por Pascal Marchetti-Leca
O pintor, em seu estúdio, de Vallarius, na França (1948)
O recém-nascido não respira. No dia 25 de outubro de 1881, em Málaga, Maria Picasso y Lopez dá à luz um menino de coração preguiçoso. A parteira mal pode suportar o olhar desolado da mãe. O diagnóstico é funesto: um natimorto. O pai, José Ruiz Blasco, homem de ar fleumático, apelidado por isto de "inglês", cede também à angústia do acontecimento. Desorientado, lívido, impotente, ele percorre todos os cantos da sala.
O irmão de José, o médico Salvador Ruiz Blasco, levado mais pela simpatia familiar do que pela ciência, precipita-se, com um charuto entre os dedos, para o leito de dona Maria. Ele lança um olhar consternado para o sobrinho e, em desespero, sopra fumaça em seu rosto. Contra todas as expectativas a criança reage e, salva pelo charuto, chora pela primeira vez. É o choro de um ressuscitado.
A família trata logo de garantir-se com os nomes e não economiza em relação aos santos protetores: Pablo, Diego, José, Francisco de Paula, Juan Nepomuceno, Maria de los Remedios, Cipriano de la Santissima Trinidad! A precaução parece de fato aconselhável, já que a criança se entrega, durante os meses que seguem à indiferença. Ela não anda nem fala mas, em seu isolamento apaixonado, observa o pai que pinta, incansavelmente, folhagens e pássaros. Por fim, o menino abandona seu mutismo e grita, imperioso, "Piz!, Piz!", abreviação infantil de "lápiz".
Pablo, com o tempo, não se limita mais aos rabiscos. Don José, pouco a pouco, entrega-lhe cores e confia-lhe até mesmo uma natureza-morta para terminar. O resultado é tão convincente que, em um ato emblemático, Don José oferece ao filho sua paleta. "Ele me deu seus pincéis e jamais voltou a pintar", comentou mais tarde Picasso ao seu amigo Jaime Sabartès. Isto não é verdadeiramente exato.
Neste dia, o filho, de uma certa maneira, mata o seu pai, que, apesar de suas tentativas, estava destinado a pintar "quadros para sala de jantar[...]". Esta renúncia motivará o lamento de Blaise Cendrars, triste por jamais haver cruzado, em suas andanças, com esse "Filipe II da pintura moderna, o pai que abdicava e consagrava o império em que o Sol não se levanta ao filho".
Em 1891, Don José que, com o nascimento de Lola em 1884 e, três anos mais tarde, de Concepcion, passa a ser pai de três filhos, é nomeado professor de desenho em La Coruña, no norte da península. Após a exuberância da costa ensolarada, a comedida atmosfera cinzenta da Galícia. Uma Galícia castigada pelos ventos que o falecimento de Conchita, a caçula da família Ruiz, acaba por tornar insuportável. Assim, Don José recebe com alívio a notícia de sua transferência para a Escola de Belas Artes de Barcelona.
JOVEM TALENTOSO
Pablo, muito jovem para integrar a classe superior da prestigiosa academia, obtém porém uma autorização para prestar as provas de admissão. Diz a lenda - e o próprio Pablo, vaidoso, encarregou-se de espalhar - que ele apresentou em poucos dias o trabalho de admissão que os estudantes tinham um mês para preparar. É em La Lonja (nome da escola) que Pablo encontra Manuel Pallarès, amigo por toda a vida: "Picasso tinha uma personalidade forte [...]. Sua habilidade e a rapidez de sua mão nos espantavam. O que os professores diziam não interessava muito a ele; tínhamos a impressão de que ele os ignorava!".
De fato, Pablo sente-se sufocado. Ele ataca o academicismo e, num arroubo de audaciosa independência, parte para uma temporada em Madri. Em 1897 é aprovado, com impressionante facilidade, no concurso da Academia Real de San Fernando, mas não segue o curso. "Por que eu faria o curso?", resume ele, adoecido e sem dinheiro. Ele prefere se recuperar na aldeia de Horta de Ebro, junto com seu amigo Pallarès. É nesta pitoresca região que, segundo o próprio Pablo, ele aprendeu "tudo o que sabe".
Ao retornar para Barcelona, ele se entrega aos prazeres duvidosos da noite e compartilha, nos velhos bairros, das ousadias de uma juventude livre ou até francamente marginal. Logo se torna freqüentador de um café da moda, o Els Quatre Gats, onde apresenta sua primeira exposição em fevereiro de 1900.
