POR HELENICE RODRIGUES
A Argélia foi vítima da onda colonialista européia, que invadiu a África no século XIX. Na foto, argelinos reunidos em um café, em 1899
Tendo como subtítulo Declaração sobre o direito à insubmissão na guerra da Argélia, o Manifesto dos 121, lançado em Paris, no início de setembro de 1960, marcou a radicalização dos intelectuais de esquerda contra a guerra da Argélia (1954-1962). O documento representou um ato de contestação moral e política contra o Estado francês. Essa declaração foi uma resposta aos problemas surgidos nos primeiros meses de 1960, e dizia respeito à "insubmissão dos jovens soldados" e às "redes de apoio" à Frente de Libertação Nacional (FLN), partido socialista da Argélia, que lutava pela independência do país. O Manifesto também representou uma forma de reação a uma situação política bloqueada, principalmente após o fracasso das negociações de Melun . Frente a uma guerra que se eternizava, a esquerda progressista percebeu que era preciso agir de maneira eficaz e promover discursos mais incisivos.
Em nome da "moral" e da "verdade", os assinantes do manifesto alertaram a opinião pública nacional e internacional sobre a violência e a arbitrariedade cometidas pelas tropas francesas na Argélia. Aliás, essa guerra colonial, jamais declarada pelas autoridades francesas, ocorreu em um contexto de censura e de opacidade na metrópole. A gravidade da situação na Argélia e na França impôs a urgência de uma ação coletiva: na colônia africana, eram comuns as torturas, o racismo e massacres de civis; na metrópole européia, aconteciam prisões de jovens soldados desertores, que recusavam participar do confl ito colonial, e dos civis que, por razões de princípios, concederam apóio (material, sobretudo) aos combatentes argelinos.
O APOIO AOS ARGELINOS
A chamada rede Jeanson (réseau Jeanson, em francês) foi um grupo de militantes comunistas, composta, em sua maioria, por jovens comunistas, sindicalistas e militantes cristãos, que se organizou na França, em 1957. Liderados pelo filósofo francês Francis Jeanson, eles apoiavam a independência da Argélia, hospedavam os membros da FLN e distribuíam dinheiro e papéis para os rebeldes; por isso também eram chamados de "porteurs de valises" . A prisão de vários integrantes da rede Jeanson, em fevereiro de 1960, acusados de apoiar a causa argelina, desencadeou grandes turbulências na imprensa francesa. Paralelamente, a publicação de dois livros revelou à opinião pública francesa a existência de casos de insubmissão e transgresdeserção por parte de jovens soldados e reservistas: Le Déserteur, lançado em 1960, de Maurienne (pseudônimo de Jean-Louis Hurst), e Le Refus, publicado no mesmo ano, de Maurice Maschino. Os primeiros casos de insubmissão ocorreram em 1956. Jovens comunistas e "cristãos da esquerda" se negaram a atacar o povo argelino e escolheram a "recusa de obediência" dentro do exército francês, ou seja: a prisão.
Portanto, é nesse contexto de repressão jurídica ("processo Jeanson") e de impasse político (fracasso das negociações de Melun), resultantes do confl ito argelino, que 150 personalidades francesas (inicialmente 121) decidiram redigir uma "declaração em favor do direito de insubmissão na guerra da Argélia". A carta foi publicada integralmente na revista Vérité - Liberté e se tornou objeto de censura nos demais meios de comunicação franceses.
Em resposta à proibição da divulgação, e como forma de irreverência, a revista de filosofia Les Temps Modernes (agosto/setembro de 1960) deixou em branco as duas páginas iniciais desse manifesto, seguidas, na terceira página, da lista dos assinantes.
Ao lado, Simone Beauvoir e Jean- Paul Sartre. Abaixo, André Breton: intelectuais em defesa da Argélia
OS ASSINANTES DO MANIFESTO
Concebido, inicialmente, como um "apelo à oposição internacional" por parte das redações das revistas Les Temps Modernes e Lettres Nouvelles, o Manifesto dos 121 dá margem a diferentes leituras.
Incontestavelmente, se ele representa uma ilustração de solidariedade dos intelectuais (da esquerda progressista) em relação aos membros da "rede Jeanson" e aos jovens reservistas dissidentes, o Manifesto desempenha também o papel de um testemunho de fidelidade, um gesto de transgressão intelectual e um sobressalto ético contra a continuidade da guerra da Argélia. Sem dúvida, esse último aspecto foi levado em conta por alguns assinantes que, em princípio, não concordavam inteiramente com as teses defendidas por Les Temps Modernes, entre elas, a da independência incondicional da Argélia.
