terça-feira, 29 de setembro de 2009

Crise econômica lembra lições de 1929


Há 80 anos o Brasil sofreu com a Grande Depressão, mas saiu dela com relativa rapidez

HERBERT CARVALHO

Desde a quebra do centenário banco de investimentos Lehman Brothers, no ano passado, o espectro da crise de 1929 ronda o mundo. Oitenta anos após o crash da Bolsa de Nova York, as comparações com a crise atual são inevitáveis: ambas começaram a partir de uma desenfreada especulação no sistema financeiro americano e gradativamente contaminaram o setor produtivo dos EUA, espalhando a seguir a contração econômica e o desemprego por todo o planeta. Considerando o capitalismo um regime oficialmente implantado na era das revoluções americana e francesa, seu verdadeiro teste de sobrevivência se deu após a célebre "quinta-feira negra" de 24 de outubro de 1929. Nesse dia, quase 13 milhões de ações mudaram de mãos no mercado de valores nova-yorkino por preços próximos do zero, destruindo os sonhos daqueles que as possuíam e levando os Estados Unidos a encerrar uma década de abundância material e euforia social para mergulhar, assim como o restante do mundo, na Grande Depressão.

John Kenneth Galbraith, autor de vários livros sobre a crise de 1929, cunhou uma expressão para resumir seu significado: "A única coisa certa é que algum dia, sem falta, haverá outro desastre semelhante". Para o economista e ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, não há que se falar em desastre, já que em sua visão capitalismo e crise são inseparáveis: "No exato momento em que as instituições se alteram em razão de uma crise, a crise futura já está nascendo. Na verdade, são as crises que tornam mais eficiente o capitalismo, que sai delas sempre melhor do que entrou".

Para melhor compreensão da crise atual e de seus reflexos para o país a partir de uma perspectiva histórica, Problemas Brasileiros traça um paralelo entre os dois momentos críticos do capitalismo e suas consequências políticas, tanto nos EUA como no Brasil.

Rothschilds instantâneos

Como aconteceu até janeiro deste ano, em 1929 os Estados Unidos viviam sob a égide do Partido Republicano, com inabalável fé no liberalismo econômico e no princípio de que os mercados devem se autorregular, sem interferência do governo. Após a Primeira Grande Guerra, o eixo da economia mundial transferira-se para este lado do Atlântico e o dólar aos poucos substituía a libra esterlina como moeda de troca internacional.

Os EUA, que já haviam superado os europeus na exploração econômica da América Latina, foram os grandes beneficiários do conflito: durante as hostilidades, exportaram artigos manufaturados aproveitando-se da prioridade dada à produção bélica pela indústria dos países em guerra; concertada a paz, passaram a financiar a reconstrução da Europa devastada. Esses fatores fizeram proliferar e desenvolver-se empresas industriais, agrícolas, minas, bancos e companhias de seguros que rapidamente se transformaram em sociedades anônimas de capital aberto. Empreendedores oriundos de camadas humildes prosperaram da noite para o dia engendrando o mito do self-made man e seu complemento, o American way of life, um estilo de vida baseado na ilusão de que a prosperidade não tem limites. Não por acaso, ao ser eleito em 1928, o republicano Herbert Hoover afirma: "Os EUA hoje estão mais perto do triunfo final sobre a pobreza do que nunca na história de qualquer país".

Os americanos, porém, estavam na realidade às vésperas de perder seus empregos e de ser jogados na miséria das Hoovervilles, como se tornaram conhecidas as enormes favelas que surgiram nas grandes cidades americanas, que em nada ficavam a dever às nossas Rocinhas de hoje.

Tomadas por uma espécie de epidemia que grassou em todas as classes sociais, as pessoas, impregnadas pela fantasia do enriquecimento rápido e fácil, aplicavam todas as suas economias no mercado de ações. Barbeiro ou banqueiro, engraxate ou homem de negócios, todos apostavam e todos ganhavam; a única questão que surgia na cabeça de muita gente era por que não haviam pensado nisso antes. Ignorando os indícios de que a recessão já chegara ao campo e que a superprodução, descolada da demanda, se instalava na indústria, os incautos tornaram-se vítimas de uma insensatez coletiva que, em menor grau, se manifesta também na crise atual, igualmente gerada na ciranda financeira, que Galbraith explica de maneira singela: "A bolsa de valores é inerentemente instável, e a instabilidade se relaciona com sua capacidade soberbamente orquestrada de atrair pessoas com a promessa de riqueza sem esforços. No final da década de 1920, os Estados Unidos estavam repletos de Rothschilds instantâneos". Se assim era naquela época, imagine-se nos dias que correm, quando os estoques dos chamados "derivativos financeiros" (produtos da especulação que geram mais especulação) atingem a fantástica cifra de US$ 1 quatrilhão – valor basicamente virtual, pois equivale a 20 anos da produção mundial.

