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Stonehenge, Inglaterra, vestígio da cultura pré-européia
Além das cristãs, que têm um lobby poderoso, existem as raízes judaicas e as greco-romanas. E o que dizer quanto à herança pagã e às influências do Oriente?
Sobre esse tema eu já tinha escrito em 2003, mas não sou eu quem se repete, e sim a vida. Ocorre-me a história daquele meu amigo que certo dia volta para casa, encontra no escritório o jornal de que é assinante, lê com interesse da primeira à última página e depois percebe que se tratava de um exemplar de cinco anos antes, que por acaso reaparecera em sua escrivaninha. Daquele dia em diante cancelou a assinatura, mas não era culpa do jornal, era e é a monótona repetitividade de certos debates, crises, homicídios, escândalos, polêmicas, promessas e dívidas. Basta ler hoje os artigos sobre o delito de Cogne – um crime famoso ocorrido na Itália, em que a mãe é suspeita de ter matado o filho –, iguais aos de cinco anos atrás.
Mas voltemos ao ponto. Torno a encontrar nos jornais a urgência de inserir um chamado às raízes cristãs da Europa. Com relação a 2003, no entanto, deu-se um passo à frente, e precisamente na linha das observações que nós, então numerosos, havíamos feito: isto é, que as raízes da Europa são não apenas cristãs, mas sim judaico-cristãs. Não podemos esquecer o papel que a Bíblia teve no desenvolvimento da civilização européia (a propósito, recentemente aderi a um abaixo-assinado para que a Bíblia seja estudada nas escolas; não se trata de um fato religioso, é que não vejo por que os jovens tenham de conhecer Catulo e não Jeremias, Príamo e não Salomão).
Todavia, precisamente o fato de que na escola se estudam Príamo e Catulo nos recorda que a Europa surge sobre raízes que não são apenas judaico-cristãs, mas também greco-romanas. À parte a história da arte ou a função do imaginário mitológico em toda a poesia européia, sem Platão e Aristóteles nem sequer a teologia cristã teria existido; não é preciso recordar a presença do direito romano nas instituições européias, e o latim que se gostaria de introduzir novamente na missa foi inventado pelos pagãos e só se tornou cristão por direito hereditário. Mas talvez essas coisas sejam esquecidas porque as raízes cristãs têm um lobby poderosíssimo a apoiá-las, ao passo que as greco-romanas interessam apenas a alguns professores do ensino médio.
Naturalmente alguém poderia observar que seria necessário mencionar também a influência dos povos germânicos e a mitologia nórdica, mas a coisa se tornou patrimônio de neonazistas de cabeça raspada e, portanto, embora com pesar, deixemos para lá.
Enfim, haveria que perguntar por que as raízes judaico-cristãs caracterizariam precisamente a Europa. Não caracterizam também as duas Américas, a Austrália, a Etiópia, a Armênia, as Filipinas? E quanto às raízes greco-romanas, os modelos de Atenas e de Roma estavam bem presentes na mente dos pais da Revolução Americana – e pensemos em quanto a tradição clássica triunfa nas arquiteturas de Washington.
Seriam então precisamente estas raízes a tornarem a Europa única como tal e não, por exemplo, a co-presença de uma pluralidade de línguas e culturas – característica que falta a outras civilizações cristãs como as extra-européias? É com respeito a essa pluralidade que a Europa outrora se dividiu com enorme derramamento de sangue e agora torna a encontrar critérios de convívio e respeito recíproco. Poderíamos acrescentar o sentido do justo equilíbrio entre desenvolvimento rumo ao futuro e culto do passado, que torna a Europa tão ciosa de suas tradições e de seus vestígios. É bem verdade que essa coabitação entre novidade e tradição também é comum, por exemplo, na cultura japonesa, mas o Japão moderno só preserva o Japão antigo, ao passo que a Europa conserva não só as ruínas gregas e romanas e suas catedrais cristãs, mas também a Alhambra muçulmana, sinagogas e restos pré-europeus, de Altamira a Stonehenge.
E, enfim, há mais um aspecto típico da cultura européia: a curiosidade pelas outras culturas e pelos outros países, que esteve na origem tanto das viagens de Marco Polo quanto na de modas discutíveis como o orientalismo – para não mencionar o gosto colonialista de meter o nariz na casa alheia. É verdade que a curiosidade (digo curiosidade científica, e não turística) por países distantes caracterizou também a civilização islâmica medieval, mas não os povos cristãos de outros continentes. Certa noite um consultor do Pentágono, em um jantar durante um congresso, enquanto o informavam sobre o peixe que estava comendo, perguntou se o Mediterrâneo seria um lago salgado. Nenhum europeu culto jamais perguntaria a um americano se o Grande Lago Salgado seria um mar. Enfim, ou colocamos em evidência todas as raízes e todas as características que tornam esta Europa única, ou então não conseguiremos compreender o que é.
Umberto Eco é professor de semiologia da Universidade de Bolonha, na Itália, e autor, entre outros, de A misteriosa chama da rainha Loana, Baudolino, O nome da rosa e o pêndulo de Foucault
Revista Entre Livros
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