Um leitor especial
Livro que reúne textos do historiador Sérgio Buarque de Holanda revela um grande crítico literário
JOSÉ GERALDO COUTO
O espírito e a letra (Companhia das Letras, dois volumes, total de 1.088 páginas), que reúne as críticas literárias publicadas na imprensa por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), é um livro precioso sob vários aspectos.
Os discípulos ou admiradores da obra do crítico e historiador lerão esses dois volumes como um extenso e rico registro de quatro décadas de vigorosa militância intelectual. Os estudiosos ou curiosos da literatura brasileira moderna encontrarão neles um compêndio de quase tudo o que de importante surgiu no setor entre 1920 e 1959. Por fim, os interessados na própria crítica literária como disciplina específica, terão ali um exercício incessante de reflexão sobre as relações entre texto e contexto, ou, em outras palavras, entre forma e história.
Pois Sérgio Buarque – um dos maiores historiadores que o Brasil já teve, autor de clássicos como Raízes do Brasil e Visão do paraíso – nunca se deixou seduzir pelo canto da sereia da crítica exclusivamente formal, nem recaiu no erro oposto, de considerar o texto literário apenas como "reflexo" ou "sintoma" de uma determinada configuração social e histórica.
Dono de uma erudição quase inverossímil e de um aparato crítico invulgar, empenhou-se desde o início de sua atividade profissional, aos 18 anos, em articular a análise da obra literária, em todas as suas especificidades formais, com o estudo de sua inserção em contextos progressivamente mais amplos: a história literária, a história da cultura e a história humana em geral.
A organização do livro em ordem cronológica – o primeiro volume reúne textos de 1920 a 1947; o segundo, de 1948 a 1959 – permite acompanhar a formação e o aperfeiçoamento do método crítico de Sérgio Buarque, bem como a evolução de seu próprio estilo como escritor. Permite também constatar seu engajamento como aliado do movimento modernista em sua tentativa de se impor e se legitimar no cenário cultural brasileiro.
Por diversas razões, o segundo volume, que é o mais extenso (679 páginas), é também o mais rico e interessante. Primeiro, porque nele aparecem, analisadas pioneira e agudamente, obras de autores mais próximos do leitor de hoje, e de influência marcante na literatura atual. Segundo, porque o estilo de Sérgio Buarque encontra-se ali plenamente desenvolvido e depurado, atingindo um ponto ideal de equilíbrio entre clareza, concisão e profundidade.
As primeiras críticas profissionais de Sérgio Buarque, publicadas em 1920 em jornais como "Correio Paulistano" e revistas como "A Cigarra" e "Revista do Brasil", impressionam pela erudição do jovem autor. Aos 18 ou 19 anos, ele já discorria com desenvoltura não só sobre a obra de um Goethe como também sobre traduções desta em várias línguas. Há até um certo pedantismo nessas primeiras intervenções do crítico, então muito preocupado na definição de um caráter nacional para a literatura feita em nosso país. Alguns desses primeiros textos soam algo distantes para o leitor atual, sobretudo por tratarem freqüentemente de obras e autores que não vingaram, e hoje jazem na obscuridade (Marinella Peixoto, Marques da Cruz, o colombiano Vargas Vila etc.).
O livro ganha interesse quando registra o advento do movimento modernista de 22, ao qual Sérgio Buarque aderiu na primeira hora – na verdade até antes, pois em dezembro de 1921 ele já saudava, na revista "Fon-Fon", o "futurismo paulista". Ao encontrar sua "turma", o crítico parece se encaminhar rapidamente para a superação de um certo desconforto diante de nossa incipiência literária, vista até então pelos padrões europeus. A atitude modernista, ao mesmo tempo cosmopolita e extremamente atenta às coisas do Brasil, dá a Sérgio Buarque uma espécie de bússola pela qual se guiará daí em diante.