Quando a Bolsa entrou em parafuso na última semana de outubro de 1929, afogada por um repentino tsunami de ordens de venda que pulverizaram os preços das ações, a euforia transformou-se em desespero. À beira da exaustão, corretores choravam e arrancavam o colarinho da camisa enquanto imensas fortunas se dissolviam como açúcar na água. As piadas macabras da época diziam que com cada pacote de ações do Goldman Sachs o investidor recebia um revólver e que quando alguém pedia um quarto em um hotel o recepcionista perguntava: "É para dormir ou para pular?"

Nos meses seguintes desapareceram 9 milhões de contas de poupança, 85 mil empresas faliram, os salários encolheram 40% e os famintos na fila do pão somavam 2 mil por dia num único distrito de Nova York. Em 1932, quando o democrata Franklin Delano Roosevelt impôs a Hoover uma derrota por 472 votos contra 59 no colégio eleitoral – bem mais acachapante do que o placar de 365 a 173 de Barack Obama contra o republicano John McCain –, 25% dos americanos estavam desempregados e vagavam à míngua por um país que tivera seu produto nacional bruto reduzido a metade do que fora quatro anos antes.

Modelo em xeque

A quebra do sistema financeiro mundial atingiu o Brasil em cheio em 1929, fazendo desabar o preço do café, então responsável por 70% das exportações do país. Mais do que isso, colocou em xeque o modelo agrário exportador vigente desde a Independência e que, na passagem da monarquia para a república, se alterara apenas pela substituição da mão-de-obra escrava pela de imigrantes assalariados.

Esse modelo já estava em crise desde o fim do século 19, quando a cotação do café no mercado internacional começou a cair, devido ao excesso de oferta decorrente da emergência de outros países produtores. O preço do produto vinha sendo sustentado desde 1906 pelo Convênio de Taubaté, artifício engendrado pelas oligarquias cafeeiras de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, por meio do qual os governos dos três estados produtores adquiriam os excessos de estoque – ao final da década de 1920, o Brasil produzia 21 milhões de sacas anuais para um consumo mundial de 22 milhões. Como resultado, em outubro de 1929 os fazendeiros ainda estavam exportando a safra de 1927, enquanto a safra de 1928 estava toda retida nos armazéns de valorização do café gerenciados pelo Instituto do Café, criado em São Paulo em 1924. Quando o custo da estocagem se tornou insuportável, a solução foi a queima pura e simples do excedente.

Ocorre que toda essa engenharia financeira era baseada em empréstimos externos avalizados pelo governo federal, não por acaso controlado durante toda a República Velha (1889-1930) pelos cafeicultores. Dessa forma, a crise mundial chega ao país não apenas fazendo desabar as encomendas, em razão da recessão que atingia escala planetária, mas também fechando a torneira do crédito: um empréstimo de US$ 50 milhões solicitado pelo governo federal brasileiro para permitir que o Instituto do Café ajudasse os fazendeiros é negado por Wall Street. O crédito sumira, mais ou menos como ocorre na atual crise.

A política de valorização do café provocava inflação, prejudicando a população urbana e absorvendo recursos que os outros estados reclamavam para a valorização de seus próprios produtos de exportação, como o charque e os couros do Rio Grande do Sul. Como resultado, pela primeira vez cindem-se as oligarquias que dominavam o Brasil desde os tempos coloniais, resultando, no plano político, na formação da Aliança Liberal, que trazia uma inédita dobradinha entre um gaúcho, Getúlio Vargas, para presidente, e um paraibano, João Pessoa, para vice. Quando esta é derrotada pelas urnas fraudadas que então imperavam, estala a Revolução de 1930, amparada pelas massas urbanas revoltadas pela socialização do prejuízo, tantas vezes praticada ao longo de nossa história.

Com o movimento armado que em apenas 20 dias apeia do poder o paulista Washington Luís – enviado ao exílio na companhia do também paulista Júlio Prestes, o presidente eleito que não chega a assumir –, finda-se uma era: a queda abrupta das exportações e também das importações dos produtos manufaturados que dependiam da receita do café provoca a ruína, a desonra e a desgraça de famílias outrora abastadas; fazendeiros se suicidam, e os jornais trazem cotidianamente notícias de falências, concordatas e tragédias como a do palacete da Rua Piauí, no bairro paulistano de Higienópolis, onde o empresário afogado em dívidas Abelardo Laudel de Moura se arma com uma navalha, degola os filhos pequenos e se mata em seguida.

