quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Quilombos - Os filhos da liberdade


Livres da escravidão e espalhados pelo sertão brasileiro em mais de 500 comunidades, os quilombos sobrevivem

IMMACULADA LOPEZ

Para a maioria das pessoas, os quilombos são apenas um capítulo da história do Brasil. Um episódio da vida nacional enterrado para sempre no passado. Não é verdade. Os quilombos ainda fazem parte da vida brasileira. Bisnetos e tataranetos de escravos negros vivem, até hoje, em comunidades criadas por seus antepassados e guardam um tesouro cultural inestimável. Espalhadas pelo interior de todo o país, 511 comunidades já foram mapeadas pelo governo federal como remanescentes de quilombos, e acredita-se que haja, pelo menos, mais cem.

Apesar de sua longa história e modo próprio de viver, esses grupos não pararam no tempo, nem estão isolados dos problemas que afligem o resto do país. Neste momento, sua maior preocupação é continuar na terra onde moram e trabalham e preservá-la para seus filhos e netos. Felizmente, a Constituição de 1988 lhes garante o direito à propriedade das áreas tradicionalmente ocupadas. Mas, por enquanto, apenas as comunidades paraenses de Boa Vista, Água Fria e Pacoval foram beneficiadas por essa decisão. Para o final do ano, foi anunciada a titulação de outra área na mesma região, desta vez englobando sete comunidades, em 80 mil hectares. No total, são 21 povoados ao longo do rio Trombetas, no norte do Pará, que em 1989 formaram a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná para exigir o reconhecimento de suas terras. Essas comunidades abrigam mais de 6 mil descendentes de escravos que durante o século 19 fugiram das fazendas de gado e de cacau do baixo Amazonas e se fixaram na região encachoeirada do rio Trombetas.

De norte a sul do país, cada comunidade apresenta uma história e costumes próprios, mas não faltam traços comuns, que as identificam como remanescentes de quilombos. E como defini-los? A Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, adota a definição da Associação Brasileira de Antropologia: "Remanescente de quilombo é toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado".


Por trás da fantasia

Com essa descrição, muitos logo imaginam uma "mini-África" no interior do Brasil, onde os habitantes tocam tambores e usam roupas coloridas. "Isso é uma fantasia do pessoal da cidade", esclarece Maria Sueli Berlanga, religiosa que há 12 anos acompanha as comunidades do vale do Ribeira, em São Paulo. A cultura secular dos remanescentes, diz ela, se revela de outras formas, "seja na maneira solidária de se relacionar, seja na alegria de viver".

"Seus moradores têm uma visão própria de mundo", acrescenta a antropóloga Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio, que desde 89 vem assessorando as comunidades do Pará. Há preponderância negra (apesar de, na região norte, existir uma mistura histórica com os índios), e são fortes as relações de parentesco (são freqüentes os casamentos entre primos). Eles vivem da agricultura, caça e pesca de subsistência, usam comunitariamente a terra, em harmonia com o meio ambiente, e têm como legado comum a descendência de escravos que criaram uma comunidade alternativa para viver. E nem sempre estes eram escravos fugidos. Algumas terras foram compradas por escravos alforriados; outras, abandonadas pelos senhores que as deixavam para trás juntamente com os escravos.

De qualquer forma, a maioria dos quilombos surgiu em locais remotos - vários de acesso ainda hoje difícil. É o caso de São Pedro, uma das 51 comunidades remanescentes do vale do Ribeira, quase na divisa de São Paulo com o Paraná, com 3,5 mil hectares.

Hoje, o caminho para São Pedro margeia o rio Ribeira do Iguape e leva a uma balsa de madeira, que cruza a correnteza até o outro lado, onde uma estrada de terra entra na mata. Por essa estrada de quase 10 quilômetros, dona Benedita Furquim lembra ter carregado nas costas os blocos para erguer a atual escola, a primeira construção de alvenaria da vila. Por caminho parecido, provavelmente uma trilha aberta por animais, seu bisavô, Bernardo Furquim de Campos, chegou fugido das Minas Gerais. Ao passar por Eldorado, juntou-se a outro homem e duas mulheres, iniciando o que viria a ser uma grande família. Aos 84 anos, dona Benedita é a testemunha mais antiga dessa saga, tantas vezes recontada para os mais novos.