Embora continue sintonizado com tudo o que de mais importante ocorre no cenário internacional (tanto europeu como norte-americano), o crítico e historiador passa a dedicar o melhor de sua atenção à produção dos modernistas brasileiros e seus agregados (Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, o romance nordestino dos anos 30 etc.).
Uma das maneiras mais estimulantes de ler O Espírito e a Letra pode ser, justamente, observar como Sérgio Buarque abordou, ao longo de 40 anos, todos os movimentos e autores importantes que surgiam: o modernismo da "fase heróica", o romance social de 30 (Graciliano Ramos, Jorge Amado, Lins do Rego), a "geração de 45", João Cabral de Melo Neto, a poesia concreta.
O que impressiona, nesse recorte, é a absoluta abertura de espírito do crítico a tudo o que pudesse trazer algo de novo e enriquecedor à sensibilidade humana, ao mesmo tempo em que seu vasto conhecimento da história literária e cultural permitia-lhe relacionar imediatamente as novas tendências ou autores às mais variadas linhagens e tradições.
Nesse sentido, é exemplar um texto como "Ritmo e Compasso" ("Diário Carioca", 1951), em que Sérgio Buarque analisa o primeiro livro de Décio Pignatari, Carrossel, e o relaciona com a poesia de Haroldo de Campos, que seria nos anos seguintes companheiro daquele no movimento concretista. Na época, à falta de termo melhor, o crítico usa o rótulo então em voga, "pós-modernista", para qualificar a obra dos dois autores. Mas não deixa de notar, já nesse texto pioneiro, a diferença profunda entre a poesia de Haroldo, "de depuração das formas tranquilas", e a de Décio, "uma poesia da mobilidade".
Outro roteiro fecundo de leitura – já que este livro-manancial pode ser percorrido de várias maneiras, além da linear – é acompanhar os temas desenvolvidos pelo autor em séries articuladas de ensaios. "O sentido universal da literatura francesa", por exemplo, merece dois penetrantes artigos publicados no "Diário de Notícias" do Rio de Janeiro em 1949. As relações entre linguagem poética e linguagem científica geraram em 1951 uma polêmica de alto nível entre Euríolo Canabrava e Sérgio Buarque, que publicou uma série de quatro artigos sobre o tema, sob o título "Poesia e positivismo", no "Diário Carioca".
Um exemplo cabal, entre tantos outros, da percuciência crítica e do poder de síntese de Sérgio Buarque de Holanda são os dois artigos que dedicou a Carlos Drummond de Andrade – um de seus poetas preferidos, ao lado de Bandeira – no "Diário Carioca" em 1952, sob o título "O Mineiro Drummond". Lendo-os, temos uma exposição sucinta das relações entre a paisagem mineira e o temperamento poético do escritor de Itabira, e um estudo de como esse temperamento se traduziu num determinado estilo de composição.
É impressionante notar como Sérgio Buarque de Holanda alcançava, em breves textos de jornal, um grau de elaboração crítica raramente atingido hoje mesmo em estudos universitários especializados – o que pode ser visto como um sinal de como decaiu a imprensa literária e de como se deterioraram os estudos acadêmicos de letras.
Pela extensão de seu aparato crítico e pela abrangência de seus interesses (história, literatura, antropologia, sociologia, arte, filosofia), Sérgio Buarque de Holanda foi um intelectual de estatura só comparável à de um Mário de Andrade, que aliás serviu-lhe como uma espécie de mestre e exemplo inspirador.
Estes dois volumes, organizados com dedicação e competência por Antonio Arnoni Prado (autor de introdução e notas úteis e esclarecedoras), são um testemunho inquestionável do gênio crítico do autor. No campo da crítica literária, vêm-se juntar a outra obra fundamental de Sérgio Buarque, Capítulos de literatura colonial, organizada por Antonio Candido e publicada pela Brasiliense em 1991. Colocados lado a lado com a obra historiográfica do autor (que foi também criador e coordenador da monumental coleção História geral da civilização brasileira), esses volumes de crítica revelam uma rara inteligência em plena ação.
Revista Problemas Brasileiros
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