Vale dizer que o combate ao colonialismo, por parte da esquerda francesa, deu margem a diferentes concepções de uma ação intelectual e a posições políticas antagônicas. Se, para a esquerda moderada, a violência na Argélia derivava dos abusos da colonização, em contrapartida, para os progressistas, a empresa da colonização é, por sua essência, a própria violência. No entanto, a partir dos acontecimentos de 1960, a posição da esquerda moderada tornou-se mais nuançada, admitindo, finalmente, que a colonização é um princípio de violência.
Detentores de um "capital cultural", os assinantes do Manifesto dos 121 (após sua publicação, o número atinge 255) constituem essa intelligentsia da esquerda heterogênea, vinda dos mais diversos horizontes políticos. Aliás, como bem constatou o sociólogo Jean-Paul Aron, "a partir de sua redação, o espírito dos 121 paira sobre a cultura (...). Desde o final da Segunda Guerra Mundial, não se tinha visto a manifestação de uma oligarquia tão sublime, de uma fraternidade dissidente tão heróica. A partir de então, entre os intelectuais parisienses, se fala de fulano e beltrano: 'ele faz parte dos 121', como se dizia, em 1945, a propósito dos gaullistas:'ele é companheiro da liberação'".
Entre os intelectuais que assinaram o Manifesto, estavam Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Jean Pouillon, que faziam parte da equipe de Les Temps Modernes; André Breton, Michel Leiris e Maurice Nadeau, da Lettres Nouvelles; Robe-Grillet, Nathalie Sarraute, Marguerite Duras, Maurice Blanchot, escritores representantes do estilo literário Nouveau Roman; além de importantes nomes das artes e da esquerda francesa, como Simone Signoret, Pierre Boulez, Claude Sautet, François Truff aut, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal- Naquet, Henri Lefèvre, Hubert Damisch, André Mandouze e Robert Barrat.
Guerrilheiro do Exército de Libertação Nacional durante a Guerra da Argélia (1958)
O IMPACTO DOS 121
Recusando toda forma de moralismo abstrato, o Manifesto dos 121 colocou explicitamente a questão do direito à insubmissão "passiva" contra o arbitrário e a violência, e conotou a idéia da "desobediência civil". Nesse sentido, sua oposição fundamental à "razão de Estado" se justificou pelo caráter "imoral" de uma guerra colonial. A "insubmissão" e a "desobediência civil" se legitimaram como formas de reação às opressões e às coerções dos homens.
Conseqüentemente, o impacto dessa resolução teve repercussões no exterior: declarações e cartas de solidariedade aos "121" não tardam a ser redigidas pela classe intelectual na Inglaterra, Alemanha, Itália e Estados Unidos. Enquanto detonador, o manifesto dos "121" alterou, indubitavelmente, os dados do problema da insubmissão e da deserção na guerra. Além do mais, ele contribuiu para enfatizar os interesses políticos específicos de cada formação (direita/esquerda), assim como as oposições fundamentais que separavam as diversas formações da esquerda (do Partido Comunista - PC - ao Partido Socialista Unificado - PSU), assim como as clivagens existentes dentro de cada partido e movimento.
Editor-chefe da Les Temps Modernes, Marcel Péju, advertiu: "tanto no PC como no PSU, e também em centrais sindicais, entre os leitores do L'Express, como os do France-Observateur, encontram-se, cada vez mais, homens e mulheres dispostos a romper com as habilidades, as cautelas; rejeitar o verbalismo da esquerda e a se orientar em direção às ações radicais" . Ora, o Manifesto dos 121 provocou novos posicionamentos no interior do campo intelectual, obrigando um número significativo de intelectuais a aparecer, a abandonar o domínio do não-dito, o silêncio tático e a participar do debate da cité.
UMA GUERRA CENSURADA
Os principais partidos revolucionários da guerra foram: a Frente de Libertação Nacional (FLN) e o Movimento Nacional Argelino (MNA). Ambos almejavam a independência da Argélia; contudo, a FLN queria implantar um governo socialista, e a MNA desejava seguir a política do general francês Charles de Gaulle. Essa discordância entre os argelinos acabou gerando, de fato, duas guerras: uma contra a França, outra entre a FLN e a MNA.
No final, a FLN acabou ganhando a guerra e os franceses reconheceram a independência da Argélia em 5 de julho de 1962. A República Popular Democrática da Argélia foi proclamada, e a FLN tornou-se o partido único do país. Mas na década de 1980 o multipartidarismo foi instaurado. A partir da década de 1990, a mudança do regime socialista para a economia de livre mercado começou a ser desenvolvida na Argélia, por meio do controle do governo.
A ação pressupôs novas formas de protesto: a passeata do dia 27 de outubro, por exemplo, em solidariedade ao Manifesto dos 121; os debates que se iniciam dentro dos partidos políticos da esquerda, assim como a redação de outros manifestos (o da esquerda moderada) e de "contra-manifestos".
