Educaão bilíngue intercultural entre povos indígenas brasileiro
Maria do Socorro Pimentel da Silva¹
Leandro Mendes Rocha²
No Brasil, assim como em outros países das Américas, as minorias étnicas viveram importantes processos de luta política que levaram os Estados nacionais ao reconhecimento de direitos relacionados à preservação de suas culturas e dos seus conhecimentos. Como conseqüência deste fato, nos últimos anos consolidou-se uma mudança profunda no campo da educação escolar. Essa mudança é respaldada por uma legislação que permite aos indígenas desenvolverem propostas educacionais que valorizem suas línguas, suas práticas culturais e seus lugares de pertencimento étnico, ao mesmo tempo em que lhes abrem as portas para novas formas de inserção na sociedade não-indígena brasileira com ênfase em uma cidadania que respeite e integre as diferenças, o outro. É nessa direção que o curso de Licenciatura Intercultural – Formação superior de professores indígenas – em implantação na Universidade Federal de Goiás, se fundamenta. Uma proposta que se apresenta como um espaço político e de debate de questões relevantes para as comunidades indígenas.
Projeto de licenciatura intercultural
Maria do Socorro Pimentel da Silva¹
Leandro Mendes Rocha²
No Brasil, assim como em outros países das Américas, as minorias étnicas viveram importantes processos de luta política que levaram os Estados nacionais ao reconhecimento de direitos relacionados à preservação de suas culturas e dos seus conhecimentos. Como conseqüência deste fato, nos últimos anos consolidou-se uma mudança profunda no campo da educação escolar. Essa mudança é respaldada por uma legislação que permite aos indígenas desenvolverem propostas educacionais que valorizem suas línguas, suas práticas culturais e seus lugares de pertencimento étnico, ao mesmo tempo em que lhes abrem as portas para novas formas de inserção na sociedade não-indígena brasileira com ênfase em uma cidadania que respeite e integre as diferenças, o outro. É nessa direção que o curso de Licenciatura Intercultural – Formação superior de professores indígenas – em implantação na Universidade Federal de Goiás, se fundamenta. Uma proposta que se apresenta como um espaço político e de debate de questões relevantes para as comunidades indígenas.
Projeto de licenciatura intercultural
A elaboração do projeto pedagógico do curso da licenciatura intercultural da Universidade Federal de Goiás contou com a participação de professores e lideranças indígenas dos Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão, que estiveram presentes em seminários realizados na universidade e em reuniões feitas nas suas comunidades. A proposta foi construída de forma coletiva, partindo da experiência com cursos de formação de professores indígenas em nível de magistério em vários Estados brasileiros e com projetos alternativos de revitalização de línguas e culturas indígenas.
Os eixos do referido curso são a Diversidade e a Sustentabilidade, definidos com base na realidade das sociedades indígenas, no reconhecimento da diferença étnica, na situação em que cada comunidade vive e no seu relacionamento com outros povos. Levaram-se em conta tanto os contextos culturais, lingüísticos, políticos e econômicos quanto os relacionamentos cotidianos dessas sociedades com a não-indígena; foram considerados também os projetos político-pedagógicos das escolas indígenas, as políticas lingüísticas adotadas nas aldeias e os programas alternativos de desenvolvimento econômico em andamento nas comunidades e ainda os projetos de futuro desses povos. Priorizaram-se, ainda, as reivindicações das comunidades no que diz respeito à implantação de programas de valorização da cultura como alternativa para o desenvolvimento de projetos econômicos nos quais os jovens possam ser envolvidos.
Os princípios pedagógicos do curso são transdisciplinaridade e interculturalidade, entendidos aqui de forma dialógica, tanto no que se refere à relação entre as diferentes culturas quanto à interação entre as várias áreas do saber. Nesse sentido, as áreas de conhecimento das diferentes ciências estarão relacionadas umas com as outras, sem separar, por exemplo, matemática de geografia, língua de história, literatura de arte, ou seja, nessa concepção a transdisciplinaridade e a interculturalidade acontecerão normalmente. Tampouco estará separado o conhecimento produzido pelos indígenas daqueles considerados universais, a pesquisa dos processos de ensino. Como sabemos, na prática, nosso conhecimento é interligado.