New Deal caboclo

O Brasil de 1930 era um país agrário-exportador com uma população de 37,6 milhões de habitantes, cinco vezes menor que a atual. A expectativa de vida do brasileiro não passava de 39 anos para homens e 42 para mulheres, quase a metade do que é hoje. A principal matriz de transporte, além da navegação de cabotagem, era a ferroviária. Rodovias, usinas hidrelétricas e siderúrgicas eram poucas ou inexistentes. A indústria incipiente concentrada em São Paulo, com mão-de-obra de imigrantes estrangeiros, restringia-se aos segmentos de bens não-duráveis e semiduráveis.

Com a crise de 1929 e o colapso da produção no campo, a população rural, até então maioria absoluta, reforça o processo de migração para as cidades, oferecendo a mão-de-obra barata e abundante de que a indústria necessitava para desenvolver-se. Urbanização e industrialização seriam, daí por diante, os fatores a balizar a modernização do país. Caberia ao latifundiário Getúlio Vargas administrar a passagem da hegemonia política e econômica do campo para a cidade, com forte intervenção do Estado.

Guardadas as proporções e as diferenças, o Brasil reproduzia a recuperação econômico-social do New Deal, comandado nos EUA por Franklin Roosevelt, um senhor rural do vale do rio Hudson que despertou entre seus pares da classe alta uma hostilidade sem precedentes, em razão de suas medidas consideradas estatizantes e em defesa da classe trabalhadora. Embora de raça e origem social opostas, o presidente Obama tem em Roosevelt seu paradigma de estadista, em razão dos desafios semelhantes que as respectivas crises econômicas colocaram perante ambos. As principais medidas do New Deal – expressão cunhada durante a campanha eleitoral de 1932, na qual Roosevelt declarou que assumia um "novo trato" com o povo americano –, inspiradas nas ideias do economista inglês John Maynard Keynes, foram: concessão de empréstimos públicos a empresários urbanos e rurais em dificuldades; controle estatal da produção e dos preços de boa parte dos produtos industriais e agrícolas; construção de grandes obras públicas para absorver os desempregados; instituição do salário mínimo, proibição do trabalho infantil e das horas extras, elevação dos salários, redução da jornada de trabalho e legalização dos sindicatos; criação do seguro-desemprego e da previdência social.

Embora tenham prevalecido por décadas, até ser contestadas pelo neoliberalismo do republicano Ronald Reagan, as instituições criadas pelo New Deal só atingiram resultados significativos quando os EUA começaram a se beneficiar das encomendas militares, que transformaram o país em um verdadeiro arsenal às vésperas da Segunda Guerra Mundial e durante esse conflito.

O New Deal caboclo adotado por Vargas, em escala bem mais modesta, também permitiu ao Brasil sair da crise com relativa rapidez, iniciando um ciclo com taxas médias anuais de 7% de crescimento, que prevaleceriam até o final dos anos 1970, no ocaso da ditadura militar. Na agricultura, o governo comprou e queimou o excedente do café (entre 1931 e 1944 foram incinerados 78,2 milhões de sacas, quantidade equivalente ao consumo mundial de três anos), proibiu o plantio por cinco anos e estimulou outras culturas de exportação, como o algodão, que também se destinava ao consumo interno, absorvido pela crescente industrialização. Entre 1933 e 1939 a indústria brasileira cresceu em média 11,2% ao ano, concentrando-se em metalurgia de pequeno porte e bens de consumo como papel e papelão, têxteis, vestuário e calçados.

A marca mais duradoura da era Vargas, entretanto, verificou-se nas relações laborais, de modo a aplacar os até então agudos conflitos entre capital e trabalho, considerados durante toda a República Velha como assuntos da polícia, que reprimia greves e manifestações operárias de maneira sangrenta. Uma das novidades do governo provisório já em 1930, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio introduziu a Carteira Profissional e regulamentou a duração da jornada em oito horas diárias, as férias e o descanso semanal remunerado, o trabalho das mulheres e dos menores. Todos esses dispositivos, incluindo o direito de organização sindical de patrões e de empregados, iriam fazer parte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a partir da década de 1940, quando também começa a atuar a Justiça do Trabalho. Os institutos de aposentadoria e pensões, englobando categorias profissionais em âmbito nacional, surgiram também a partir de 1930, embora a legislação não contemplasse os trabalhadores rurais, o que somente veio a acontecer meio século depois, na Constituição de 1988.

