Mundo e Linguagem nas Categorias de Aristóteles
Adriano Naves de Brito¹
Livro: Categorias.
Autor: Aristóteles
Tradução, introdução, notas e comentários de José Veríssimo Teixeira da Mata.
Editora: UFG & Alternativa. Goiânia, 2005
Na mitologia grega, Dioniso compõe com Apolo, seu irmão paterno, uma unidade em meio a contrastes: a paixão turva e o intelecto translúcido, a obscuridade intestina dos desejos e a dissipação das trevas, a vitalidade criadora da vontade e a beleza equilibrada do discernimento. Nietzsche, em seu O nascimento da tragédia, viu dicotomia, onde os gregos, com sua visão harmônica do cosmos — a ordem do mundo —, viam sobretudo complemento. O equilíbrio é a tendência dominante no mundo, para o qual há uma ordem que nos é acessível pela inteligência, cujo meio de expressão é o discurso assertivo.
A filosofia de Aristóteles faz jus ao espírito grego de conciliação na medida em que busca de um lado a convivência possível, num sistema geral, da doutrina dos que lhe antecederam no ofício do pensamento, e, de outro, a harmonia entre noções conflitantes: o movimento e o ser, as aparências e o conhecimento, o mundo e a linguagem. Entretanto, talvez não seja de todo sem significado que tenha feito construir nas proximidades do templo a Apolo Lício, no ano de 335 a.C., a sua escola, que deve a isso seu nome: o Liceu. Na tarefa da conciliação, a luz da razão é, em Aristóteles, dominante. E isso quer dizer que, ao fim e ao cabo, é a linguagem que conforma o mundo.
A obra de Aristóteles é colossal. Não tanto pela extensão e variedade de temas do conjunto de textos que nos chegou (e eles são vastos e versam sobre quase todos os campos da ciência), quanto pela influência que exerceu no ocidente. Agradaria a seu autor, imagino, pensar que tal influência se tenha devido não a ter sido ele a escrever a obra, mas à verdade que ela encerra. Uma verdade meditada, mas nunca fora do alcance das evidências do mundo sensível. Tempero que parece ter lugar cativo no gosto dos homens, para os quais a realidade é algo demasiadamente relevante para não lhe serem atentos. Ordenada por Andrônico de Rodes, meio século antes de nossa era, o Corpus Aristotelicum começa pelo básico, mas não pelo simples. Ao iniciante são dados antes de mais nada os instrumentos imprescindíveis para a atividade filosófica, que era entendida simplesmente como atividade de buscar, em qualquer área, o conhecimento. Num tempo como o nosso, no qual a filosofia já pariu tantos rebentos que se apresenta às vezes como um útero ressequido, o esclarecimento tem cabida. Essa parte inicial da obra é o Organon — o que se pode traduzir por “o instrumento” — e dele o primeiro livro é as Categorias. Assim, se o aluno do Liceu seguisse a ordenação do compilador, o que primeiro lhe cairia nas mãos seria o livro cuja tradução é objeto deste comentário. Um livro introdutório, mas em nenhum aspecto trivial. Disso dá testemunho quem quer que dele se aproxime e por isso é providencial que José Veríssimo Teixeira da Mata, o bravo que enfrentou o desafio de produzir uma nova versão do texto aristotélico para o português, tenha acomodado a sua versão da obra entre uma introdução e valiosos comentários. A eles também quero dedicar algumas considerações.
Com José Veríssimo descobri que há outra tradução brasileira das Categorias. Uma de 1965, de Mário Ferreira dos Santos (publicada em São Paulo pela Matese). Dela nunca tive notícia e talvez fosse melhor dizer “havia”, pois seria um milagre se nosso mercado editorial tivesse mantido viva uma publicação vinda à luz há mais de quarenta anos. Mas Veríssimo deixa de mencionar outra, uma tradução portuguesa, difundida entre os estudantes de filosofia, porque barata ao tempo em que era disponível e, claro, porque em português. Essa, da lavra de Pinharanda Gomes (Lisboa: Guimarães Editores, 1985), Veríssimo quem sabe não a mencione porque pouco cuidada, com texto muitas vezes truncado, mas de todos os modos é uma referência e teria gostado de ouvir seus comentários críticos a ela, como também à de Mário. De qualquer modo, vê-se que uma nova tradução de opúsculo tão fundamental para os estudos aristotélicos chega como água em terra seca, pelo que o projeto tem já em si imenso valor e merece efusivo reconhecimento. Tanto mais o merece, quanto de qualidade é o trabalho, que foi feito com esmero e gosto pelas línguas, o grego clássico e o português, além de acadêmica atenção aos estudos aristotélicos atuais. Com as editoras, UFG e Alternativa, que abraçaram o projeto, fica o eventual leitor também em dívida. Que do projeto tenha resultado um livro bem acabado e bem revisado, com a indicação da paginação canônica e em tamanho quase de bolso, nas dimensões e no preço, são outras razões para merecido agradecimento do público ao tradutor e seus editores.
