quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Francisco Julião - O defensor dos camponeses



O defensor dos camponeses

A saga de Francisco Julião, escritor, político e paladino da reforma agrária

CARLA ARANHA

O ano é 1940, e quem passa pelo centro do Recife, onde fica a maioria dos escritórios e empresas da cidade, mal acredita no que vê. À porta da salinha recém-alugada pelo jovem advogado Francisco Julião Arruda de Paula, de origem ilustre, filho, neto e bisneto de donos de engenho em Pernambuco, batem camponeses maltrapilhos. Ele, porém, não se importa com os olhares de repúdio, uma vez que havia feito uma escolha de vida: aos 25 anos, decidira usar seus conhecimentos para defender os trabalhadores rurais, cuja realidade conhecia muito bem. De advogado, passaria a líder do primeiro movimento pela reforma agrária no país, as Ligas Camponesas, e ganharia notoriedade também como escritor – deixou seis livros de literatura e manifestos em favor dos camponeses.

"Julião teve enorme importância ao despertar a consciência nacional para a reforma agrária", diz Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, cientista político e cônsul honorário do Brasil em Heidelberg, na Alemanha. Exilado nos anos 1960 e esquecido durante muito tempo, agora, dez anos após sua morte, Julião tem seu papel histórico relembrado por meio do relançamento de grande parte de sua obra. O livro Até Quarta, Isabela, que escreveu para sua filha enquanto estava na prisão, em 1964, foi reeditado em 2007 pela Editora Bagaço, e Cambão, a Face Oculta do Brasil, sobre a vida dos camponeses no nordeste, acabou de ser lançado pela primeira vez no Brasil neste ano, pela mesma editora, depois de rodar o mundo, traduzido para vários idiomas.

As Ligas Camponesas não podiam ter escolhido líder melhor – afinal, Francisco Julião conhecia como poucos o dia a dia do homem do campo. Nascido na fazenda Boa Esperança, na cidade de Bom Jardim, a 110 quilômetros do Recife, ele cresceu junto com os filhos dos trabalhadores rurais, e desde cedo percebeu as injustiças sofridas por aquela gente. Aos 13 anos, foi estudar num colégio interno no Recife, e aos 18 entrou na faculdade de direito. Formado em 1939, no ano seguinte abriu um escritório voltado para a defesa do camponês. Por quase toda a vida ele se viu obrigado a pagar um preço por essa opção. Mais tarde, nos anos 1960, a pecha de revolucionário e agitador do campo lhe valeria um exílio de 15 anos. Ainda moço, na década de 1940, seu grande problema era honrar o aluguel da casa onde morava no Recife. Os clientes, pessoas de poucos recursos, muitas vezes não tinham como pagar-lhe. Casado em 1943 com Alexina Crespo, uma pernambucana de origem simples que compartilhava seus ideais, teve com ela quatro filhos, e precisava se desdobrar para fazer frente à mensalidade da escola das crianças e às despesas da casa. "Às vezes ficávamos até cinco meses sem conseguir pagar o aluguel, mas tudo acabava bem porque o dono do imóvel gostava de Julião", conta a filha Anatailde Julião.

A vida no país se modificava, e os novos ares em breve iriam bater à porta de Julião. O Brasil havia passado os últimos anos mergulhado em uma ditadura, o Estado Novo (1937-1945), sob o comando de Getúlio Vargas, um período difícil. Além de suspender os direitos civis e fechar o Congresso, o governo também colocou na ilegalidade a Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização que, entre outras coisas, defendia a reforma agrária. O país recupera a liberdade no final de 1945, quando Vargas é derrubado e em seu lugar assume a presidência, em 1946, por meio de eleições diretas, Eurico Gaspar Dutra. A volta da democracia repercute concretamente inclusive no meio rural. No final da década de 1940, os camponeses já começam a se organizar em pequenas associações para ter maior força política.

Francisco Julião ganha popularidade em Pernambuco por seu papel junto aos trabalhadores rurais. Cresce também sua fama como escritor – um de seus livros, Cachaça, de contos, publicado em 1951, ganha um prefácio de Gilberto Freyre, o célebre autor de Casa-Grande & Senzala. Com aspirações políticas, Julião ingressa no Partido Socialista Brasileiro (PSB), candidata-se a deputado estadual em Pernambuco em 1954 e é eleito. No ano seguinte nasce a primeira associação camponesa de Pernambuco, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (Sappp) – que logo começa a causar barulho.