A exemplo do que ocorreu com o New Deal nos EUA, o regime de garantias laborais – apesar de contestado até hoje pelos setores conservadores de ambos os países – contribuiria para colocar renda nas mãos dos trabalhadores, transformando-os em consumidores de um mercado interno cada vez mais forte, que na atual conjuntura está sendo apontado como a principal alternativa da economia brasileira contra as dificuldades externas. Na política, elas representariam a base para Vargas, deposto em 1945, voltar ao poder eleito pelo povo na década de 1950, quando diria em um discurso de 1o de Maio, dirigindo-se aos trabalhadores: "Hoje estais com o governo. Amanhã sereis governo". A profecia cumprir-se-ia com a eleição em 2002 do líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, que em seu segundo mandato tem agora a dura tarefa de enfrentar a crise internacional, após ter surfado durante quatro anos nas ondas de vacas gordas da economia mundial.

Pós-crise

Felizmente, tanto no Brasil como no mundo, há mais diferenças conjunturais do que semelhanças entre as duas crises. A primeira delas é que, apesar do discurso neoliberal, o governo americano assustou-se diante do pânico financeiro e da hecatombe bancária que se desenhava após a quebra do Lehman Brothers e interveio pesadamente com auxílios que, só no caso do Citigroup, superaram os US$ 300 bilhões, o que não ocorreu na crise de 1929, quando bancos faliram um após outro, desabando como um castelo de cartas. Em um movimento sem precedentes que envolveu trilhões de dólares ao redor do mundo desenvolvido, bancos centrais e governos assumiram ativos podres e estatizaram parcialmente instituições financeiras, para evitar o desastre maior.

O mundo neste início de século 21 também é outro: apesar do refluxo no comércio internacional, da exiguidade do crédito e da ameaça de retorno a um protecionismo comercial exacerbado, a simples existência de países emergentes com grandes mercados internos, como é o caso dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), oferece a perspectiva de que desta vez, ao contrário das crises anteriores, serão os países ricos os mais afetados.

Em termos estruturais, porém, a situação pós-crise reclama novas instituições reguladoras, que impeçam o surgimento de bolhas e façam respeitar elementares regras de segurança financeira, pois o próprio mercado já não confia nas chamadas agências de classificação de risco, que distribuíram num dia certificados AAA para títulos que, 24 horas depois, revelaram-se micados.

No plano da economia real, a derrocada das montadoras americanas indica não apenas a continuidade da transferência desse tipo de indústria manufatureira dos EUA para outros continentes, mas também a mudança de paradigmas, com vistas a conciliar eficiência e preservação ambiental. Esse e outros desafios, como o de fortalecer as instâncias multilaterais de negociação desprezadas durante a era Bush, exigem do presidente Obama uma postura de estadista no nível de seu predecessor Franklin D. Roosevelt.

Juros e custeio

Como parte do mundo globalizado, o Brasil de 2009 não está imune aos efeitos da crise, que terá como provável consequência imediata a redução no crescimento impetuoso do PIB, da ordem de 5% ao ano, que se verificava já por quatro anos seguidos. A saúde econômica atual do país permite, contudo, olhar tanto para o futuro como para os 80 anos decorridos desde a crise de 1929 com uma visão confiante.

O Brasil industrializou-se de maneira acelerada desde os anos 1930 e após um longo período de substituição de importações abriu, em 1990, seu mercado interno à concorrência dos produtos importados, conferindo à indústria nacional um novo patamar de competitividade. Além de commodities agrícolas (como a soja) e minerais, hoje exportamos produtos manufaturados e até aviões, com uma postura de autêntico global player, ou seja, de um país que vende de tudo para todos os mercados, pois nossos compradores também se diversificaram, em especial nas últimas décadas.

Com a inflação sob controle desde a implantação, em 1995, do Plano Real, hoje o Brasil, além de estar livre do problema da dívida externa – um tormento para os sucessivos governos durante todo o século passado –, exibe reservas superiores a US$ 200 bilhões. A dívida pública, embora elevada em razão da política de juros altos em prática desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, mantém-se abaixo de 40% do PIB.