Dito isso, minhas considerações, no que segue, não tiram em nada o mérito do resultado, mas como ele agora pertence a nós, é lícito que possamos contribuir com seu desenvolvimento e êxito. Começo minhas notas críticas pela admissão à obra: a sua introdução. Se o livro visa também, e quem sabe sobretudo, ao público de não-iniciados, a estudantes, e tudo no projeto leva a pensar que sim, falta na introdução uma localização histórica da obra. O que disso há é sumariíssimo e feito tão rapidamente que mal nos damos conta de como fomos confrontados com o fundamental, e difícil, problema da relação entre mundo e linguagem.
A investigação das quatro questões, de cunho claramente filosófico, anunciadas ao início da introdução – a saber: o que são as categorias, o que é a substância, quais as principais funções das categorias nas substanciais e quais os limites da tábua – recebem ao longo dela um tratamento ambíguo. É muito sofisticada para o leitor não-iniciado, mas inconclusiva e demasiadamente rente à literatura para o leitor qualificado. O texto resultante fica, portanto, a meio caminho entre um artigo acadêmico e uma propedêutica. Além disso, a dependência para com o próprio texto das discussões trazidas à baila pelo tradutor leva a pensar que o melhor teria sido tê-la plantado ao final, como um posfácio, reservando para a introdução um texto mais condizente com esse título. Com efeito, uma vez que o leitor tenha lido a tradução e os esclarecedores comentários a ela, situados depois do texto de Aristóteles, o mistério que envolve aquelas questões se ilumina e a leitura da introdução se torna bem mais interessante e menos penosa, pois os termos e o contexto do debate já estão sob o domínio do leitor.
No tocante ao ponto que obseda o tradutor — mas a mim também —, a relação entre mundo e linguagem, sua via de aproximação é muito apropriada, mas dela ele não colhe frutos maduríssimos. Ao invés de munir-se de um jargão tomista ou metafísico, José Veríssimo enfrenta o problema pela via que, segundo me parece, é a melhor, qual seja: a da filosofia da linguagem. Vista a lógica de Aristóteles por este ângulo, seu imbróglio teórico se descortina de imediato. Senão vejamos. As categorias, em tese que Veríssimo esposa, servem ao conhecimento da proposição, núcleo elementar de todo discurso declarativo e, portanto, do próprio lógos. Contudo, se o que cumpre ao amigo da sabedoria é conhecer o mundo, e se seu instrumento para tanto é a linguagem, essa tem de conservar com aquele um comércio estreito. Tão estreito que da análise da linguagem é-se tentado a destilar conhecimentos do mundo, ao mesmo tempo em que dessa análise se exige uma fundamentação ontológica da proposição (Cf. cap. 5 da introdução). A confusão aristotélica entre mundo e linguagem, definitivamente identificada pela lógica contemporânea, fica pois patente. Ao não separar adequadamente uma esfera da outra, dá azo a uma metafísica onerosa, qual seja, o essencialismo. O texto aristotélico dá daquela indistinção inúmeros testemunhos. Em trechos como estes: “das coisas que são, umas são ditas de um sujeito, não estando em um sujeito” (1a20-21); “dizem-se sinônimas as coisas cujo nome é comum” (1a6); e “parônimas são ditas todas as coisas que, diferindo-se de uma outra coisa pela desinência, obtêm a denominação do nome” (1a12-13), fica claro que entre as coisas e sua expressão Aristóteles não estabelece uma distinção rigorosa. E se há razões teóricas, ligadas ao todo de seu sistema e visão ontológica, para que assim proceda, há poucas para que o fato não seja hoje claramente denunciado. José Veríssimo não o faz. Deixa de colher este importante resultado que o desenvolvimento da lógica amadureceu. Nisso vejo a maior deficiência de seu texto introdutório.
A única referência a um texto contemporâneo de lógica é à clássica obra dos Kneale, uma história da lógica, mas nem mesmo isso lhe ajuda a apontar ao leitor uma via de ligação entre Aristóteles e a lógica de hoje. Os avanços da lógica formal, se não corrigiram a silogística aristotélica nos seus resultados dedutivos, propiciaram uma enorme clareza no que tange à sadia separação entre o mundo e a linguagem. (ii) Na falta destas referências, fica o leitor noviço sem qualquer indicação sobre o destino hodierno das discussões anunciadas. Para citar um exemplo, a versão fregeana para a estrutura básica da proposição resolve com elegância a disputa sobre a primazia gramatical ou ontológica das noções lógicas, pois afasta tais noções de ambos os pólos. Enquanto S é p, a forma canônica aristotélica, é demasiadamente gramatical e exige compromissos ontológicos explícitos para a distinção entre o sujeito e o predicado, a idéia de função, Fx, ao usar a variável como eixo do formalismo, escapa tanto dos laços gramaticais, quanto expele para fora da lógica a tarefa de determinar o que pode ser o argumento para uma função, quer dizer, o que pode ocupar o lugar da variável x, e o que pode ocupar a posição de um predicado F qualquer. Com isso, torna-se muito mais fácil separar o que para Aristóteles está entrelaçado: a coisa e sua expressão.
