CECÍLIA PRADA
Sérgio Buarque de Holanda em Berlim: artigos bilíngües / Foto: Fundo SBH/Siarq/Unicamp
A mais conhecida obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, comemora um aniversário importante – 70 anos. Lançado em 1936 pela editora José Olympio, esse livro forma com Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1933), e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior (1942), uma trilogia de valor incontestável, que vem atravessando gerações e fornecendo um sólido substrato sociofilosófico para o aprofundamento dos mais variados estudos sobre a constituição de nossa identidade nacional.
É evidente que o Brasil de hoje é bem diferente daquele país dos anos 1930, que apenas emergia de uma estrutura patriarcal e agrária para a era da industrialização e da complexidade urbana, para a inserção nos grandes conflitos ideológicos que dominariam o século 20. Mas, neste início do terceiro milênio, por entre os embates da violência generalizada nos quatro cantos do planeta, absorvida a ressaca das frustrações, desmascarada qualquer tentativa de utopia fácil e programada, resta ao ser humano, pulverizado quase diante da complexidade de um universo incompreensível, somente um trunfo, um norte no rumo do seu périplo: o questionamento. Se o cientista devassa os segredos do laboratório para descobrir o mistério da vida, se o astrofísico, o astronauta, lançam um repto ao espaço, o historiador, o sociólogo – o humanista, enfim – continua a remexer ainda as cinzas do passado, à procura de explicações para a configuração das atitudes e idéias que, entrosadas, colocaram os fundamentos da nossa sociedade.
Nesse sentido, Raízes do Brasil permanece um livro atual, imprescindível – hoje como ontem, mas com uma trajetória editorial sui generis, posto que com o correr dos anos aumentou muito o interesse pela obra. Apesar de muito bem recebido pela crítica, só veio a ter uma segunda edição 12 anos mais tarde, em 1948. Em 1969, 33 anos após seu lançamento, contava somente com cinco edições. Mas, com o recrudescimento da repressão política e da luta pela "abertura", repentinamente começaram a multiplicar-se as edições. Entre 1971 e 1987, elas somaram 14, consagrando definitivamente o livro, que foi traduzido para muitas línguas – inclusive o japonês. Para festejar seu septuagésimo aniversário, a Editora Objetiva está para lançar, antes do final deste ano, uma edição de luxo, ilustrada e comentada, que fará as delícias dos bibliófilos e homenageará devidamente a grande figura de Sérgio Buarque de Holanda.
Um novo olhar
O livro, que se tornaria um ícone, foi levado, embrião e projeto, para a Alemanha em 1929, quando Buarque de Holanda foi para aquele país, na qualidade de correspondente dos "Diários Associados". Em artigos bilíngües, publicados dos dois lados do Atlântico, o pensador foi amadurecendo suas reflexões sobre o país que deixara, porque, confessava, sentia uma necessidade de "explicar o Brasil aos alemães". O ponto de vista do outsider, que foi obrigado a adotar, ampliou seus horizontes. Dizia: "Só quando você está no exterior é que consegue ver seu próprio país como um todo. E o Brasil não é fácil de se entender, é difícil". Embora obrigado a aceitar diversos trabalhos para suplementar seu salário de jornalista – chegou a traduzir legendas para filmes da UFA e a fazer pontas em alguns deles –, aproveitou seu tempo para absorver ao máximo a cultura européia e desenvolver um projeto de análise, denominado primeiro "Teoria da América", que depois de muito trabalhado se transformaria, alguns anos mais tarde, em Raízes do Brasil. Esse projeto havia nascido de grandes conversas que mantivera com Prudente de Moraes Neto em 1924 – ano em que ambos haviam fundado a revista modernista "Estética" –, mas só ganharia consistência em Berlim, conforme testemunho do próprio autor: "O contato de terras, gentes, costumes, em tudo diferentes dos que até então conhecia, pareceu favorável à revisão de idéias velhas e à busca de novos conhecimentos que me ajudassem a abandoná-las, ou a depurá-las".
Da "depuração" subseqüente resultou a definição política de Sérgio pelo reforço de uma posição personalista, amadurecida e independente de camarilhas, partidos e arregimentações. Não escondia que deixara o Brasil por se encontrar "em um beco sem saída" (político-filosófico) – frustrada que fora sua iniciação marxista, no seu dizer, "depois de uma conversa tediosa com Otávio Brandão, um dos próceres comunistas no Rio de Janeiro". Mas o amadurecimento, no exterior, de suas posições inegavelmente de esquerda o caracterizam até mesmo como um "radical" – Antônio Cândido de Mello e Souza reconhece nele um raro exemplo, no Brasil, de "radicalidade" coerente, na sua ação e no seu modo de pensar, mas sempre com posições de esquerda "que são as suas". E diz: "Penso que se ele nunca se ligou a uma ideologia política predeterminada foi porque tinha a sua própria linha de radicalidade, nascida da compreensão adequada da nossa história". Os numerosos testemunhos dos que foram seus alunos, assistentes ou amigos insistem sempre no seu espírito "totalmente democrático", que nunca pôde apoiar autoritarismos de qualquer espécie, de esquerda ou de direita – de que andavam prenhes aquelas décadas de 1930 e subseqüentes. Sua profunda coerência o fez pedir a aposentadoria da USP em 1969, em solidariedade aos colegas demitidos pelo regime militar.