Nascida e criada nessas terras, a bisneta de Bernardo mora em uma casa de pau-a-pique, como ainda é metade das casas da vila. Com a construção da escola (há 17 anos) e a chegada da energia elétrica (há dois), as casas foram se concentrando na vila atual. No alto do campo gramado, fica a capela de São Pedro, padroeiro lembrado anualmente com uma grande festa, com forró, porco e frango assado, mandioca, bolo e batata-doce.

Todos se conhecem desde pequenos. A cada dia se cumprimentam com alegria e, em alguns momentos, se tratam com um respeito quase cerimonioso. As mulheres cuidam do serviço da casa, capinam e plantam. Cada família tem sua própria plantação, mas na hora de fazer o roçado ou a colheita, os homens se ajudam em mutirão. O arroz, feijão, milho ou mandioca colhidos ficam com o dono da roça. Com a inauguração da associação de moradores, foi criada uma plantação coletiva e se comprou um caminhão. Agora, não é mais necessário carregar os mortos em macas de bambu até a balsa, para levá-los ao cemitério mais próximo, e os mais moços já podem seguir os estudos na cidade vizinha. Mesmo assim, precisam sair antes do sol e só voltam no meio da tarde, quando já não podem ajudar os pais na roça. Mas estes fazem questão de que os filhos estudem.

Surpresas

Os jovens estudantes vão trazer da escola novos elementos que certamente enriquecerão o estoque cultural guardado pelos remanescentes, "muito rico", segundo Dulce Maria Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares. Os costumes trazidos da África se misturaram ao mundo branco e indígena, criando uma cultura diversa. No norte de Sergipe, por exemplo, a comunidade de Mocambo, que dança o samba de coco, reza em latim na festa da padroeira de Santa Cruz.

Tradições européias e africanas convivem no mesmo espaço. Cada grupo remanescente revela uma surpresa. No Cafundó, na região paulista de Sorocaba, os moradores, vivendo quase em miséria, encantam com a poesia de uma língua própria de origem africana, a cupópia, tema do livro Cafundó - A África no Brasil, do lingüista Carlos Vogt e do antropólogo Peter Fry. Todo ano, durante mais de dois séculos, os calungas (grande grupo de descendentes de escravos divididos em várias comunidades em Goiás) interrompiam a fabricação artesanal da farinha de mandioca para celebrar as festas do Divino e da Folia de Reis. "A musicalidade, religiosidade, artesanato e toda a produção estética dos remanescentes constituem uma diversidade cultural valiosa frente à mesmice geral", avalia Dulce Pereira. Há 30 anos estudando a trajetória dos quilombos, o sociólogo Clóvis Moura, da Universidade de São Paulo, vê os remanescentes como uma fonte de reconstrução da memória e identidade brasileira. "Até hoje, a história dos pobres ficou invisível."

Para o país, será bom resgatá-la. Segundo o etnólogo Guilherme Barboza, o primeiro elemento a ser recuperado é a dignidade. "A dança e a música vêm junto. Se as pessoas se sentem gente, vivem seus valores." Certamente, as festas e a arte fascinam com mais facilidade os olhos estranhos. "Mas não é possível preservar a cultura sem criar melhores condições de vida e trabalho nas comunidades", diz Flávio Rodrigues da Silva, do Fórum Estadual de Entidades Negras. Muitos povoados não têm as mínimas condições de saúde, transporte ou educação. "No Maranhão, a maioria dos remanescentes não tem poço artesiano, escola primária ou eletrificação", informa Ivan Rodrigues Costa, do Projeto Vida de Negro, em São Luís. "Até hoje, as prefeituras trataram de forma diferente as comunidades negras e as caboclas (brancas) da vizinhança." O projeto já identificou 135 comunidades em todo o Maranhão, chamadas na região de "terras de preto".

Segundo Ivan, até os anos 60, esses grupos conseguiram sobreviver graças à própria estrutura fundiária do estado, baseada em pequenas propriedades e com muitas terras devolutas. "Mas chegaram as estradas e os projetos agropecuários, a terra se valorizou, e os moradores antigos foram sendo expulsos."