Aristóteles opera com um modelo específico de linguagem. O tipo de modelo que leva a pensar que há um certo isomorfismo entre o mundo e o discurso que o exprime, além de uma relação direta entre esses dois pólos. Esse modelo favorece a uma substancialização dos referentes dos nomes. Tendência que é, por exemplo, clara na passagem seguinte:
Toda substância parece significar algum isto. Em relação às substância primeiras, é incontestavelmente verdadeiro que significam algum isto, pois o que é revelado é individual e numericamente um. Mas, em relação às substância segundas, parece, de modo igual, que significam, pelo esquema de denominação, algum isto, quando alguém diz homem ou animal, mas isso não é verdadeiro, pois significam mais uma qualidade. (1b10-17)
O significado confunde-se com a própria coisa, num modelo muito dependente do “esquema de denominação”. Ainda que se queira defender este modelo, é preciso, antes, explicitá-lo, o que obriga a pelo menos mostrar que ele não é o único. Em torno disso, vale dizer, gira grande parte da discussão conduzida no século XX no âmbito da filosofia da linguagem. Para não ficarmos sem exemplos, a filosofia de Wittgenstein se divide justamente a partir desse ponto.(iii)
Quanto à tradução feita por José Veríssimo, minhas observações são ainda mais laterais. Como meu domínio do grego não passa do alfabeto, não posso julgar a empreita senão pelo resultado. Na comparação com o trabalho de Pinharanda Gomes, que conheço, Veríssimo se sai muito bem. O respeito ao texto original fica evidente nas escolhas que fez, o que de fato aproxima Aristóteles do lusófono sem no entanto desfigurá-lo. Isso eu o comprovo pela comparação com a edição que tenho à mão, a inglesa, de Ackrill, muito celebrada pelo próprio José Veríssimo. O veredito é então que temos, com o trabalho do goiano Veríssimo, um texto útil e confiável para o estudo de Aristóteles, o que não era o caso da tradução lisboeta de Gomes.
Discordo, não obstante, de duas escolhas de tradução feitas por José Veríssimo e rogo a ele, em uma edição futura, uma ainda maior preocupação com a compreensibilidade do texto. Explico-me com respeito aos dois pontos. Com respeito a pelo menos dois termos centrais das Categorias, lógos e ousia, Veríssimo inova problematicamente a meu ver. O primeiro de seus comentários à tradução (p. 121) está dedicado a defender “o enunciado da essência” como uma tradução superior a “definição do ser”. Para o uso de “enunciado” ao invés de “definição” na expressão em tela, ele não oferece uma justificativa. No tocante a isso, penso que a alternativa cria enormes dificuldades ao leitor na medida em que obscurece a relação dessa expressão com uma discussão central na obra de Aristóteles, notadamente, a discussão em torno da definição. Ora, o próprio Veríssimo refere-se a esse tema tipicamente aristotélico usando o termo “definição”, por exemplo, na seguinte passagem de seus comentários: “Pode-se dizer que o tratado Categorias apresenta um conjunto de elementos que, quando articulados, possibilitam a construção de definições” (p. 137, grifo meu). Como deve o leitor ligar esta temática com o texto das Categorias se nele a expressão dá lugar a “enunciado”? Fico, pois, com a tradição e contra José Veríssimo no que tange a esta escolha; assim como fico com ela na tradução da segunda parte da expressão por “ser” e não por “essência”. A opinião dele a respeito do ponto pode bem ter seu valor, mas me parece razão insuficiente. Diz ele:
Optei por essência convicto de que o ser tem uma extensão muito maior do que a essência, a qual encerra no sistema lógico e ontológico funções mais precisamente definidas. É natural que, no contexto do pensamento aristotélico, a ousia, enquanto substância segunda seja entendida como essência. (p.121)
O problema é que a escolha traz para um texto da juventude de Aristóteles uma discussão que se desenvolve ao longo de boa parte de sua obra madura, notadamente na Metafísica. A própria distinção entre substância primeira e segunda é típica apenas das Categorias e disso dá fé o próprio Veríssimo: “Aristóteles apresenta, ainda nesse parágrafo, a substância segunda, que, aliás, só é denominada segunda, nesse tratado. Nos outros textos, aparecerá como essência, espécie ou gênero” (p.144). Ora, por que comprometer a tradução com uma escolha que se ampara no estudo de textos posteriores, e que, de resto, se mantém como tema de investigação entre os especialistas, afastando assim o texto das Categorias das opções tradicionais para a tradução? Uma nota a respeito teria sido mais oportuna e útil ao leitor. Há debate suficiente nos textos aristotélicos em torno dos termos “essência”, “ser” e “substância” para que se agrave ainda mais a questão. No mínimo, a defesa da escolha deveria ter sido muito mais extensa e robusta para ser razoável.
