sábado, 26 de setembro de 2009

Um corte na história do Brasil

Bicentenário da vinda da família real exige reflexão historiográfica
Carlos Haag
Edição Impressa 143 - Janeiro 2008

Pesquisa FAPESP - © Reprodução do livro D.João VI e o seu Tempo/Nicolas Louis Albert Delerive, Embarque para o Brasil, 1807-1818

Embarque de dom João, príncipe regente de Portugal, para o Brasil em 27 de novembro de 1807


A frase de Roger Bastide pode ter sido castigada pelo tempo, mas não tirou nada da sua sabedoria: Brasil, uma nação de contrastes. Do futebol à história, tudo passa pela infame regra do “oito ou oitenta”. Assim, por exemplo, a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808. Por quantas décadas não se falou dessa viagem em tons jocosos, a aventura de dom João VI, o “rei fujão”, com sua mulher “bigoduda” e sua corte provinciana? Hoje, com a aproximação do bicentenário da chegada lusitana à Bahia e ao Rio de Janeiro, preparam-se celebrações colossais e o monarca que “carregava frangos no casaco” é revisitado como estadista hábil. Qual a real faceta dessa viagem e que conseqüências ela trouxe ao país que, na época, ainda não era uma nação?

“Sem desconsiderar o papel que a vinda da família real teve na formação do Brasil como nação independente, talvez seja profícuo ver o fenômeno sob ponto de vista distinto. Parece-me oportuno tentar dissociar, proposital e momentaneamente, o fenômeno daquilo que dele decorreu. As análises sobre 1808 foram, quase que invariavelmente, marcadas pelas reflexões sobre a formação do Brasil, acarretando uma série de juízos de valor e relações muitas vezes teleológicas”, observa a historiadora Laura de Mello e Souza, da USP, que desde 2003 vem estudando a fuga dos Bragança para o Brasil numa chave comparativa, parte de um projeto temático apoiado pela FAPESP, Dimensões do império português. “O fato de 1808 estar tão associado ao surgimento da nação fez com que a memória do acontecimento fosse construída de modo quase farsesco, as evidências empíricas sendo, muitas vezes, escamoteadas pela pura ideologia”, avisa. Segundo ela, a historiografia congelou o 1808 em perspectivas opostas que, afirma, “não foram devidamente equacionadas”.

“No caso da originalidade sem par do evento (para muitos, a pátria nasceu em 1808 e não em 1822), perdia-se de vista o processo histórico para destacar o fato extraordinário. Descuidava-se do tempo longo, recortava-se aquela expressão singular do tempo curto, o 1808, como se ela pairasse, espécie de bolha, sobre outras expressões da mesma conjuntura. Na medida em que registrava o anedótico, o inusitado, remetia, mesmo sem o saber, a uma tradição antiga de preconceito, própria dos países do Norte da Europa quando, a partir do século XVIII, olhavam para os do Sul.” No outro extremo, o da crise geral do antigo sistema colonial (evidenciado pela independência das colônias americanas, quando pela primeira vez se rompeu a sujeição de uma colônia à sua metrópole), de forte raiz marxista, avalia a historiadora, pecava-se pelas razões opostas. “Com os olhos no longo tempo, destacavam-se as linhas gerais de fenômenos que tinham muito de comum, mas também de único, as lógicas das estruturas assumindo o primeiro plano e a dos eventos se tornando quase opacas”, avalia. Dessa forma, continua, “tudo se esbatia entre o vulto da Inglaterra capitalista no controle de países subalternos ou o peso do rolo compressor napoleônico que ia substituindo a ideologia revolucionária da Grande Nation francesa. Talvez essa tensão do tempo longo e curto seja insolúvel. Mas, sem análise, a história é crônica; com ela, certa margem de anacronismo é incontornável”.