O currículo fundamenta-se em uma política de valorização cultural; na busca de articulação entre teoria e prática; em uma visão transdisciplinar que facilite a integração, em diferentes espaços e projetos, de atividades de ensino, pesquisa e extensão; em uma preocupação com a articulação dos chamados conteúdos específicos e conteúdos pedagógicos; na valorização e promoção da pesquisa em ensino e em desenvolvimento de projetos alternativos de melhoria de vida.
Conceber o currículo assim, ou seja, de modo crítico, produtivo e útil, permite ressaltar seu caráter político e histórico e entender a instituição escola não apenas como um lugar onde se realiza a (re)construção do conhecimento, mas, além disso, como um lugar onde se reflete criticamente acerca das implicações sociais, políticas e econômicas.
O currículo constitui-se de matriz de Formação Básica e de três matrizes de Formação Específica. Estas últimas serão destinadas à especialização dos professores indígenas e lhes oferecerão um leque de opções de estudo. As matrizes de Formação Básica do Professor e as de Formação Específica são compostas de temas referenciais, áreas de conhecimento e temas contextuais. A formação básica do professor terá uma duração de dois anos e a específica, de três.
A matriz formação básica do professor e também as matrizes específicas Ciências da Cultura, Ciências da Natureza e Ciências da Linguagem serão trabalhadas de acordo com os princípios pedagógicos do curso, que concebe interculturalidade e transdisciplinaridade como postura educacional e atitude metodológica. Nesse sentido, vale apenas lembrar aqui algumas inquietações: o que entendemos, de fato, por transdisciplinaridade? Como praticá-la? Muito se fala em multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, mas, embora todos esses conceitos trabalhem com a idéia de integração e de totalidade, é necessário identificar as diferenças conceituais. Em geral a multidisciplinaridade esgota-se nas tentativas de trabalho conjunto, pelos professores, entre disciplinas em que cada uma trata de temas comuns sob sua própria ótica, articulando técnicas de ensino e procedimentos de avaliação. Neste caso, haveria nada mais que uma justaposição de disciplinas.
De acordo com Olga Pombo, há um uso abusivo e caricatural das palavras interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade. Trata-se de conceitos polissêmicos. Tal como a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a transdisciplinaridade têm uma mesma raiz, a disciplina, por sua vez, pode ter, pelo menos, três grandes significados. Disciplina como ramo do saber, como componente curricular e como conjunto de normas ou leis que regulam uma determinada área de conhecimento. Podemos entender disciplina como conhecimento parcial.
A interdisciplinaridade, por outro lado, supõe uma relação entre disciplinas, ou seja, uma interação entre as áreas de conhecimentos, mas seu objetivo permanece dentro do quadro de referência da pesquisa disciplinar. Só quando ultrapassamos essa barreira – finalmente chegando ao ponto de fusão, do desaparecimento da convergência, da necessidade de transcender as fronteiras das disciplinas –, é que entramos no terreno da transdisciplinaridade, ou seja, ultrapassamos os limites que compartimentalizam o conhecimento. Essa visão rompe com a dicotomia entre o sujeito e o objeto de estudo.
A transdisciplinaridade, como o próprio prefixo trans indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina e sua finalidade é compreender o mundo atual, as relações dos povos, das pessoas nesse mundo, o que significa enfrentar uma experiência intercultural.
No campo da educação, a interculturalidade é um processo contínuo nas relações entre teoria e prática, entre conceitos e suas múltiplas significações, oriundas do diálogo entre diferentes padrões culturais de que são portadores os sujeitos que vivenciam o processo educativo.