O outro ponto atinente à tradução concerne a sua compreensibilidade. A despeito do ótimo acabamento lingüístico que lhe deu José Veríssimo, há muitos casos em que a compreensão do texto fica comprometida ou é simplesmente impossível. Certamente as dificuldades de verter o grego clássico para uma língua moderna são imensas. Por isso mesmo, a necessidade de lapidação ulterior do texto traduzido não constitui demérito para o tradutor, mas é dever de seu ofício. Deixo abaixo dois exemplos, para os quais uso como termo de comparação o texto de Ackrill, mediante o que espero se possa compreender a que me refiro.
Compare-se, pois, o seguinte trecho:
Das coisas que são, umas são ditas de um sujeito, não estando em um sujeito; por exemplo, homem é dito de sujeito, de um homem individual, não estando em nenhum sujeito. Outras estão em sujeito, não sendo ditas de nenhum sujeito. Digo estar em sujeito aquilo que está em uma coisa não como sua parte, mas que não pode estar fora daquilo em que está. Por exemplo, um certo conhecimento gramatical está em sujeito, na alma, não sendo dito de nenhum sujeito; e uma certa brancura está em sujeito, no corpo — pois todas as cores estão em algum corpo —, mas não é dita de nenhum sujeito. Outras coisas são ditas de sujeito e estão em um sujeito. Por exemplo, o conhecimento estando em um sujeito, na alma, é dito de sujeito, da gramática. Outras nem estão em um sujeito, nem são ditas de sujeito — por exemplo, o homem individual, o cavalo individual —, pois nenhuma das coisas desse tipo está em sujeito, ou é dita de sujeito. E, simplesmente, os indivíduos e o que é numericamente um não são ditos de nenhum sujeito, apesar de nada impedir alguns de estarem em sujeito. Ora, um certo conhecimento gramatical é uma das coisas que estão em sujeito. (1a20 – 1b9)
Com a seguinte versão inglesa:
Adriano Naves de Brito¹
Livro: Categorias.
Autor: Aristóteles
Tradução, introdução, notas e comentários de José Veríssimo Teixeira da Mata.
Editora: UFG & Alternativa. Goiânia, 2005
Na mitologia grega, Dioniso compõe com Apolo, seu irmão paterno, uma unidade em meio a contrastes: a paixão turva e o intelecto translúcido, a obscuridade intestina dos desejos e a dissipação das trevas, a vitalidade criadora da vontade e a beleza equilibrada do discernimento. Nietzsche, em seu O nascimento da tragédia, viu dicotomia, onde os gregos, com sua visão harmônica do cosmos — a ordem do mundo —, viam sobretudo complemento. O equilíbrio é a tendência dominante no mundo, para o qual há uma ordem que nos é acessível pela inteligência, cujo meio de expressão é o discurso assertivo.
A filosofia de Aristóteles faz jus ao espírito grego de conciliação na medida em que busca de um lado a convivência possível, num sistema geral, da doutrina dos que lhe antecederam no ofício do pensamento, e, de outro, a harmonia entre noções conflitantes: o movimento e o ser, as aparências e o conhecimento, o mundo e a linguagem. Entretanto, talvez não seja de todo sem significado que tenha feito construir nas proximidades do templo a Apolo Lício, no ano de 335 a.C., a sua escola, que deve a isso seu nome: o Liceu. Na tarefa da conciliação, a luz da razão é, em Aristóteles, dominante. E isso quer dizer que, ao fim e ao cabo, é a linguagem que conforma o mundo.