“Esse debate é permanente na historiografia e remonta aos tempos imediatos da própria independência, guardando um iniludível viés político, que matiza tanto as interpretações que atribuem grande importância à presença e à atuação de dom João VI no processo de emancipação política brasileira, como aqueles que minoram a importância do rei a ponto de se conceber que a independência aconteceu ‘a despeito’, ‘não obstante’ as ações do soberano”, diz o historiador Jurandir Malerba, da Unesp, autor de A corte no exílio. “A historiografia sobre o 1808 é construída a partir dessas retificações que acontecem de geração em geração, mas o leitmotif da reconstrução histórica e a luta política são travados no presente.” Ainda assim, como nota Laura, subsistem preconceitos passados. “Há um processo de passagem, entre o final do Renascimento e o início das Luzes, em que se construiu uma relação entre ‘ricos’ (Norte) e ‘pobres’ (Sul) assentada na ambigüidade e na contradição, em que operava a lente do preconceito e da detração. Os relatos sobre a vinda da corte foram contaminados por essa tradição detratora preexistente e, muito possivelmente sem sabê-lo, pelos liberais que, entre nós, conduziram o processo de independência, incorporaram tradições detratoras de estrangeiros do Norte. Essas acabaram ganhando, no Brasil nação, tanto as elites cultas como os extratos mais populares.”

Isso ocorreu logo após a transferência da corte: em 1809, por exemplo, o History of Brazil, de Andrew Grant, já chamava o episódio de “a fuga desta corte imbecil”. Em 1900, a História do Brasil, de João Ribeiro, afirmava: “Se vindo para o Brasil, dom João VI nos trouxe o prêmio da autonomia, embora sob formas do absolutismo, não havia, entretanto, na mesquinheza de seu espírito dotes suficientes para criar como logo disse um ‘novo império’. Foi ele que entre nós desmoralizou a instituição monárquica, já de si mesmo antipática às aspirações americanas”. O tempo não ajudou a prover um retrato preciso da chegada da família real. Na História geral da civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda, a presença da corte é algo pálida e o destaque é para a recorrência da idéia de mudar a sede da monarquia para a América, obsessão de todos os reis e ministros de Portugal, do prior do Crato a dom Rodrigo de Souza Coutinho, chefe do Tesouro Real que, em 1803, ofereceu ao príncipe regente uma avaliação da situação política precária de Portugal e que, numa guerra entre França e Inglaterra, a “independência da monarquia portuguesa estaria em risco”, aconselhando dom João que a criação de um novo império no Brasil poderia dar aos portugueses uma base a partir da qual o herdeiro do trono poderia reconquistar tudo o que se perderia na Europa e “punir o inimigo cruel”. Mas já em 1580, quando o rei espanhol Filipe II reclamou para si a coroa portuguesa, já se cogitara o Brasil como refúgio da corte exilada.


© Reprodução Nicolas-Antoine Taunay, Passagem do Cortejo real na ponte Maracanã

Visão estrangeira: cortejo real na ponte do Maracanã, cercado pela natureza tropical

Razões estratégicas, décadas depois, se transformaram em visão messiânica nas palavras do Padre Vieira, para quem o rei poderia ser o chefe de um império eterno em terras da América. No reinado de dom João V (1706-1750) em face da expansão espanhola e do início da decadência lusitana, num memorando secreto que antecedia a previsão de Montesquieu da inversão em curso no interior dos impérios modernos, um cortesão português, Luiz da Cunha, quase convenceu o soberano da necessidade de mover a corte para o Brasil a fim de garantir seu futuro e preservar sua altivez dentre as nações européias. “A transferência da corte era, de fato, uma velha idéia. No final do século XVIII era explicitamente defendida por Souza Coutinho, que percebia com clareza as limitações da metrópole”, avalia o historiador da UFRJ, José Murilo de Carvalho. “A história da política e a cultura política da transferência da corte começam muito antes do príncipe regente deixar Portugal e chegar em costas brasileiras. A decisão de transferir o centro da monarquia, feita em meio a um caos e imediatismo apenas aparentes, estava já enraizada numa visão do potencial do Brasil que já estava em foco no século XVIII”, nota a brasilianista Kirsten Schultz, autora de Tropical Versailles.

Em 1972, com a coletânea 1822: dimensões, organizada por Carlos Guilherme Motta, surge um novo tom, pautado pela crise do Antigo Regime, em especial no capítulo escrito pelo historiador Fernando Novais. O 1808 começa a adquirir novos matizes. Nesse interregno historiográfico secular em que o evento passou pela desvalorização preconceituosa, pela apologia acrítica e pela sua redução como anedota diante de mudanças estruturais do sistema econômico e político do Antigo Regime, há um epígono importante, lembra Laura: o Dom João VI no Brasil, de Manuel de Oliveira Lima (hoje reeditado pela Topbooks), de 1908. “Precisamos voltar a ele para repensar os rumos da historiografia futura do 1808, e neste sentido, apesar do estilo antiquado, ele continua sendo atual e instigante, já que Oliveira Lima trata simultaneamente do tempo longo e do tempo curto, da estrutura e do evento, do contexto geral e das personagens particulares.”