A entidade era formada por parte das cerca de 140 famílias que trabalhavam nos 500 hectares de terra do Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, a 51 quilômetros do Recife, que acabaria se transformando num marco da reforma agrária no Brasil. Criada por meio de um acordo com o dono do engenho, Oscar de Arruda Beltrão, a Sappp tinha o objetivo de promover melhorias em saúde e educação na fazenda. O filho de Beltrão, no entanto, temendo que os camponeses unidos pudessem lhe causar problemas, quis desfazer a associação. Os trabalhadores rurais foram então procurar Julião para defendê-los na Justiça. Ele não só aceitou como conseguiu, para surpresa geral, que os 500 hectares do engenho fossem legalmente desapropriados e passassem às mãos dos camponeses. Nascia naquele momento um dos mais importantes líderes populares do Brasil, capaz de reunir desde homens de Estado (como Fidel Castro, Mao Tsé-tung e Salvador Allende) a estudantes e escritores ao redor de sua figura – que, por sinal, não tinha nada de especial: franzino, com 1,66 metro de altura, ele se achava parecido com Charles Chaplin, a quem gostava de imitar nos momentos de intimidade.

Com a conclusão do processo de desapropriação do engenho, em 1959, os camponeses do Galileia ganham as páginas dos jornais. O movimento passa a ser conhecido como Ligas Camponesas e começa a se estender para outros estados, com o surgimento de núcleos na Paraíba, no Paraná e no Rio de Janeiro.

Julião continua a defender a distribuição de terras e recebe o apoio do voto popular: em 1958 é reeleito deputado estadual pelo PSB. O movimento que lidera havia crescido, conquistando projeção internacional. Em uma época de discursos inflamados e revoluções (ver texto abaixo), as Ligas Camponesas chamam a atenção de líderes como Fidel Castro e Mao Tsé-tung, que têm encontros pessoais com Julião e membros de sua família. A repercussão chega também aos Estados Unidos, graças a uma série de reportagens feitas pelo correspondente do "New York Times" no Brasil, e desperta preocupação no governo americano. O presidente John Kennedy envia seu irmão Edward a Pernambuco para ver de perto o que andam fazendo os camponeses. Em 1961, o Engenho Galileia recebe a visita de Edward Kennedy, que conversa com os moradores locais e chega a lhes enviar de presente um gerador, já que o local não tinha energia elétrica.

Nos bastidores, no entanto, os Estados Unidos mostram inquietação com as atividades de Julião e dos camponeses nordestinos. O serviço de inteligência americano, a CIA, e a embaixada do Reino Unido elaboram comunicados secretos para alertar sobre o "perigo" representado pelas Ligas Camponesas. "O PCB, o PCdoB e as Ligas Camponesas são as principais forças subversivas do nordeste", diz um despacho do embaixador britânico Leslie Fry enviado ao governo inglês em 24 de fevereiro de 1964. Ele também comenta que "o senhor Julião defende a luta armada". Nessa mesma linha, já em 2 de julho de 1963, um relatório da CIA dizia que "as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião, receberam a bênção de Fidel Castro". Para o cientista americano Anthony Pereira, especialista em questões agrárias do nordeste, os Estados Unidos temiam que houvesse uma revolução nessa região do país. "A liderança de Julião no nordeste e a influência das Ligas Camponesas determinaram grande parte da política externa americana naquela época", diz ele.

Os temores dos Estados Unidos até poderiam ser um pouco exagerados, mas tinham algum fundamento. Julião e sua mulher, Alexina, mantinham de fato contato com Fidel. Mais radical que o marido, Alexina dizia inclusive que a reforma agrária só se faria "na marra". Além disso, a ala mais à esquerda das Ligas Camponesas havia mesmo aderido à luta armada. O movimento foi o primeiro a adotar a guerrilha no Brasil, entre 1961 e 1962. Alexina chegou a ir à China para pedir armas a Mao Tsé-tung e fez treinamento militar em Cuba, acompanhada por outros esquerdistas brasileiros. Os cubanos também teriam ajudado financeiramente a organização. "A ideia era trazer o comunismo para o Brasil", conta sua filha Anatailde.