A obra de Aristóteles é colossal. Não tanto pela extensão e variedade de temas do conjunto de textos que nos chegou (e eles são vastos e versam sobre quase todos os campos da ciência), quanto pela influência que exerceu no ocidente. Agradaria a seu autor, imagino, pensar que tal influência se tenha devido não a ter sido ele a escrever a obra, mas à verdade que ela encerra. Uma verdade meditada, mas nunca fora do alcance das evidências do mundo sensível. Tempero que parece ter lugar cativo no gosto dos homens, para os quais a realidade é algo demasiadamente relevante para não lhe serem atentos. Ordenada por Andrônico de Rodes, meio século antes de nossa era, o Corpus Aristotelicum começa pelo básico, mas não pelo simples. Ao iniciante são dados antes de mais nada os instrumentos imprescindíveis para a atividade filosófica, que era entendida simplesmente como atividade de buscar, em qualquer área, o conhecimento. Num tempo como o nosso, no qual a filosofia já pariu tantos rebentos que se apresenta às vezes como um útero ressequido, o esclarecimento tem cabida. Essa parte inicial da obra é o Organon — o que se pode traduzir por “o instrumento” — e dele o primeiro livro é as Categorias. Assim, se o aluno do Liceu seguisse a ordenação do compilador, o que primeiro lhe cairia nas mãos seria o livro cuja tradução é objeto deste comentário. Um livro introdutório, mas em nenhum aspecto trivial. Disso dá testemunho quem quer que dele se aproxime e por isso é providencial que José Veríssimo Teixeira da Mata, o bravo que enfrentou o desafio de produzir uma nova versão do texto aristotélico para o português, tenha acomodado a sua versão da obra entre uma introdução e valiosos comentários. A eles também quero dedicar algumas considerações.
Com José Veríssimo descobri que há outra tradução brasileira das Categorias. Uma de 1965, de Mário Ferreira dos Santos (publicada em São Paulo pela Matese). Dela nunca tive notícia e talvez fosse melhor dizer “havia”, pois seria um milagre se nosso mercado editorial tivesse mantido viva uma publicação vinda à luz há mais de quarenta anos. Mas Veríssimo deixa de mencionar outra, uma tradução portuguesa, difundida entre os estudantes de filosofia, porque barata ao tempo em que era disponível e, claro, porque em português. Essa, da lavra de Pinharanda Gomes (Lisboa: Guimarães Editores, 1985), Veríssimo quem sabe não a mencione porque pouco cuidada, com texto muitas vezes truncado, mas de todos os modos é uma referência e teria gostado de ouvir seus comentários críticos a ela, como também à de Mário. De qualquer modo, vê-se que uma nova tradução de opúsculo tão fundamental para os estudos aristotélicos chega como água em terra seca, pelo que o projeto tem já em si imenso valor e merece efusivo reconhecimento. Tanto mais o merece, quanto de qualidade é o trabalho, que foi feito com esmero e gosto pelas línguas, o grego clássico e o português, além de acadêmica atenção aos estudos aristotélicos atuais. Com as editoras, UFG e Alternativa, que abraçaram o projeto, fica o eventual leitor também em dívida. Que do projeto tenha resultado um livro bem acabado e bem revisado, com a indicação da paginação canônica e em tamanho quase de bolso, nas dimensões e no preço, são outras razões para merecido agradecimento do público ao tradutor e seus editores.
Dito isso, minhas considerações, no que segue, não tiram em nada o mérito do resultado, mas como ele agora pertence a nós, é lícito que possamos contribuir com seu desenvolvimento e êxito. Começo minhas notas críticas pela admissão à obra: a sua introdução. Se o livro visa também, e quem sabe sobretudo, ao público de não-iniciados, a estudantes, e tudo no projeto leva a pensar que sim, falta na introdução uma localização histórica da obra. O que disso há é sumariíssimo e feito tão rapidamente que mal nos damos conta de como fomos confrontados com o fundamental, e difícil, problema da relação entre mundo e linguagem.
A investigação das quatro questões, de cunho claramente filosófico, anunciadas ao início da introdução – a saber: o que são as categorias, o que é a substância, quais as principais funções das categorias nas substanciais e quais os limites da tábua – recebem ao longo dela um tratamento ambíguo. É muito sofisticada para o leitor não-iniciado, mas inconclusiva e demasiadamente rente à literatura para o leitor qualificado. O texto resultante fica, portanto, a meio caminho entre um artigo acadêmico e uma propedêutica. Além disso, a dependência para com o próprio texto das discussões trazidas à baila pelo tradutor leva a pensar que o melhor teria sido tê-la plantado ao final, como um posfácio, reservando para a introdução um texto mais condizente com esse título. Com efeito, uma vez que o leitor tenha lido a tradução e os esclarecedores comentários a ela, situados depois do texto de Aristóteles, o mistério que envolve aquelas questões se ilumina e a leitura da introdução se torna bem mais interessante e menos penosa, pois os termos e o contexto do debate já estão sob o domínio do leitor.