Para complicar mais as coisas, dentro desse debate historiográfico há outro, ainda mais candente, que, apesar dos 200 anos que nos separam do ocorrido, provoca polêmicas exasperadas. “Essa coisa de fazer festa em torno de dom João VI é armação de carioca para promover o Rio”, afirmou, em entrevista, o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, para quem existe “uma insistência em reforçar o lugar-comum segundo o qual foi o rei o responsável pela unidade do país, que não passou de uma fabricação da coroa, não com o objetivo de que se criasse a partir dela um país independente”. Valeria então comemorar o bicentenário do 1808? “Quanto à celebração da efeméride, fico com a advertência do historiador François Furet, que dizia ser preciso temer a paixão com que se celebra a fim de evitar os inventários. Ou seja, festejos excessivos correm o risco de empurrar muitas questões para debaixo do tapete”, pondera a historiadora Mary del Priore. Entre essas questões está o debate sobre a forma com que o país adquiriu sua independência, uma polêmica que divide novamente a historiografia em dois campos: os que defendem a opção pela centralização do Brasil, efetivada pela permanência dos Bragança no país, em oposição aos que a culpam pelo sufocamento de um movimento federalista, nos moldes do americano, a que se preferiu chamar de “separatismo”.

Voltemos, porém, um pouco no tempo, para analisar a saída ou fuga da corte portuguesa para o Brasil. O catalisador desse movimento foi a ascensão, em 1799, de Napoleão Bonaparte a primeiro-cônsul e o início de uma campanha militar francesa com tintas da Revolução Francesa, numa ação que transformou o terror das cortes européias em pânico. “As principais potências foram derrotadas, à exceção dos ingleses. Dom João então se viu diante de uma “escolha de Sofia”: ou se entregava aos franceses, correndo o risco de ser deposto, de ver Lisboa bombardeada pelos britânicos e perder para eles a colônia, ou fugia, submetendo-se à Grã-Bretanha, incorrendo na ira dos súditos portugueses abandonados”, analisa Murilo de Carvalho. Segundo ele, para Portugal, a saída significou a preservação da monarquia e o prolongamento por algum tempo da colônia, embora sem os benefícios do exclusivo colonial, derrubado com a abertura dos portos. A permanência poderia ter significado o que aconteceu na Espanha: a deposição e prisão do rei e, após a queda de Napoleão, uma possível anexação à Espanha. “Não se sabe, porém, qual foi o principal argumento que levou o Conselho da Coroa a votar pela saída”, reitera Murilo de Carvalho.


© Reprodução do livro Rio de Janeiro Cidade Mestiça/Jean-Baptiste Debret

Partida da rainha de volta a Portugal em 21 de abril de 1821

Anedotas sobre a viagem e a fuga da corte à parte, a vinda da família real trouxe mudanças e dilemas à nação incipiente. “O ‘acidente da presença da família real’ muda inteiramente o jogo. O rei não é apenas a instituição política que evita o desmembramento do país à época da ruptura com a metrópole, é também quem viabiliza a hegemonia do Rio de Janeiro sobre os poderes locais e regionais”, observa o cientista político Gildo Marçal Brandão em Linhagens do pensamento político brasileiro (veja a resenha do livro). “A nefasta independência do Estado perante a sociedade civil (o nascimento do Estado antes da sociedade civil, seu predomínio abusivo, a fatalidade dos indivíduos e grupos sociais que vivem do e pelo Estado) se assenta na história interna da metrópole, na transmigração oceânica do Estado português e na reiteração severa e avara da cultura das origens”, continua. Eis o fulcro da divisão entre unitaristas e federalistas. “Há quem, como Frei Caneca e Cipriano Barata, ambos a partir de Pernambuco, insistia na forma federativa e numa maior independência das províncias em relação à capital. Mas os que viam a grandeza do território brasileiro como uma força e queriam mantê-lo unido a qualquer preço alegavam que o modelo federalista dera certo nos EUA porque antecedera a formação do Estado. Se implementado aqui, acabaria por provocar a desintegração e nos levar ao mesmo destino das colônias espanholas, sacudidas por revoluções”, avalia a historiadora da USP Isabel Lustosa.