Apesar de tudo, Pablo sente-se oprimido neste universo excessivamente familiar. Mais uma vez ele deseja o exílio. "Se eu tivesse um filho que quisesse pintar, não o deixaria na Espanha um instante", queixa-se ele, obcecado pela partida. E o único trampolim da artes é, aos seus olhos, Paris, onde desembarca no final do verão em companhia de seu novo amigo, Carlos Casagemas.
Para ver diretamente os "seus" mestres (Ingres, Lautrec, Van Gogh, Gauguin), ele vai sempre aos museus. Freqüenta, também, os locais enfumaçados da boêmia de Montmartre e, quando da sua primeira exposição na galeria de Vollard, torna-se amigo de Max Jacob. Mas o suicídio de Casagemas, em 17 de fevereiro de 1901, leva-o a uma impenetrável depressão. Sua paleta assume a cor da penúria e do frio, revestindo-se de azul (1901-1904). "Ele acredita que a arte é filha da tristeza e da dor. Ele acredita que a tristeza favorece a meditação e que a dor é o fundo da vida", resume Sabartès.
VIDA EM PARIS
Em 1904 Picasso despede-se da Catalunha e instala-se definitivamente em Paris. Fixa-se no número 13 da rua Ravignan, em um edifício que Jacob batizou de Bateau-Lavoir (lavanderia-barco). Neste local de corredores precários e quartos úmidos (pomposamente chamados de ateliês), encontram-se lavadeiras, artistas e operários. Graças a esta promiscuidade, Picasso encontra Fernande Olivier que, apesar de companheira na miséria, afasta-o da dor andaluz da "fase azul" e abre sua paleta para tons mais quentes, inspirando telas por vezes maneiristas. Saltimbancos e arlequins metafóricos marcam assim a leve tranqüilidade da "fase rosa" (1905-1906), que levará a uma brutal redefinição do volume.
Após uma temporada em Gosol, região espanhola em que ele se abastece, junto com Fernande, de ar fresco, cores e luminosidade, Picasso trata de ampliar as formas. Fortemente influenciada pela arte ibérica, sua obra revela, desde 1906, um primitivismo consentido. Ao retornar novamente para Paris, ele se fecha em si mesmo e, distante dos olhares, dedica-se a uma tela que assinalará o rompimento do artista com quatro séculos de estética.
Em 1907, as portas de seu ateliê são abertas e revelam as ilustres Demoiselles d\\'Avignon. A reprovação é unânime. Acompanhado por Guillaume Apollinaire, Félix Fénéon, crítico da La Revue Blanche, adentra a rua Ravignan. Ele considera longamente a tela e diz: "É interessante, rapaz, você deveria se dedicar à caricatura!". O colecionador Leo Stein julga o quadro uma "terrível confusão". Derain, por sua vez, faz comentários sombrios e visionários. Mais prosaico, o escultor Manolo pergunta: "Responda-me, Pablo, o que você diria se um dia fosse buscar seus pais na estação e eles chegassem com esse tipo de coisa?". Georges Braque, companheiro da iminente corrente cubista, fulmina: "Escute. Apesar de tuas explicações, é como se você quisesse nos fazer comer estopa ou beber petróleo para que cuspíssemos fogo".
Neste concerto de reprovações há uma única exceção: a adesão imediata de um jovem colecionador alemão, Daniel-Henry Kahnweiler, que se tornará um dos maiores marchands do século XX. Talvez ele tenha sido o único a compreender o atestado de nascimento da pintura moderna.
O escândalo suscitado pelas infernais Demoiselles não deteriora porém as amizades de Picasso nem diminui seu ardor pelo trabalho. Manolo, Jacob, Apollinaire e Jarry continuam a freqüentar o Bateau-Lavoir. Durante o resto do tempo, Fernande e Pablo vão até a Closerie des Lilas para participar dos saraus literários de um apaixonado grupo, o Verso e Prosa.
A guerra dispersa os boêmios de Montmartre. Todos são mobilizados. Sozinho, Picasso experimenta, na capital, o mal-estar de um exilado que perdeu as referências. Convidado por Jean Cocteau, poeta espiritual e inquieto, ele decide ir a Roma, para desenhar o figurino e o cenário de Parade, balé de um excepcional coreógrafo, Serge de Diaghilev. Nas margens do Tibre, ele se enamora de uma bailarina do espetáculo, Olga Kokhlova, com quem se casa em Paris, a 12 de julho de 1918. Em 11 de novembro, a capital está em festa. Neste dia, Picasso junta-se à alegre multidão para melhor desfrutar da vitória.