No tocante ao ponto que obseda o tradutor — mas a mim também —, a relação entre mundo e linguagem, sua via de aproximação é muito apropriada, mas dela ele não colhe frutos maduríssimos. Ao invés de munir-se de um jargão tomista ou metafísico, José Veríssimo enfrenta o problema pela via que, segundo me parece, é a melhor, qual seja: a da filosofia da linguagem. Vista a lógica de Aristóteles por este ângulo, seu imbróglio teórico se descortina de imediato. Senão vejamos. As categorias, em tese que Veríssimo esposa, servem ao conhecimento da proposição, núcleo elementar de todo discurso declarativo e, portanto, do próprio lógos. Contudo, se o que cumpre ao amigo da sabedoria é conhecer o mundo, e se seu instrumento para tanto é a linguagem, essa tem de conservar com aquele um comércio estreito. Tão estreito que da análise da linguagem é-se tentado a destilar conhecimentos do mundo, ao mesmo tempo em que dessa análise se exige uma fundamentação ontológica da proposição (Cf. cap. 5 da introdução). A confusão aristotélica entre mundo e linguagem, definitivamente identificada pela lógica contemporânea, fica pois patente. Ao não separar adequadamente uma esfera da outra, dá azo a uma metafísica onerosa, qual seja, o essencialismo. O texto aristotélico dá daquela indistinção inúmeros testemunhos. Em trechos como estes: “das coisas que são, umas são ditas de um sujeito, não estando em um sujeito” (1a20-21); “dizem-se sinônimas as coisas cujo nome é comum” (1a6); e “parônimas são ditas todas as coisas que, diferindo-se de uma outra coisa pela desinência, obtêm a denominação do nome” (1a12-13), fica claro que entre as coisas e sua expressão Aristóteles não estabelece uma distinção rigorosa. E se há razões teóricas, ligadas ao todo de seu sistema e visão ontológica, para que assim proceda, há poucas para que o fato não seja hoje claramente denunciado. José Veríssimo não o faz. Deixa de colher este importante resultado que o desenvolvimento da lógica amadureceu. Nisso vejo a maior deficiência de seu texto introdutório.
A única referência a um texto contemporâneo de lógica é à clássica obra dos Kneale, uma história da lógica, mas nem mesmo isso lhe ajuda a apontar ao leitor uma via de ligação entre Aristóteles e a lógica de hoje. Os avanços da lógica formal, se não corrigiram a silogística aristotélica nos seus resultados dedutivos, propiciaram uma enorme clareza no que tange à sadia separação entre o mundo e a linguagem. (ii) Na falta destas referências, fica o leitor noviço sem qualquer indicação sobre o destino hodierno das discussões anunciadas. Para citar um exemplo, a versão fregeana para a estrutura básica da proposição resolve com elegância a disputa sobre a primazia gramatical ou ontológica das noções lógicas, pois afasta tais noções de ambos os pólos. Enquanto S é p, a forma canônica aristotélica, é demasiadamente gramatical e exige compromissos ontológicos explícitos para a distinção entre o sujeito e o predicado, a idéia de função, Fx, ao usar a variável como eixo do formalismo, escapa tanto dos laços gramaticais, quanto expele para fora da lógica a tarefa de determinar o que pode ser o argumento para uma função, quer dizer, o que pode ocupar o lugar da variável x, e o que pode ocupar a posição de um predicado F qualquer. Com isso, torna-se muito mais fácil separar o que para Aristóteles está entrelaçado: a coisa e sua expressão.
Aristóteles opera com um modelo específico de linguagem. O tipo de modelo que leva a pensar que há um certo isomorfismo entre o mundo e o discurso que o exprime, além de uma relação direta entre esses dois pólos. Esse modelo favorece a uma substancialização dos referentes dos nomes. Tendência que é, por exemplo, clara na passagem seguinte:
Toda substância parece significar algum isto. Em relação às substância primeiras, é incontestavelmente verdadeiro que significam algum isto, pois o que é revelado é individual e numericamente um. Mas, em relação às substância segundas, parece, de modo igual, que significam, pelo esquema de denominação, algum isto, quando alguém diz homem ou animal, mas isso não é verdadeiro, pois significam mais uma qualidade. (1b10-17)
O significado confunde-se com a própria coisa, num modelo muito dependente do “esquema de denominação”. Ainda que se queira defender este modelo, é preciso, antes, explicitá-lo, o que obriga a pelo menos mostrar que ele não é o único. Em torno disso, vale dizer, gira grande parte da discussão conduzida no século XX no âmbito da filosofia da linguagem. Para não ficarmos sem exemplos, a filosofia de Wittgenstein se divide justamente a partir desse ponto.(iii)
Quanto à tradução feita por José Veríssimo, minhas observações são ainda mais laterais. Como meu domínio do grego não passa do alfabeto, não posso julgar a empreita senão pelo resultado. Na comparação com o trabalho de Pinharanda Gomes, que conheço, Veríssimo se sai muito bem. O respeito ao texto original fica evidente nas escolhas que fez, o que de fato aproxima Aristóteles do lusófono sem no entanto desfigurá-lo. Isso eu o comprovo pela comparação com a edição que tenho à mão, a inglesa, de Ackrill, muito celebrada pelo próprio José Veríssimo. O veredito é então que temos, com o trabalho do goiano Veríssimo, um texto útil e confiável para o estudo de Aristóteles, o que não era o caso da tradução lisboeta de Gomes.