“A tradição da historiografia para quem a história da nossa emancipação política se reduz à construção de um Estado centralista tende, portanto, a ignorar que, se o reinado americano de dom João VI pode ser considerado o marco inicial da construção do futuro edifício imperial, não é menos verdade que ele esteve a ponto de destruir-lhe as frágeis possibilidades, precisamente pela sua incompetência para superar a retórica do vasto império, atualizando-a e realizando-a”, critica Cabral de Mello. Para o pernambucano, como para Murilo de Carvalho, a construção imperial não passou de figura de retórica com que a coroa bragantina procurou desfazer a penosa impressão criada na Europa pela sua retirada, apresentando-a como “medida de alto descortínio destinada a reabilitar Portugal a se retemperar no Novo Mundo para regressar ao Velho na condição de potência de primeira ordem”. Essa “escolha de Sofia” determinaria se o futuro brasileiro estaria no centralismo monárquico que deixou os Bragança no poder até fins do século XIX ou no federalismo nos moldes do alcançado nos Estados Unidos, como preconizaram os líderes dos movimentos de independência, já em 1817, em Pernambuco e na Bahia.

Para Evaldo Cabral de Mello, havia uma outra independência possível que não a “de cunho unitário, conservadora e naturalmente monarquista, que nos faz negligenciar outros modos possíveis de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado”. “Aqueles movimentos foram agrupados sob o amálgama enganador de ‘separatismo’, ao passo que os construtores do Império, a partir do Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas”, observa. “Como as forças unitárias, a ‘alcatéia unitária’, como dizia Frei Caneca, venceram as centrífugas, sobretudo as de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, pode-se perguntar se a vinda da corte ajudou a moldar o Brasil por seu peso (não determinação) na conservação da monarquia e, sobretudo, na manutenção da unidade. A resposta é positiva. Monarquia e unidade, unidade em parte por causa da monarquia, significaram a herança de uma das culturas mais atrasadas da Europa, favoreceram a prevenção de rupturas sociais, culturais e econômicas, um excesso de centralização política e conservadorismo social”, avalia Murilo de Carvalho.

Ainda segundo ele, o que teria sido uma colônia transformada em alguns países pode ser entrevisto analisando-se o que se passou na parte espanhola: muita instabilidade, guerra civil, caudilhismo, mas também mais mobilização política, mais autogoverno, mais ousadia reformista. “Teria sido melhor? Depende da perspectiva adotada. Para os que sonhavam e sonham ainda hoje (não é o meu caso) com um grande império ou um Brasil potência (petrolífera?), a manutenção da unidade foi essencial. Para os que se preocupam mais com a prosperidade e as condições de vida da população, a fragmentação poderia ter sido mais vantajosa, sobretudo para as províncias mais ricas.” Há uma unanimidade nessa polêmica? “Creio que a maior parte dos historiadores pensa que foi uma coisa positiva a manutenção da unidade brasileira. Mas, enquanto o federalismo não foi adotado, a discussão sobre suas vantagens esteve em pauta e acompanhou o Império, os debates da primeira Constituinte (1823) e marcou a República. A aplicação prática do federalismo com a ‘política dos governadores’, do governo Campos Salles, porém, acabou fortalecendo o coronelismo e serviu para aumentar a desigualdade social nacional”, nota Isabel.

Mas é preciso também voltar às críticas de Cabral de Mello contra o período joanino no Brasil e suas conseqüências. “Qualquer discussão sobre reformas políticas era sempre curto-circuitada nas rodas palacianas pela objeção de que a Revolução Francesa também começara por elas. O período de dom João se caracterizou por um extremo conservadorismo, que reduzia a atuação do poder público a questões administrativas a serem resolvidas segundo práticas do antigo Estado.” Segundo ele, a partir da independência impunha-se uma noção territorial de que o Brasil tinha sido fadado a ser um país. Para os fluminenses, a concepção era de um país grande, com potencial correspondente da arrecadação tributária, sob regime centralizador.” Além disso, a idealização do reinado joanino nasceu e se desenvolveu no Rio, fazendo da sede da corte a grande beneficiária da imigração dos Bragança, enquanto as capitanias se viram adicionalmente taxadas para financiar o embelezamento da capital para fazê-la aceitável aos cortesãos e funcionários públicos de extração reinol. “Esse entrelaçamento de interesses das elites nativas com as migradas marcou o compasso do processo de independência, a partir da aproximação durante os anos brasileiros de dom João, das elites do Centro-Sul com a coroa”, diz Malerba. “Aqui eu concordo com Cabral de Mello: esse projeto centralizador vencedor que cooptou o príncipe do Brasil depois do retorno do rei a Portugal pugnava pela imposição de interesses tão regionais (ou mesmo provincianos) quanto o dos chamados ‘separatistas’ do Rio Grande do Sul ou Pernambuco, o que me faz pensar quais seriam as vantagens para o Brasil se qualquer outro desses projetos regionais se tivesse imposto sobre os demais.”