Isso significa, sempre que possível, criar circunstâncias e mecanismos que favoreçam a compreensão dos próprios fenômenos, promovendo o desenvolvimento de atitudes, hábitos e formas de trabalho de diálogo entre os diferentes; fomentar a prática de um ensino que promova uma integração dos saberes cada vez mais profunda; fomentar uma atitude de curiosidade, de abertura de espírito, gosto pela colaboração, pelo trabalho em comum, pela parceria. Sem interesse real por aquilo que o outro tem para dizer, não se faz transdisciplinaridade, não se realiza uma educação intercultural, que se pauta no respeito à diferença, como afirma Pimentel da Silva.
Só há transdisciplinaridade se somos capazes de partilhar o nosso pequeno domínio do saber, se temos a coragem necessária para abandonar o conforto da nossa linguagem técnica e para nos aventurarmos num domínio que é de todos e de que ninguém é proprietário exclusivo. Não se trata de defender que, com a transdisciplinaridade, seria alcançada uma forma de anular o poder que todo saber implica, mas de acreditar na possibilidade de partilhar o poder que se tem, ou melhor, de desejar partilhá-lo, deixando de ocultar o saber que lhe corresponde, explicitando-o, tornando-o discursivo, dialógico.
Metas do curso de licenciatura intercultural
A meta do curso de licenciatura intercultural é oferecer aos professores indígenas uma formação que lhes permita construir uma proposta educacional de base antropológica, lingüística e de respeito à diferença. Tem por objetivo a transformação da escola das comunidades indígenas, historicamente destinadas à civilização dos índios, em um lugar para o exercício indígena da autonomia. De modo geral, o que há de fato é, de um lado, a discussão do direito que o índio tem a uma educação diferenciada e, de outro, a realidade precária das escolas indígenas, como também a dificuldade em aceitar a especificidade da educação escolar indígena por parte dos órgãos competentes.
Assim, torna-se necessário que, tanto nas matrizes de formação básica quanto nas específicas, o professor indígena possa desenvolver o exercício de problematização teórica referente à educação de modo geral, à educação escolar indígena e às políticas lingüísticas e indigenistas. Isso deve ser encaminhado em estreita sintonia com a prática pedagógica, tanto na elaboração e desenvolvimento de projetos pedagógicos, de regimentos e de calendários escolares, quanto na elaboração de materiais didáticos e definição de metodologias de ensino e também com os projetos das comunidades.
Pretende-se com essa proposta curricular propiciar ao professor indígena uma formação que lhe dê condições para promover qualquer tipo de ensino, seja ele monolíngüe, bilíngüe, ou de qualquer outro tipo, independente da área que ele escolha para se especializar. Isso possibilitará ao professor não ser apenas um especialista, mas um profissional capaz de assessorar sua comunidade, como também lidar com os conhecimentos específicos de forma plural. O importante é que o professor tenha condições de colocar, efetivamente, a escola a serviço de sua comunidade, contribuindo com o desenvolvimento dos projetos de melhoria de vida.
Considerações finais
O entendimento da intercultura pode constituir-se numa forma de dissolução de relações colonialistas, (que se mantêm na escola e na sociedade dita majoritária), possibilitando a dissolução de subalternizações e exclusões.
Para tornar possível esse pensar, sentir, agir plural, que incorpora e articula, ao invés de excluir, é necessário criar espaço para o diálogo. Essa perspectiva supõe a aceitação de lógicas distintas. Nesse sentido, os princípios da interculturalidade e da transdisciplinaridade favorecem, na prática, articulações aparentemente não possíveis. Essa concepção de educação desperta no sujeito atitude de curiosidade, abertura de espírito, gosto pela cooperação, pelo trabalho em parceria. Nessa direção, o sujeito é portador e produtor legítimo de conhecimento.
A diferença básica entre o trabalho disciplinar e o transdisciplinar é que o primeiro se baseia na compartimentalização do saber, e o segundo, na idéia de partilhar o saber.
¹ Professora da Faculdade de Letras da UFG.
² Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da UFG.
Revista UFG
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