Discordo, não obstante, de duas escolhas de tradução feitas por José Veríssimo e rogo a ele, em uma edição futura, uma ainda maior preocupação com a compreensibilidade do texto. Explico-me com respeito aos dois pontos. Com respeito a pelo menos dois termos centrais das Categorias, lógos e ousia, Veríssimo inova problematicamente a meu ver. O primeiro de seus comentários à tradução (p. 121) está dedicado a defender “o enunciado da essência” como uma tradução superior a “definição do ser”. Para o uso de “enunciado” ao invés de “definição” na expressão em tela, ele não oferece uma justificativa. No tocante a isso, penso que a alternativa cria enormes dificuldades ao leitor na medida em que obscurece a relação dessa expressão com uma discussão central na obra de Aristóteles, notadamente, a discussão em torno da definição. Ora, o próprio Veríssimo refere-se a esse tema tipicamente aristotélico usando o termo “definição”, por exemplo, na seguinte passagem de seus comentários: “Pode-se dizer que o tratado Categorias apresenta um conjunto de elementos que, quando articulados, possibilitam a construção de definições” (p. 137, grifo meu). Como deve o leitor ligar esta temática com o texto das Categorias se nele a expressão dá lugar a “enunciado”? Fico, pois, com a tradição e contra José Veríssimo no que tange a esta escolha; assim como fico com ela na tradução da segunda parte da expressão por “ser” e não por “essência”. A opinião dele a respeito do ponto pode bem ter seu valor, mas me parece razão insuficiente. Diz ele:
Optei por essência convicto de que o ser tem uma extensão muito maior do que a essência, a qual encerra no sistema lógico e ontológico funções mais precisamente definidas. É natural que, no contexto do pensamento aristotélico, a ousia, enquanto substância segunda seja entendida como essência. (p.121)
O problema é que a escolha traz para um texto da juventude de Aristóteles uma discussão que se desenvolve ao longo de boa parte de sua obra madura, notadamente na Metafísica. A própria distinção entre substância primeira e segunda é típica apenas das Categorias e disso dá fé o próprio Veríssimo: “Aristóteles apresenta, ainda nesse parágrafo, a substância segunda, que, aliás, só é denominada segunda, nesse tratado. Nos outros textos, aparecerá como essência, espécie ou gênero” (p.144). Ora, por que comprometer a tradução com uma escolha que se ampara no estudo de textos posteriores, e que, de resto, se mantém como tema de investigação entre os especialistas, afastando assim o texto das Categorias das opções tradicionais para a tradução? Uma nota a respeito teria sido mais oportuna e útil ao leitor. Há debate suficiente nos textos aristotélicos em torno dos termos “essência”, “ser” e “substância” para que se agrave ainda mais a questão. No mínimo, a defesa da escolha deveria ter sido muito mais extensa e robusta para ser razoável.
O outro ponto atinente à tradução concerne a sua compreensibilidade. A despeito do ótimo acabamento lingüístico que lhe deu José Veríssimo, há muitos casos em que a compreensão do texto fica comprometida ou é simplesmente impossível. Certamente as dificuldades de verter o grego clássico para uma língua moderna são imensas. Por isso mesmo, a necessidade de lapidação ulterior do texto traduzido não constitui demérito para o tradutor, mas é dever de seu ofício. Deixo abaixo dois exemplos, para os quais uso como termo de comparação o texto de Ackrill, mediante o que espero se possa compreender a que me refiro.