No momento em que as inculpações e as disposições ministeriais atingiram os funcionários e os artistas, que foram alvos de punições, a solidariedade da esquerda com os "121" se fez sentir.
Enquanto a guerra da Argélia se articulava internamente, tal como na imagem do Congresso de Souman (1955), intelectuais da esquerda francesa lutavam em defesa da libertade argelina em território francês, entre eles, o filósofo Paul Ricoeur
Depois do Manifesto, a Argélia e a França nunca mais seriam as mesmas, tamanho o engajamento dos signatários
Embora discordando politicamente com o teor do Manifesto, os partidos políticos da esquerda (do Section Française de l'Internationale Ouvrière - SFIO - ao Partido Comunista Francês - PCF), contestaram tais medidas de repressão, sobretudo por se oporem à continuação da guerra.
Fiéis aos princípios leninistas, o PCF condenou o ato de insubmissão, em razão mesmo de sua concepção da luta armada. Segundo o jornal comunista L'Humanité (de 16/10/60), "os soldados comunistas devem participar de todas as guerras, mesmo sendo elas reacionárias".
Durante o mês de setembro de 1960, houve a cristalização de um movimento, cuja amplitude "sacudiu a esquerda, escandalizou a direita, emocionou o poder e surpreendeu, até mesmo, seus promotores", afirmou Les Temps Modernes (outubro/ novembro de 1960). As petições se sucederam nos meses seguintes, ampliando, assim, o fenômeno de engajamento intelectual. A primeira delas, o Manifesto dos intelectuais franceses, na verdade, um "contra-manifesto" assinado por 300 personalidades da direita, condenou de maneira virulenta as "declarações escandalosas" e se posicionou em defesa dos valores da França e do "Ocidente".
A segunda petição, o "manifesto dos estudantes, professores e sindicalistas", intitulada Em favor de uma paz negociada na Argélia, publicada na revista L'enseignement public (mês de outubro), foi idealizada, originalmente, como uma proposição coletiva de apoio e solidariedade aos 121. Fundamentada no princípio de "uma paz negociada", esse manifesto exprimiu a opinião de uma fração política da esquerda moderada, como a da esquerda cristã. No entanto, se observarmos melhor a lista dos intelectuais peticionários, constatamos a representatividade da nova tendência paradigmática que emergia no cenário intelectual francês, nos anos 60. Aderiram a esse novo manifesto, entre outros: Georges Canguilhem, Vladimir Jankélévitch, Ernest Labrousse, Claude Lefort, Roland Barthes, Paul Ricoeur, Edgar Morin, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Marie Domenach.
Após a prisão pelo exército francês, os dirigentes da FNL são levados em direção ao Cairo (Egito), em outubro de 1956
A VONTADE DE AGIR
Além dessa solidariedade aos "121", divergências de posições, no entanto, se fizeram sentir em relação aos problemas levantados no primeiro manifesto, como a insubmissão. Aliás, próximo às posições da esquerda cristã, Paul Ricoeur, em um texto publicado na revista Esprit (outubro de 1960), tornou essa questão mais inteligível. "Não aconselho a insubmissão (...), mas recuso condená-la", afirmou o filósofo. Segundo ele, existia, entre a esquerda intelectual e os insubmissos, uma mesma percepção da "profunda significação" do confl ito: a guerra "ilegal", contra um povo que aspirava à sua liberação política. A mesma percepção apareceu em relação ao ato de insubmissão e à sua representação. Na opinião de Ricoeur, a recusa em admitir o recrutamento de novos jovens combatentes correspondeu, sem dúvida, a "uma forma de não cooperação". "Ora, inelutavelmente, nós nos engajamos, de uma forma ou de outra, a defender a não cooperação" (p. 1606). Mas, ao mesmo tempo, ele constatou a ineficiência da política francesa, "a inércia da esquerda" e, conseqüentemente, a diminuição das chances de uma paz negociada.
Ricoeur argumentou a ilegalidade da guerra e desaprovou os métodos de luta armada adotados
Por outro lado, segundo Ricoeur, o apelo à insubmissão colocou o problema da ilegalidade do Estado e, por vias de conseqüência, o perigo de uma ruptura com o Estado (posição da esquerda moderada). De acordo com o filósofo, apesar da evidente ilegalidade da guerra, o Estado possui uma base de legalidade, uma forma constitucional que permite outras formas legais de ação. Desaprovando,assim, o apóio à FLN, Ricoeur insistiu, todavia, na necessidade de uma "ação de massa", capaz de alterar o curso da política.