Ruptura

Julião, no entanto, continuava apostando, ao menos aparentemente, na democracia para mudar a estrutura fundiária do país. Em 1962, ele é eleito deputado federal (sempre pelo PSB). Na mesma época, sua mulher começa a treinar grupos guerrilheiros no Brasil. As ações, secretas, aconteciam em Goiás e no Rio de Janeiro. Os fazendeiros, a direita e o governo, no entanto, logo se deram conta do que se passava. Teve início, então, um processo de investigação sobre membros da ala guerrilheira das Ligas Camponesas, e um deles, Clodomir Morais, chegou a ser preso em 1962. Temeroso do que pudesse acontecer a seus quatro filhos, Julião decide mandar todos para fora do Brasil nesse período. Anatailde e Anatilde passam uma temporada estudando na então União Soviética e os dois meninos, Anatólio – hoje sociólogo – e Anacleto, que mais Negritotarde se tornaria antropólogo, vão para Cuba.

O Brasil vivia tempos conturbados. O presidente João Goulart lançava as chamadas reformas de base, que propunham uma série de mudanças na economia – com medidas como a restrição da remessa de lucros das multinacionais aos países de origem, por exemplo –, na educação, na saúde e também na questão da terra. Havia, inclusive, uma proposta de reforma agrária. Francisco Julião, porém, não compactuou com as ideias do presidente. "A postura de Julião em relação ao governo Goulart foi equivocada, como, de resto, a de quase toda a esquerda, que se radicalizou, sem perceber que isso acarretaria um golpe de Estado, que não tinha como ser enfrentado", diz o cientista político Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira no livro Francisco Julião, as Ligas e o Golpe Militar de 1964, de Vandeck Santiago.

No final de março de 1964 vem o golpe militar, e vários políticos são cassados, inclusive Julião. Ele é um dos poucos líderes esquerdistas que decidem permanecer no Brasil em vez de sair imediatamente do país. Alexina só escapou de ser presa porque estava em Cuba, visitando os filhos. Consciente de que seu pescoço estava a prêmio, Julião se esconde em um casebre no interior de Goiás. Mesmo assim, é descoberto e acaba preso. A liberdade só chegaria um ano e meio depois, quando o advogado Sobral Pinto, seu defensor, finalmente consegue um habeas corpus. Em seu período de cárcere, Julião escreve um de seus mais conhecidos livros, Até Quarta, Isabela (ver texto abaixo), uma longa carta de amor para a filha recém-nascida.

De volta às ruas, mas sem saber para onde ir e o que fazer, o líder dos camponeses sente na pele as consequências da radicalização dos anos de chumbo e percebe que, naquele momento, não há mais lugar para ele no Brasil. Julião ainda procura o Partido Comunista e a Ação Popular, grupo de guerrilha, em busca de proteção, mas a resposta é sempre a mesma: nada podem fazer, ele terá de se virar sozinho. Ficar no país, sem contar com qualquer tipo de ajuda, poderia significar a volta ao cárcere. Julião decide bater à porta de várias embaixadas, procurando asilo político, até ser aceito pela do México. Ele, então, se despede do Brasil. Já separado de Alexina, leva consigo a nova companheira, mãe de Izabela (cuja grafia Julião errara ao escrever seu famoso livro), a carioca Regina de Castro, que havia trabalhado em Pernambuco com as Ligas Camponesas.

Pouco depois Regina volta ao Brasil trazendo a filha. Julião conhece então a mexicana Marta Rosas, com quem passa a viver. No México, ele se mantém dando palestras e escrevendo artigos para revistas. Suas condições, porém, são precárias: ele mal tem dinheiro para comprar comida. O amigo Salvador Allende vai visitá-lo e chega a colocar US$ 1.000 no bolso de seu casaco. "Ele percebeu o que meu pai estava passando e quis ajudar", conta Anatailde. Em 1979, com a anistia, Francisco Julião volta ao Brasil, mas nunca mais conseguiria recuperar sua aura de líder popular.

