lúcia Miguel Pereira, em prefácio feito em 1944 à biografia que escrevera em 1935, enfatiza: a descoberta da certidão de batismo do escritor, e de outros documentos, tornara enfim possível esclarecer o mistério familiar e mesmo literário do grande Machado. Ao contrário do que se pensava, embora tendo nascido sem fortuna, o escritor nunca fora miserável. Pelo contrário, seus pais viviam confortavelmente numa casa situada na Chácara do Livramento, onde eram benquistos por todos. Sua mãe, que viera menina para o Brasil, não teria sido lavadeira, mas sim até senhora de fino trato, amiga e protegida da proprietária, dona Maria José de Mendonça Barros, viúva do senador Bento Barroso Pereira, que fora por duas vezes ministro do Império.

Essa senhora foi também madrinha de Joaquim Maria, e este passou toda a sua infância convivendo no ambiente requintado da casa-grande, familiarizado com as situações sociais e com as pessoas que mais tarde descreveria tão bem. Sua própria condição de cria ou agregado não teria provocado nele ressentimentos e complexos (como os criadores de sua lenda pretendiam), mas, pelo contrário, permitido que se situasse no ponto de vista do observador, indispensável para um escritor.

A morte da mãe, Maria Leopoldina, não ocorreu - como era dito - quando ele teria seus 2 ou 4 anos, mas sim quando já contava 10 anos. Fato traumático, sem dúvida, seguido no mesmo ano da morte da madrinha, mas uma continuidade de carinho foi propiciada amplamente pela madrasta Maria Inês, a ele tão afeiçoada, que, segundo se conta, teria ido procurar ela própria um professor de francês para o inteligente enteado.

Outra mentira da "lenda machadiana", o jovem Machadinho teria sido obrigado a exercer funções humildes, mal pagas, para sustentar a madrasta após a morte do pai. Segundo as pesquisas biográficas mais dignas de fé, Machado teria sido apenas por pouco tempo caixeiro e tipógrafo. Logo seria admitido como redator num jornal político importante, o "Correio Mercantil". E quando seu pai morreu, em 1864, já tinha posição financeira e social assegurada. Quanto a Maria Inês, ficara amparada com a pensão do marido.

Sem deixar jamais de exercer o jornalismo, como crítico e como cronista do cotidiano, Machado conseguiu logo também um cargo estável no funcionalismo público, no Ministério da Agricultura. Aos 30 anos, o casamento com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais completou o quadro de sua serenidade doméstica e social - dali por diante, durante 35 anos, o gênio teria ao seu lado, infatigável, atenta, cercando-o de carinho, minimizando os inconvenientes da epilepsia que o acometia, a mulher adorada, a cuja morte sobreviveu apenas durante quatro anos.

Matriarcado feliz

Vista à sua verdadeira luz, a biografia de nosso maior escritor reverte a "lenda" e nos dá, pelo contrário, um quadro de amor, acolhimento, conforto psicológico, equilíbrio, fornecido quase sempre por um ambiente de matriarcado - transposto nitidamente, aliás, para a sua obra.

Em Dom Casmurro, o ambiente em que transcorre a infância do personagem Bentinho pode ser facilmente identificado como a mansão da madrinha rica: uma espécie de corte pessoal em que, entre ociosas conversações com cônegos e partidas de gamão com agregados, os destinos de filhos e crias são determinados.

Nos outros romances, a mesma constância do ambiente, os mesmos personagens sofisticados, complicados, a alta burguesia escravocrata, as intrigas do poder e do dinheiro, e a série de personagens femininos apresentados de maneira profunda, desvendados em sua psicologia. Hoje, os críticos não se espantam mais com eles, sabem que o escritor utilizou afinal o seu material de infância - como acontece com todos os grandes escritores. E pôde fazê-lo de maneira serena, apartada de qualquer envolvimento ideológico, e por isso mesmo mais verdadeira.

Desde os primeiros anos de jornalismo, Machado soube firmar um estilo próprio, um fino humor sob o qual transparecia, entretanto, amarga constatação da precariedade da condição humana.

Como o finado Brás Cubas, seu personagem, dizia "escrever com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Esses traços estilísticos se acentuaram sob a influência dos autores ingleses em que mergulhou - levado por Carolina, extremamente culta, a ler sistematicamente Shakespeare e os grandes humoristas, Sterne, Swift. A influência intelectual da mulher foi mesmo decisiva na sua obra. Diariamente discutiam seus textos e, segundo dizem, ela corrigia às vezes não somente a ortografia como também a própria redação.

Presença literária

A carreira literária de Machado de Assis estende-se ininterruptamente durante 53 anos - da publicação dos primeiros versos, em 1855, à de Memorial de Aires, no próprio ano de sua morte, 1909. Aparecido em pleno fastígio do romantismo, contemporâneo de José de Alencar e Gonçalves Dias, Machado manteve-se imune ao fervor indianista e ufanista por eles manifestado.

Embora considerado por muitos como nosso primeiro escritor realista, sua obra original nunca pôde enquadrar-se em escola alguma e sobreviveu aos modismos de várias gerações.

Um de seus mais abalizados críticos, José Aderaldo Castelo, diz que ele "soube orientar-se criticamente a si mesmo, no combate aos lugares-comuns e aos excessos de uns e de outros, dos clássicos aos contemporâneos". Nesse esforço, firmou a independência e a originalidade da sua obra, "de tal forma", diz ainda Castelo, "que a obra do ficcionista, com as qualidades que contribuem para sua projeção na posteridade, apresenta todas as gradações do romance brasileiro do século 19, inclusive o enraizamento histórico apoiado na tradição da língua".

E enquanto o crítico Sílvio Romero dizia, derrisoriamente, "Machado gagueja no estilo, na palavra escrita, como outros na palavra falada", outro estudioso da sua obra, Alcides Maya, comentava: "Se é exato que ele tartamudeia na palavra escrita e repisa, repete, torce e retorce as idéias e os termos, tal sucede porque esse é um meio seguro de conduzir a ação cômica".

A visão trágica da vida, temperada com o veio sutil da ironia, o finíssimo faro psicológico, dão ao romancista maduro os instrumentos necessários para a perfeita expressão de uma arte que definia como "consolo metafísico para um mal metafísico". Porque, como dizia dom Casmurro, "o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se".

Revista Problemas Brasileiros

Nenhum comentário: