terça-feira, 15 de setembro de 2009

A fé não costuma falhar


A fé não costuma falhar
De norte a sul do país, os ex-votos continuam dando testemunho de milagres e renovando a crença dos brasileiros
Juliana Barreto Farias

Quando a Quarta-feira de Cinzas chegar, no final deste mês, os moradores de São Cristóvão, em Sergipe, já estarão contando os dias para outra comemoração. No segundo fim de semana da Quaresma (que se encerra na Páscoa), milhares de sergipanos tomam as ruas, calçadas e praças da cidade para acompanhar a procissão do Senhor dos Passos. Muitos seguem de pés descalços, com túnicas roxas sobre o corpo e coroas de espinhos na cabeça. E ainda carregam pernas e braços de madeira, muletas, provas escolares, fotografias e outros objetos como forma de retribuição por graças alcançadas. Depois de três horas de caminhada, depositam seus ex-votos na Igreja do Carmo ou em algum cruzeiro.

As festas para os santos padroeiros e as romarias são as ocasiões preferidas pelos fiéis para pagar suas promessas e colocar seus ex-votos nos santuários religiosos. Mas essas manifestações não se restringem aos dias santos. “A cada missa, festa, visita ao santuário, cemitério ou cruzeiro, a tradição está lá”, destaca José Cláudio Alves de Oliveira, professor do Departamento de Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do projeto “Ex-votos do Brasil”. Hoje, os principais centros de peregrinação estão em São Paulo, no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Juazeiro do Norte, no Ceará, e em Bom Jesus da Lapa, na Bahia.

Durante essas trilhas de fé, crianças, jovens, idosos, casais, mulheres com bebês de colo e quem mais se junta aos cortejos cantam louvores, rezam, oferecem objetos aos santos e terminam o percurso fazendo a “desobriga” (ou colocação) de seus ex-votos nas salas de milagres das igrejas. Nesses espaços sagrados, as peças oferecidas em cumprimento a um voto se espalham por toda parte. A maioria das salas tem aspectos bem semelhantes. O que mais se vê são pernas, braços e outras partes do corpo humano reproduzidos em cera ou madeira e pendurados no teto. Nas paredes, fotografias, pequenos quadros e crucifixos. No ar, um forte cheiro de vela queimada. No meio de tudo isso, muitos pagadores de promessas e visitantes.

No maior santuário brasileiro, localizado na cidade paulista de Aparecida, a Sala de Promessas é o segundo local mais visitado, só perdendo para a imagem de Nossa Senhora. A cada mês são depositados ali cerca de 18 mil ex-votos. Sua história é tão antiga quanto o próprio complexo religioso. Nos primeiros tempos, os romeiros deixavam seus ex-votos nas paredes e no altar da Capelinha de Itaguaçu. Como o número de fiéis só fazia crescer, uma igreja maior foi inaugurada em 1745 (é a atual Basílica Velha), e os promesseiros continuaram retribuindo suas graças no interior do templo. Alguns desenhos de milagres feitos no século XIX pelo pintor alemão Thomas Driendl ainda podem ser vistos perto do teto da nave central da antiga ermida. São imagens de velas, do escravo Zacarias, da Ceguinha, do Cavaleiro Abusado e do Marcelino se afogando. Mas também essa igreja acabou ficando pequena para tantos objetos, e outra começou a ser erguida em 1955. Na nova morada, os ex-votos ganharam um local especial no subsolo.

Agora, quem visita a sala de milagres de Aparecida se depara com uma infinidade de peças, que vão desde coroas valiosas e mantos ricamente ornamentados até fotografias, flores e mensagens, como a deixada pelo casal de bóias-frias de Apiaí, em São Paulo, que se mostra grato a Nossa Senhora pela recuperação de seu filho. No relato oferecido à Virgem, lembram que, aos seis meses, o menino havia sido “desenganado pelos médicos. Foi internado, mas tratamento e remédios de nada valeram. O médico nos aconselhou a levá-lo para casa para lá morrer. Naquela aflição invoquei Nossa Senhora Aparecida com toda fé. Hoje ele está com sete anos e boa saúde”.