O próprio governo reconhece que, sem a titulação das terras, os remanescentes dos quilombos e toda a sua cultura estão ameaçados. "Não poder colher e plantar é a morte para essas pessoas", sentencia Dulce Pereira.

Terra sagrada

"A terra onde vivemos é uma fortaleza que os mais antigos deixaram para a gente", define Edu Nolasco de França, morador de 60 anos de São Pedro, no vale do Ribeira. Ele conta que as famílias sempre tiraram o sustento da terra. Nos últimos anos, entretanto, todos dividem uma angústia crescente: não poder trabalhar. A área foi definida como de proteção ambiental e os moradores não podem mais extrair palmito para vender, nem pescar, nem caçar, nem fazer o descanso da terra, pois quando a vegetação cresce é proibido cortá-la. Todos temem a fiscalização, e as multas são constantes.

"A legislação não respeita o uso tradicional da terra", aponta a advogada Michael Mary Nolan, que assessora os remanescentes do vale do Ribeira. "Não podemos esquecer que as comunidades são anteriores aos parques e que, se hoje ainda existe mata nesta região, é justamente graças a elas." Outro temor de todas as comunidades da região é a construção de barragens no rio Ribeira do Iguape (quatro projetos estão em estudo). Michael não entende como a mesma mata, que hoje merece tanta fiscalização, simplesmente poderá ser inundada. Seja pelo conflito de interesses, seja pelas restrições ambientais ou pela confusão cartorial, o processo de titulação promete ser trabalhoso.

Até o momento, o governo federal não estabeleceu um procedimento geral para a emissão dos títulos. Há dois projetos de lei em andamento no Legislativo, e outro está sendo preparado pelo governo. De qualquer maneira, já é consensual que o artigo 68 não precisa de regulamentação, sendo necessário apenas definir quem é o órgão competente e quais são os critérios para a titulação.

A Fundação Cultural Palmares, depois de fazer um primeiro mapeamento, está emitindo laudos identificatórios e organizando um banco de dados sobre a produção cultural dos grupos. Por sua vez, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), também do governo federal, foi o responsável pelas primeiras três titulações no Pará. Acredita-se que o instituto deve atuar nos casos das terras devolutas da União e das particulares, que seriam desapropriadas para fins de reforma agrária. Ainda não se sabe se haverá orçamento para cumprir a tarefa até o fim, mas o compromisso está sendo assumido. "Acreditamos que devemos interferir, pois há um direito constitucional a ser respeitado e também conflitos a ser evitados", diz Sebastião Azevedo, procurador-geral do Incra. Ele reconhece que o processo de grilagem ameaça as comunidades remanescentes.

Na esfera estadual, porém, sem esperar uma definição federal, alguns governos já estão se mobilizando. Em São Paulo, o governo reconheceu preliminarmente 21 comunidades. Uma lei, aprovada em setembro, determina que sejam tituladas as comunidades fixadas em áreas públicas estaduais. O procedimento deve ser definido até o final do ano, e alguns critérios já foram bastante discutidos. A demarcação das terras envolverá a comunidade, respeitando sua forma tradicional de ocupação. O título será coletivo, em nome da associação de moradores, e não individual. Em paralelo, o Itesp (Instituto de Terras de São Paulo), órgão encarregado da titulação, incluiu na sua proposta orçamentária de 1998 um projeto de assistência técnica às comunidades.

No Maranhão, o trabalho também já começou. No início de outubro, um decreto estadual reconheceu 15 comunidades remanescentes, determinando que tenham suas áreas medidas, demarcadas e tituladas. Também está previsto o investimento em infra-estrutura básica.

"Regularizar a propriedade dessas terras é um sinal de modernidade", conclui a antropóloga Lúcia Andrade. Para ela, a titulação dos remanescentes pode ser encarada como uma reforma agrária preventiva, pois fixa os moradores no campo. No vale do Ribeira, metade dos moradores da comunidade de São Pedro precisaram deixar suas casas para tentar a vida como meeiros em plantações da redondeza. Muitos dos que foram querem voltar, e os que ficaram não querem ir. "A nossa vida é aqui", diz Leonardo Dias Morato, morador da comunidade.

Revista Problemas Brasileiros

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