Nas arcadas da rua Rivoli, uma brisa ergue o véu de uma viúva que, repentinamente, esconde seu rosto. A alma espanhola de Picasso vê neste fato uma sombria premonição, e, cheio de superstições, ele decide retornar para sua casa, onde é informado da morte de Guillaume Apollinaire, seu mais antigo amigo parisiense. O choque é imenso. Ele jura jamais pintar um auto-retrato!
No pós-guerra, as obras cubistas, em razão de sua agressividade, são freqüentemente qualificadas de "alemãs". Picasso, felizmente, adquiriu na Itália um interesse maravilhado pela pintura da Renascença e, como o clima favorecia um classicismo renovado, ele executa uma série de retratos inspirados em Ingres. Criticado, ele responde: "Digo as coisas da maneira como sinto que devem ser ditas!". Cocteau fala, então, de um "retorno à ordem".
Fascinado pela estatuária antiga da Roma imperial, Picasso renova em seguida a estética do nu mediante figuras monumentais que louvam a beleza rústica, exaltam a fecundidade e celebram a embriaguez dos prazeres da praia. Mas, farto de harmonia, ele oferece, com a tela Dança (1925), uma concessão frenética ao surrealismo nascente. As telas que ele pinta então são atravessadas pela mesma agitação convulsiva. Elas fixam visões grotescas e expressam obsessões eróticas que se prestam a interpretações freudianas.
Com o retorno da calma, a serenidade recobrada de suas telas terá as curvas de Marie-Thérèse Walter (O sonho). Paralelamente, ele esculpe (Banhistas), cultiva a arte da colagem (Mulher no Jardim), dedica-se à gravura e, mais especialmente, a seus temas favoritos (O Minotauro e as corridas), de que a água-forte Minotauromaquia é a expressão mais acabada.
HORRORES DA GUERRA
Em 1937, os representantes da Frente Popular encomendam a Picasso uma tela para ornar o pavilhão espanhol durante a Exposição Universal organizada pelo governo francês. O artista inicia então Guernica que, em uma fúnebre cavalgada, evoca o ataque da pequena cidade basca atingida pelo bombardeios alemães favoráveis a Franco. Em 4 de junho, o único quadro histórico do século XX sai do ateliê e grita a abominação de seu autor pelo fascismo e pela violência cega. Durante a ocupação, um oficial nazista entra no ateliê da rua Grands-Augustins e, percebendo um clichê da tela, pergunta, diante desta "arte degenerada": "Foi o senhor que fez isto?". Impassível, Picasso responde: "Não, foi o senhor!".
Guernica marca o período mais trágico de sua produção. As obras que se seguem traduzem a angústia da guerra (Pesca Noturna em Antibes, 1939), as misérias da Ocupação, a obsessão de enganar a fome ocasionada pela pobreza (Natureza-Morta com Crânio de Boi, 1942), a sede de comunhão na adversidade (Homem com Carneiro, 1943). São preocupações que levam o artista a comentar: "A pintura não é feita para decorar apartamentos; é um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo!".
Nos anos 50, Picasso realiza um estranho diálogo com o passado, inspirando-se nos mestres. Temos, assim, Mulheres da Argélia segundo Delacroix (1955), As Meninas segundo Velásquez (1957) e Almoço na Relva segundo Manet (1960). Sem dúvida, ele apresenta aqui a parte mais enigmática de um trabalho no qual, segundo Frédéric Gaussen, confia "aos seus antecessores mais sensíveis o cuidado de cantar para ele a violência erótica que arrebatou sua existência".
Seu engajamento político no seio do Partido Comunista - do qual torna-se membro em 1944 - leva-o a participar, junto com a intelectualidade progressista, de três congressos internacionais para os quais desenha a célebre Pomba da Paz (1949) e as duas pinturas de parede A Guerra e A Paz (1952).
Para digerir os "terríveis desgostos da realidade", Picasso não é refratário a nenhum gênero. Com a sua "liberdade soberana", para empregar as palavras de Malraux, ele continua, apesar da idade, a dar livre curso ao seu gênio proteiforme: pintura, evidentemente, mas também litografia, gravura, escultura, cerâmica. Torero, hasta la muerte, isto é, até este 8 de abril de 1973, quando, surpreendendo o solitário de Mougins, a morte entra sorrateiramente num quarto em que, pela primeira vez, as paredes "vencem o sono".
Pascal Marchetti-Leca é professor na Universidade da Córsega e autor de Innominata (Dcl, 2001).
Revista Historia Viva
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