Outro trunfo importante obtido ao longo dessas oito décadas foi a persistente redução das desigualdades regionais e, mais recentemente, das sociais. A marcha para o oeste e a construção de Brasília aceleraram a integração das regiões norte e centro-oeste ao processo de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que a indústria deixava de ser uma exclusividade do sul e do sudeste. E, de acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos quatro anos a classe média brasileira aumentou de 42% para 52% da população, ao mesmo tempo em que o percentual de pobres e indigentes caía de 35% para 24% do total. Esses números indicam o fortalecimento do mercado interno e da renda das famílias em razão dos programas de transferência de renda, da valorização do salário mínimo e da geração de empregos formais, que no primeiro semestre de 2008 alcançou o recorde de 1,36 milhão de novos postos de trabalho.

Entretanto, se é certo que no Brasil a crise financeira não se manifestou internamente a não ser num punhado de empresas que especulavam com derivativos cambiais e foram atropeladas pela alta do dólar, também é verdade que aqui o grande escândalo financeiro reside na própria taxa oficial de juros, que continua a maior do mundo.

Na opinião do economista Paulo Rabello de Castro, presidente do Conselho de Planejamento Estratégico da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio SP), este é o momento de mudar a política monetária praticada pelo Banco Central: "O Brasil não favorecerá quem verdadeiramente investe e produz enquanto não enfrentar a contradição de que as taxas de juro funcionam como freio quase permanente ao progresso sustentado. Um país que persiste em manter alta a taxa de juro não pode almejar a uma estabilidade duradoura". O ex-ministro Delfim Netto concorda e acrescenta que além dos juros o governo federal precisa cortar gastos de custeio, de modo a poder liberar recursos para investimentos públicos, como as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a exploração do petróleo do pré-sal.


O fantasma do protecionismo

A professora de economia da Fundação Getúlio Vargas Eliana Cardoso, preocupada com a retração de 12,4% da produção industrial verificada em dezembro de 2008 sobre o mês anterior (14,5% de queda, em relação ao mesmo período do ano anterior), acha que até é possível o Brasil passar por uma "recessão técnica", ou seja, uma redução no PIB por dois trimestres consecutivos.

"Durante cinco anos desfrutamos de um cenário mundial excepcional, com farto crédito externo e constantes altas dos preços das commodities, que ainda representam 50% de nossas exportações. De repente esse quadro se inverteu: o crédito sumiu e os preços despencaram pela metade. Felizmente, a situação fiscal brasileira é bem melhor do que em crises passadas", avalia Eliana. "Hoje o endividado é o setor privado, enquanto o governo acumulou reservas e conta com a queda da Selic para melhorar a relação entre o PIB e a dívida pública" acrescenta.

Embora aceite o argumento de que o poder público deve atuar com energia para restringir o desemprego, Eliana acha que a disposição do Banco Central de emprestar até US$ 36 bilhões das reservas internacionais às empresas brasileiras com dívidas no exterior pode representar uma "socialização do prejuízo". "Quem garante que essa ajuda será suficiente? Se não for, mais uma vez o contribuinte arcará com o ônus", adverte.

A professora acredita, entretanto, que o mais grave fantasma a exorcizar da crise de 1929, no Brasil e no mundo, é o do protecionismo. "Na década de 1930 essa prática adotada pelos EUA, com a lei tarifária Smoot-Hawley, agravou a depressão. Desembocou em nacionalismos extremados e na guerra. Essa lição da história está sendo esquecida", ela diz, apontando uma contradição: "Em janeiro, ao mesmo tempo em que no Fórum Econômico Mundial em Davos 44 países divulgavam um documento a favor do livre comércio, em Bruxelas a União Europeia anunciava um aumento de 85% nas tarifas de produtos chineses para o setor automotivo".

Nos Estados Unidos, ao discurso anti-China do secretário do Tesouro de Obama, Timothy Geithner, somaram-se as emendas "buy American" adicionadas pelo Congresso ao pacote econômico do presidente, que podem afetar as exportações brasileiras para aquele país.

No Brasil, o governo chegou a anunciar a exigência de licença prévia de importação para 3 mil produtos de 17 setores, mas voltou atrás. Eliana Cardoso vê todos esses movimentos com muita preocupação: "O comércio internacional é o grande propulsor dos ganhos de produtividade e das inovações tecnológicas. Por maior que seja, o mercado local será sempre menor e insuficiente para compensar a perda do mercado externo", explica a professora, segundo a qual o Brasil deve se juntar a outros países e protestar na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra os aumentos de tarifas e a política de subsídios praticada pelos EUA e pela União Europeia. Ela faz também um alerta em relação às barreiras não-tarifárias proibidas pelos tratados internacionais de comércio, como as licenças de importação. "É uma medida absurda, que só a Argentina usa. Pode gerar milhares de ações na OMC."

Revista Problemas Brasileiros

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