A "hibernação alemã" de Sérgio – na expressão de Francisco de Assis Barbosa – seria fecunda também em objetivar sua principal inclinação, o estudo da história, enriquecendo seus conhecimentos com as obras dos historicistas alemães e de Max Weber. Dali por diante ele se destacaria principalmente como historiador, um interesse que acabou por prevalecer sobre o jornalismo e a literatura – não só se distinguira antes como um dos nossos principais críticos literários, mas fizera até experiências de ficção (contos), muito bem-sucedidas. Mas o "escritor", nele, estaria sempre por trás do "especialista" – o sucesso duradouro de suas obras deveu-se antes de tudo à perfeita conjunção de forma e conteúdo, a começar pelo seu livro de estréia, Raízes do Brasil, "um clássico de nascença", como o qualifica Antônio Cândido. Unindo à influência da historiografia alemã a da Nova História de Marc Bloch e Lucien Fèbvre, Sérgio adotava a fórmula deste último, "le parfait historien doit être un grand écrivain", e dizia: "É fora de dúvida que devendo lidar largamente com fenômenos particulares, para revivê-los em suas pulsações e em sua espessura a fim de que se integrem em quadros amplos, onde ganham nova dimensão e significado mais alto, precisa o historiador valer-se de recursos de expressão que não sejam os de mero relatório ou o de uma exposição científica". Sem o que, na sua opinião, se tornaria o historiador apenas um antiquário, um cronista, um arqueólogo. Pois "escrever história é ter uma visão dialética do passado e, eventualmente, de suas conseqüências no presente. É iluminar o passado no presente, ou vice-versa. É o presente que importa e é através dele que compreendemos a condição humana".
Um precioso legado
No prefácio que escreveu em 1967 para a quinta edição de Raízes do Brasil – e que dali por diante, de tão profundo e bem estruturado, incorporou-se por decisão dos editores à própria obra –, Antônio Cândido chama a atenção para o aspecto fundamental do pensamento de Buarque de Holanda: o uso da "metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana". Se nos escritores românticos de nosso passado era comum a exploração dos contrastes do tipo natureza/civilização, e se o conflito ambiente/homem já estivera presente em grandes obras, como as do argentino Domingo Faustino Sarmiento ou de Euclides da Cunha, nunca antes a reflexão sobre a realidade social fora tratada em termos "dialéticos" – um "jogo" em que, à ingênua exclusão de um dos termos contrários, substitui-se, como diz Antônio Cândido, "o enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro e ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento".
É uma nova visão, a que inaugura Buarque de Holanda – remonta às raízes da nossa colonização para revisitar os fatos conhecidos mas nunca vistos em sua totalidade – em sua integração dos diversos aspectos históricos, sociológicos, econômicos, sociais. Na análise do professor Brasílio Sallum Junior, "Sérgio Buarque de Holanda, ao examinar as concepções, instituições e formas de vida gestadas por nossos antepassados, o faz tendo em vista que elas ainda oprimem – como diria Marx – o cérebro dos vivos".
Investiga até as últimas conseqüências o que considera "o fato dominante e mais rico em conseqüências de nossa cultura" – o de que somos uns "desterrados", pois instituições, idéias e formas de convívio foram transplantadas do continente europeu, mais particularmente da cultura ibérica, para o solo do novo continente, tendo sido nosso trabalho através do tempo "manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil". O radicalismo do autor não faz concessões e dá a marca da obra – como quando, após sete densos capítulos, declara que "a sociedade foi mal formada, nesta terra, desde as suas raízes".
Estuda as duas unidades que formavam a Ibéria – Espanha e Portugal – em relação a um dos conceitos fundamentais de sua obra, isto é, a repulsa pelo trabalho regular e utilitário (pouco digno dos nobres de Espanha e dos fidalgos lusos) que iria permear toda a nossa cultura e resultar em uma certa "incapacidade de organização" ou mesmo anarquia fundamental, que acaba por tolerar, ou mesmo exigir, formas autoritárias: "Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida".