Medalha comemorativa da aclamação de dom João VI

Para ele, porém, o que importa é que no Brasil joanino é que se gerou o embrião da elite que faria a construção do Estado imperial e da nação brasileira ao longo do século XIX. “E essa elite foi a do Centro-Sul”, ressalta. Malerba ainda observa que à configuração patriarcal do Estado no Portugal do Antigo Regime acompanhou, na vinda ao Brasil, a do caráter sagrado da realeza. “Um dos princípios dessa forma de governo, a monarquia absoluta, assentava na liberalidade do soberano, na sua capacidade de conceder graças. Foi o abuso no emprego dessa propriedade a marca distintiva na monarquia portuguesa no Rio”, escreve o historiador. “A monarquia que chegou ao Rio de Janeiro, pertencendo a um tempo que ruía em seu lugar de origem, transformou-se em algo novo ou pelo menos diferente. Contudo, o lastro desse tempo moribundo estava fortemente arraigado nas mentes dos homens de elite e, particularmente, na do herdeiro, dom Pedro. Sem a experiência de ruptura radical, o Brasil nasceu um Estado-nação filho de dois tempos. Essa dubiedade marcou o período imperial e seus traços não se apagaram até hoje.”

“O que não podemos saber é se, caso esse projeto centralizador, monarquista e conservador não fosse historicamente o projeto vencedor, que tipo de federação poderia ter surgido dos escombros do mundo colonial. O viés político é patente: as interpretações que lamentam o aborto dos projetos federalistas tendem a atribuir as mazelas sociais do Brasil a nossa revolução conservadora, à via prussiana seguida pelas elites brasileiras. Mas em história não temos o dispositivo da contraprova”, fala Malerba. “Uma experiência federalista teria levado a um país melhor? Nossa experiência republicana não autoriza uma resposta tranqüila.” Laura de Mello e Souza prefere optar por uma “terceira via”. “O que se ensaiava de fato em 1808 era a configuração de um novo Império: não só português para os americanos, que o queriam luso-brasileiro, nascendo talvez daí a tensão que explodiria logo adiante, e na medida em que os habitantes da metrópole (pois ela continuava a se ver enquanto tal), insitiam em continuar qualificando a relação. Em suma, não era mais do mesmo Império que os portugueses e luso-brasileiros cogitavam: os primeiros o queriam português, os segundos, luso-brasileiro.”

“Um acontecimento só se torna memorável devido a uma certa maneira de ser excepcional, de suscitar, além de seu desenrolar efêmero, uma realidade durável, que acaba inscrita nos lugares da memória coletiva, tornando-se uma espécie de experiência exemplar”, escreveu o historiador francês Charles Mozaré. “Nesse sentido, a celebração, a construção da memória são fundamentos para a constituição de um corpo político. Como essa entidade que chamamos de nação brasileira começou? O resgate de eventos como a permanência da corte no Brasil entre 1808 e 1821, tem uma função de coesão social, contribui para manter orgânicas as sociedades”, avisa Malerba, que aconselha que se faça bom uso desse “memorar junto”, aproveitando a data para um debate sobre nossa trajetória (“a partir daquele evento ou por causa daquele evento”), nossa realidade atual e seus impasses. “Para tal, é preciso pensar nas conexões históricas mais gerais e, ao mesmo tempo, mostrar como e por que não são aleatórias. E deixar de ver a vinda da família real como anedota grotesca ou ocorrência aleatória”, diz Laura. “Comemoremos as datas históricas como os aniversários de nossos pais, pessoas das quais descendemos e que não escolhemos, mas que nos geraram e com as quais estamos irremediavelmente associados”, completa Isabel Lustosa.

Revista FAPESP

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