Nesse ano de 1960, as palavras "ação" e "agir" substituíram, nos discursos das revistas da esquerda moderada, a palavra "engajamento". A concepção de uma "ação" intelectual inscreveuse na lógica da própria filosofia, ou seja, essa ação não possuiu um projeto definido, uma vez que ela representou em si mesma um projeto universal, tendo por único objetivo a recusa do abstrato e a vontade de agir. Ir além do simples protesto moral, da indignação, e realizar uma "ação" política: tal era o projeto da esquerda progressista. Lembramos que, na perspectiva existencialista, a ação (práxis) pressupõe sempre uma mudança social.
O SIGNIFICADO DA AÇÃO
Embora as revistas Esprit e Les Temps Modernes fossem governadas pelos mesmos princípios de justiça, democracia e liberdade, seus respectivos engajamentos tomaram rumos diferentes, em razão de suas concepções distintas de ação ou de "práxis". A ação, na perspectiva de uma revista como Esprit se confundiu com a refl exão, que enfatizava o debate, fazendo da pedagogia (realização de congressos, colóquios) uma de suas principais vocações. No entanto, essa "ação" ou esse projeto de "ação" raramente ultrapassava o nível do discurso.
Em contrapartida, na moral existencialista, expressada na Les Temps Modernes, o engajamento devia se traduzir por atos reais. Nessa perspectiva, a atitude moral do intelectual só podia ser eficaz se ela supunha uma mudança de ordem política. O engajamento da revista contra a guerra da Argélia assumiu, desde o início, a forma de um combate político. Por um lado, ele era inseparável de uma vontade de reforma da esquerda; por outro lado, ele era solidário à FLN. Assim, as iniciativas tomadas pela revista - os manifestos, os apelos, as passeatas - correspondiam à vontade de concretização de seus ideais morais e políticos. Afinal, Les Temps Modernes desempenhou um papel fundamental enquanto "tribuna" do diferente. Em outras palavras, tomando uma posição coerente em favor das vítimas da repressão, a revista alertou uma fração da opinião pública sobre a existência de campos de internamento, de casos de torturas e de violências perpetradas na Argélia.
A ação intelectual, em favor da liberdade da Argélia, foi respaldada pelo discurso e pela palavra
COLÔNIA LIBERTADA Memorial à Guerra da Argélia, localizado em Paris e criado pelo artista Gérard Collin-Thiébaut
Se, do ponto de vista existencialista, o pensar e o agir não parecem constituir uma aporia, a concepção de uma "ação" intelectual, equivalente à noção de mudança, não poderia ter outro suporte pedagógico que não fosse o discurso e a palavra. Nos primeiros anos do confl ito argelino, grande parte da população francesa se opunha à independência da Argélia. Em contrapartida, no final de 1960, a maioria dela se manifestava a favor. A evolução das posições políticas dos intelectuais da esquerda moderada e dos partidos da esquerda tradicional (PCF, SFIO, PSU) pareciam ser concomitantes às mudanças ocorridas na opinião francesa.
O jogo de forças específicas existentes, naquele momento histórico, no campo intelectual (em que as paixões se misturam, inexoravelmente, ao desejo de racionalidade), condicionou um tipo particular de discurso, que tentava exprimir um "valor de verdade". Nesse contexto (de julgamento de valores e de propostas de resistências), nada mais natural que o emprego freqüente dessa palavra, embora faça objeto de conotações diversas. Assim, os diferentes discursos, que tentaram provar a legitimidade de suas teses respectivas, recorreram ao substantivo "a verdade". No "processo Jeanson" empregou-se a expressão "difusão da verdade". Por sua vez, a revista Les Temps Modernes insistiu: "a verdade é que a violência traz consigo um sentido novo; que ela encobre uma outra política, recusada, de maneira precisa, pela esquerda dita respectueuse", em alusão à peça teatral de Sartre, La putain respectueuse.
No Em favor de uma paz negociada, manifesto de solidariedade aos 121, a palavra "verdade" reforçou a convicção da necessidade de uma solução imediata do problema argelino. "Os franceses pressentem a verdade. A verdade se impõe, independentemente de toda doutrina política e moral, antes de todo debate sobre o nacionalismo argelino, sobre a natureza da FLN e sobre a do regime instalado na França", advertiram seus autores.
Sem dúvida, o "tempo da ação" marcou uma nova fase no engajamento dos intelectuais franceses contra a guerra da Argélia, fase que correspondeu, incontestavelmente, a uma evolução da opinião pública, já resignada a uma inevitável independência da Argélia.
HELENICE RODRIGUES é Doutora na Université de Paris X- Nanterre em História (sobre revistas intelectuais francesas e o fenômeno do engajamento durante a guerra da Argélia). Pós-doutorado no Institut d'Histoire du Temps Présent, na França. Professora associada na Universidade Federal do Paraná e bolsista do CNPq.
Revista Leituras da Historia
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