Compare-se, pois, o seguinte trecho:
Das coisas que são, umas são ditas de um sujeito, não estando em um sujeito; por exemplo, homem é dito de sujeito, de um homem individual, não estando em nenhum sujeito. Outras estão em sujeito, não sendo ditas de nenhum sujeito. Digo estar em sujeito aquilo que está em uma coisa não como sua parte, mas que não pode estar fora daquilo em que está. Por exemplo, um certo conhecimento gramatical está em sujeito, na alma, não sendo dito de nenhum sujeito; e uma certa brancura está em sujeito, no corpo — pois todas as cores estão em algum corpo —, mas não é dita de nenhum sujeito. Outras coisas são ditas de sujeito e estão em um sujeito. Por exemplo, o conhecimento estando em um sujeito, na alma, é dito de sujeito, da gramática. Outras nem estão em um sujeito, nem são ditas de sujeito — por exemplo, o homem individual, o cavalo individual —, pois nenhuma das coisas desse tipo está em sujeito, ou é dita de sujeito. E, simplesmente, os indivíduos e o que é numericamente um não são ditos de nenhum sujeito, apesar de nada impedir alguns de estarem em sujeito. Ora, um certo conhecimento gramatical é uma das coisas que estão em sujeito. (1a20 – 1b9)
Com a seguinte versão inglesa:
O uso extensivo de recursos gráficos de pontuação tais como travessões, parênteses, dois pontos, além de letras subdividindo a intrincada listagem apresentada fazem toda a diferença para que o leitor compreenda o duro texto aristotélico. Também ajuda o permanente destaque ao sujeito da frase. Comparando-se as duas versões, deve ficar claro a que me refiro quando rogo ainda maior refinamento e elegância para a tradução de José Veríssimo.
O outro exemplo traz um trecho incompreensível, seguramente por algum deslize na revisão final, mas que também poderia fazer bom uso de recursos de pontuação que, diga-se de passagem, são pouquíssimos na língua grega. Eis o trecho:
Substância é a que é dita, no sentido mais fundamental, primeiro e absoluto, a que não é dita de nenhum sujeito, nem está em algum sujeito, por exemplo, o homem individual e o cavalo individual. (2 a11-14)
E a versão de Ackrill para ele é a seguinte:
A substance — that which is called a substance most strictly, primarily, and most of all — is that which is neither said of a subject nor in a subject, e.g. the individual man or the individual horse. (2 a11-14)
Ademais de ser compreensível, a versão inglesa, novamente mediante recursos de pontuação, nos ajuda a destrinçar o pensamento de Aristóteles. Mesmo que esse tipo de procedimento exija uma maior intervenção do tradutor na obra traduzida, o princípio da clareza sobrepõe-se ao do respeito ao original.
Finalmente, quanto aos comentários à tradução, postados no último terço do pequeno livro, José Veríssimo foi muito feliz. Eles são uma ajuda preciosa e, mesmo quando não têm pretensões filosóficas, servem soberbamente a deslindar problemas dessa natureza pelo simples esclarecimento de termos e pela situação das Categorias frente a outras obras de Aristóteles. Sobre elas, nada tenho a dizer que lhes possam melhorar.
Iniciei estas considerações mencionando a bifurcação dionisíaco-apolínea. A origem das Categorias, tema ainda candente nas disputas filosóficas, é questão que nos reporta àquela bifurcação. O mundo ou a linguagem é o que fornece a elas, às categorias, o fio condutor de seu elenco? A ontologia aristotélica é obra de um colecionador de objetos ou ciência ordenada pela estrutura do lógos, o discurso sobre o mundo? Graças à virtuosa ousadia de José Veríssimo, o leitor lusófono poderá, ele mesmo, enfrentar-se com essas perguntas.
De minha parte, permito-me nesta resenha ainda uma última intromissão nos assuntos que têm mesmo é de ser tratados entre o filósofo, como Aristóteles já foi conhecido, seu tradutor e o leitor. Reitero, então, minha suspeitas de que na conciliação entre mundo e linguagem, é a ela, a linguagem, que Aristóteles entrega o timão. Sua ontologia foi tramada por sua lógica, assim como era Apolo quem estava na vizinhança de seu Liceu.
Referências
ARISTÓTELES. Categorias.
Trad. (introdução, notas e comentários) José Veríssimo Teixeira da Mata. Goiânia: UFG & Alternativa, 2005.
Trad. (prefácio e notas) Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1985.
Trad. J. L. Ackrill. The Complete Works of Aristotle. The Revised Oxford Translation. Ed. J. Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1995. p. 3-25.
LUKASIEWICZ, J. Aristotle's Syllogistic from the Standpoint of Modern Formal Logic, Clarendon Press, Oxford 1951.
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia no espírito da música. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 7-22 (excertos)
¹ Professor da Universidade do Vale dos Sinos (UniSinos), no Rio Grande do Sul.
(ii) Confira-se, a propósito, o excelente livro de Jan Lukasiewicz.
(iii)É verdade que José Veríssimo aventa, em seus comentários à ambigüidade supra referida. Diz ele: “Apesar disso pode-se dizer que persiste certa ambigüidade [entre o campo das coisas existentes e o campo dos termos e elementos da linguagem]. A sua origem e a sua solução estariam numa relação isomórfica entre as coisas e as entidades que expressam. Noutras palavras, as mesmas proporções características das coisas se dariam no plano da linguagem, isto é, dos termos e das articulações desses, que expressariam aquelas.” (p. 122-23). A referência para a observação, entretanto, é Porfírio e não os contemporâneos.
Revista UFG
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