Em 1986, ensaia uma polêmica volta à vida pública, tentando eleger-se deputado federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), numa união com o usineiro José Múcio Monteiro, na época no Partido da Frente Liberal (PFL), que disputava o governo de Pernambuco. Por trás da aliança inusitada estava a vontade de finalmente promover alguma distribuição de terras no nordeste, mas ninguém entendeu a opção de Julião, que teve apenas 4 mil votos, insuficientes para se eleger, e sofreu sérias críticas da esquerda – nem seus filhos votaram nele.

Desiludido, resolve deixar a política e nunca mais disputa uma eleição. Em seu último artigo para a imprensa, "As Utopias de um Homem Desarmado", publicado em 14 de dezembro de 1986 no Diário de Pernambuco, diz: "Saio dessa peleja como entrei: pobre. [...]. Não sou um político clássico. Muito menos um faiscador de votos. [...]. Não pedi votos. Deram-me. Votos de consciência, de amizade, de qualidade. Pus à prova a minha insignificância. Dei um golpe de misericórdia no meu mito".


De volta ao México, ele morre, aos 84 anos, de ataque cardíaco, em 10 de julho de 1999, ao lado da mulher, Marta Rosas, que guarda a sete chaves até hoje os originais de um livro de memórias que Francisco Julião acabara de escrever. "Ele terminou a vida pobre e é o único exilado político que permanece fora do Brasil, já que seu corpo ficou no México", diz Anatólio Julião.




Uma carta de amor


Pouco tempo depois do golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil, Francisco Julião vai para a prisão. Izabela, a filha que havia tido com sua segunda mulher, Regina, tem apenas dois meses, e Julião teme não voltar a vê-la nunca mais. Ele não sabe quanto tempo ficará preso nem se sairá vivo. Com papel "comprado" de um guarda da cadeia, Julião escreve uma longa carta à filha, que depois é publicada em livro. Veja, a seguir, um trecho de Até Quarta, Isabela:

"Esta é uma carta de amor, somente de amor, que te escrevo do cárcere, na esperança de que um dia, daqui a dez anos, já possas lê-la [...]. Nela não encontrarás uma só gota de ódio ou de amargura. É uma carta de amor, somente de amor [...], desse amor todo feito de oferta e renúncia, de dádiva e de humildade.
Falarei, assim, do amor que me une a ti e me une à humanidade. [...]. Por isso falarei de mim também, das minhas reminiscências, dos meus sonhos, dos meus voos, das minhas quedas, dos meus encontros, das minhas fugas [...].
Irás colher ao longo da vida muitas definições e conhecer muitos caminhos. Cabe a ti, como coube a mim, a iniciativa de buscar a definição e encontrar o caminho. Só não deves te perder dentro de ti mesma como a árvore que permanece solitária no deserto. Ou te fechares em ti como a concha no fundo do mar. [...].
Embora haja quem se conduza como essa árvore e essa concha, somos mais do que isso".


O mundo pega fogo

Uma série de revoluções eclodiram pelo mundo a partir do final dos anos 1940, influenciando o pensamento político da época. Veja, a seguir, uma cronologia dos principais movimentos revolucionários das décadas mais efervescentes do século passado:
1949: proclamada a República Popular da China, após duas décadas de luta armada no país. O novo regime, comunista, adota o modelo soviético de desenvolvimento e faz uma ampla reforma agrária.
1954-1962: acontece a guerra pela independência da Argélia, então colônia da França, que entra para a história como um dos maiores movimentos de libertação nacional do século 20.
1958-1959: Revolução Cubana. Com a derrubada, em 1º de janeiro de 1959, do ditador Fulgêncio Batista, Fidel Castro sobe ao poder. Che Guevara integra o governo cubano por seis anos, até 1965, quando deixa Cuba para participar de revoluções na África e na América Latina.
1960: é a vez do Congo, na África, lutar pela independência da Bélgica, país do qual era colônia desde 1885.
1964: começa a guerra civil em Moçambique, que dura dez anos.
1965: início da participação americana na Guerra do Vietnã. O conflito teve origem em 1957, quando o sul capitalista e o norte comunista entraram em choque, dividindo o país. A fim de barrar o avanço do comunismo, os Estados Unidos enviam tropas para lutar contra os exércitos do norte, retirando-se da região somente em 1975.

Revista Problemas Brasileiros

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