Os motivos de agradecimento que levam os devotos a esses centros religiosos são vários: a cura de alguma doença, a conquista de um amor, a compra da casa própria, a aprovação no vestibular. E os milagres também acompanham as transformações sociais e tecnológicas: “Há ex-votos que representam acidentes de automóvel, o que mostra como eles continuam a testemunhar a crença no milagre e como os santos assumem novas funções no cotidiano. Se no século XVIII se abençoavam animais, atualmente há bênçãos de veículos”, lembra Jean Luiz Neves Abreu, professor da Univale/MG e autor de uma dissertação sobre os ex-votos mineiros no século XVIII.

Mudam os pedidos, mudam também os suportes e as narrativas. Em cidades do Nordeste, como Canindé, no Ceará, e Bom Jesus da Lapa e Ituaçu, na Bahia, ainda é possível encontrar muitos “fazedores de cartas”, profissionais que registram as histórias para os pagadores de promessas. Mas quase ninguém mais escreve os textos à mão. Os relatos são agora datilografados ou impressos no computador. Outra figura que se torna cada dia mais rara é a do “riscador de milagres”, artista que descreve as cenas milagrosas em pequenas telas. “Hoje, no Brasil, só podemos achar pintores em Matosinhos (MG) e Aparecida (SP)”, conta José Cláudio Oliveira. Isso porque os ex-votos pictóricos há muito foram substituídos pelas fotografias. “Antes, numa tábua votiva, descrevia-se o doente num leito, sendo visitado e salvo pelo santo, e logo abaixo da pintura vinha a legenda relatando o milagre. Com a foto, vemos apenas o enfermo no leito. Há exemplos em que se mostra o antes e o depois. Porém, o imaginário da aparição do santo não existe mais, é notável apenas nos raros ex-votos pintados”, completa o professor da UFBA.

Dispostos nos santuários católicos, boa parte desses objetos constitui verdadeiros museus. Só que um tanto diferentes dos “tradicionais”. Para começar, o crente-visitante tem uma relação direta e afetiva com as peças exibidas. No museu instalado na Ordem Terceira do Carmo, em São Cristóvão (SE), volta e meia os devotos retornam para “visitar” seu ex-voto. “Num gesto de reafirmação de fé, querem ver o milagre que foi vivido e de novo agradecer ao Senhor dos Passos. Presenciei um senhor de 65 anos que veio com a esposa para rever seu ex-voto: um volante de caminhão esculpido em madeira que ele teria trazido há alguns anos. Estavam visivelmente emocionados”, conta a artista plástica Lúcia Maria Pereira, responsável pela reorganização, no ano passado, de toda a coleção do museu sergipano. Em Juazeiro do Norte (CE) há, inclusive, indícios de um comércio – ou, pelo menos, uma circulação em forma de empréstimo – das peças colocadas no museu do padre Cícero. Segundo Marcelo Sabattini, doutor em Teoria e História da Comunicação, que fez pesquisas sobre museus e centros virtuais, essa prática permite que os “menos favorecidos economicamente” também consigam, ao adquiri-las, agradecer os benefícios alcançados.

Em geral, esses espaços nascem a partir das salas de milagres e são continuamente “alimentados” por elas. Iniciam-se com os ex-votos mais chamativos, aqueles que têm maior expressividade, seja no formato, na história ou até mesmo na “nobreza” da pessoa envolvida, como o capacete de Ayrton Senna, em Aparecida, e a fotografia de Antônio Carlos Magalhães, no Bonfim. Em São Cristóvão, os objetos votivos deixados pelos romeiros no claustro da Ordem Terceira durante a procissão dos Passos deram origem ao museu instalado ali no primeiro dia de 1990. A coleção era formada basicamente por reproduções de membros do corpo humano. Mas outras peças bem particulares também se destacavam no acervo, como os feixes de madeira carregados na cabeça durante a procissão, que representavam o número de telhas colocados no telhado da casa ou a quantidade de tarefas de terras adquiridas. Cabelos humanos doados como ex-votos depois serviam para refazer as perucas usadas nas imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Soledade.

No catálogo inaugural, Eliane Fonseca Carvalho, idealizadora do espaço, afirmava que o objetivo maior do museu era “a preservação dessas relíquias, fruto de mais de um século de fé e devoção. O desvio constante por colecionadores e turistas e a queima indiscriminada, em razão do excesso de material no recinto, deixava-nos inquietos e impotentes para preservá-las”. Os riscos à conservação não paravam aí. Desde o início, os ex-votos feitos em madeira ficavam pendurados em frágeis argolas e pregos presos no telhado do claustro. Com o tempo, esse material se oxidou, e em 2006 uma das peças despencou e atingiu a cabeça de uma funcionária. O acidente confirmou que era o momento de fazer reparos. Os ex-votos foram retirados e armazenados em outro local. No ano passado, as obras de restauração e reestruturação – feitas sob a supervisão do Iphan – foram concluídas e o lugar, reaberto ao público. “Durante o tempo em que realizava e coordenava essas atividades, recebi uma inspiração no tabernáculo: estudar estes ‘milagres’ materializados pela fé dos romeiros”, revela Lúcia Maria Pereira. Desde então ela vem se dedicando à família carmelita e prepara sua dissertação de mestrado sobre as relações entre o rico acervo do museu de São Cristóvão e as formas populares de cura.

Prova de que a fé dos brasileiros não pára de se renovar e os ex-votos continuam testemunhando milagres. Quando se trata de devoção, as fronteiras sociais desaparecem. “A tradição ex-votiva independe da classe. Encontramos entre os objetos ofertados diplomas de prefeitos, bacharéis, licenciados, doutores... É evidente que, como se trata de uma tradição popular, a maior parte das peças vem de pessoas menos favorecidas, mais simples. Porém, numa sala de milagres, todas as classes estão difundidas”, diz o professor José Cláudio Oliveira.

Atualmente, até mesmo as barreiras físicas começam a ser superadas. Os fiéis que não têm condições de viajar até o Santuário de Aparecida podem pagar suas promessas e pedir novas graças via Internet. No site da basílica, eles acendem suas velas virtuais e acompanham durante sete dias a progressiva “combustão”. E o fenômeno se espalha por outros templos. “É uma inversão curiosa do costume que praticamente assegurou a disseminação do cristianismo na Europa. A peregrinação é substituída por uma abstração da experiência religiosa, já que as velas, os fósforos e a chama são trocados por representações gráficas e aplicativos. São inovações que acontecem tanto por iniciativa dos fiéis como da própria Igreja Católica, que incentiva o exercício midiatizado da fé”, explica Evandro Bonfim, jornalista que prepara tese de Antropologia Social, no Museu Nacional da UFRJ, sobre o uso das novas tecnologias no catolicismo.

Juliana Barreto Farias

Saiba Mais - Bibliografia:

SILVA, Maria A. Machado da. Ex-votos e orantes no Brasil. Rio de Janeiro: MHC/MEC, 1987.

VALADARES, Clarival do Prado. Riscadores de milagres: um estudo sobre arte genuína. Rio de Janeiro: SDC/SE, 1967.

Saiba Mais - Sites:

Projeto Ex-votos do Brasil
http://ex-votosdobrasil.blogspot.com/

Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida
http://www.santuarionacional.com/v2/index.php

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Um comentário:

nina rizzi disse...

adoro este artigo. e mais anda os modos que os negros encontravam de resistir à opressão.

aliás, o blogue todo é muito belo. parabéns :)

hoje tenho uma postagem sobre a rússia, veja se gosta ;)

beijo.