Entre espanhóis e portugueses, porém, há uma diferença fundamental no que se refere ao início da civilização urbana – enquanto o espanhol, do tipo "ladrilhador", funda cidades em que parece predominar a linha reta e a ordem da razão, como se fossem um prolongamento estável da metrópole, o colono português, do tipo "semeador", norteado por uma política de feitoria, planta cidades irregulares, espontâneas, crescidas ao deus-dará. Um aspecto que ainda hoje predomina em nossos grandes núcleos urbanos, avessos a planejamentos, estirados segundo as necessidades móveis da população.
É um leque de análises sistemáticas que Buarque de Holanda consegue fazer, partindo do Descobrimento, do início rural da colonização, passando depois ao estabelecimento dos centros urbanos, aprofundando sempre a mentalidade, os costumes, as idiossincrasias dos colonizadores, e das gerações sucessivas, até chegar às características que ainda hoje facilmente ressaltam mesmo ao olhar desavisado: a nossa desorganização, emprenhada de um "jeitinho brasileiro", uma doçura-cordialidade manifesta no predomínio dos diminutivos (basta ver a profusão de "inhos" entre os jogadores da seleção brasileira de futebol), a informalidade no trato – usa-se "você" até mesmo ao dirigir-se ao presidente da República –, os compadrios e nepotismos, a absoluta mistura de esferas entre o privado e o público em todos os setores da vida nacional, até no político. Os próprios santos da Igreja Católica são tratados pelos brasileiros "com uma intimidade quase desrespeitosa", diz o autor, lembrando que a popularidade de uma Santa Teresinha de Lisieux, por exemplo, "resulta muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias".
Famoso, e polêmico, é o capítulo sobre o "homem cordial" – um tipo que Buarque de Holanda tomou emprestado ao escritor Ribeiro Couto. Popularizou-se através dos anos uma idéia, errônea, de que fora o autor de Raízes do Brasil o criador e o apologista dessa "cordialidade", que seria o grande legado do Brasil à sociedade global. Reconhecendo embora como virtudes a generosidade, o trato hospitaleiro, demonstrados pela população brasileira – nos costumes derivados do meio social e patriarcal –, ele faz questão de diferenciar essas atitudes das "boas maneiras" de civilidade de outros povos, as quais se revestem na maioria dos casos de uma coercividade rija que pode beirar o ritual, coisa que absolutamente repugna à nossa índole. O nosso povo, que "desconhece qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo", cria circunstâncias sui generis para sua constituição e permanência como entidade social, mostrando-se "livre para se abandonar a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os freqüentemente sem maiores dificuldades".
O autor não vê essa "aptidão para o social" como um fator apreciável de ordem coletiva, por "denunciar um apego singular aos valores da personalidade, configurada pelo recinto doméstico". Donde a dificuldade, a impossibilidade quase de estabelecer projetos sociais e de governo de alcance duradouro, e a prevalência de "caudilhismos" e aventuras demagógicas de curta duração. Como se vê, um livro extremamente atual.
Figura humana
Nos numerosos testemunhos de amigos, alunos, colegas de universidade, Sérgio Buarque de Holanda é sempre descrito como dono de personalidade marcante, um homem fascinante, um grande líder intelectual – Sérgio Milliet chamava-o de "homem-ponte" entre dois mundos, o da cultura tradicional conservadora e o da modernidade, e dizia: "Foi com Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade que aprendemos a meditar". Mas caracterizado pela afabilidade, brincalhão, boêmio, generoso e extrovertido – nos restaurantes da moda, soprava no ouvido do maître "eu sou o pai do Chico Buarque", para conseguir uma mesa; no tempo em que era obrigatório o uso de beca nos concursos acadêmicos, zombava do formalismo ao passear pelos corredores da Universidade de São Paulo (USP) concedendo bênçãos como se fosse um bispo. Justificou sua recusa a entrar para a Academia Brasileira de Letras dizendo que o estilo acadêmico não combinava com sua personalidade, tanto mais que já estava irremediavelmente comprometido com uma confraria literária que fundara em uma pândega com Jorge Amado e outros amigos, no Recife, tempos atrás – a Ordem dos Hipopótamos Azuis.
A professora Suely Robles Reis de Queiroz, em depoimento dado em 1986, caracteriza-o bem: "Gostava de gente e vivia cercado dela. O seu bom humor, a irreverência sem mordacidade ou amargura, a piada pronta atraíam os alunos e as pessoas em geral, pois quem não gosta de gente alegre, brincalhona, dotada de prodigiosa memória, capaz de continuamente evocar casos interessantes ou engraçados ocorridos consigo próprio ou com outras pessoas célebres?"
O que mais apreciava era reunir em sua casa da rua Buri, no bairro paulistano do Pacaembu – onde residiu com a família de 1957 até sua morte, em 1982 –, grupos de amigos para uma conversa cotidiana. Gostava de beber, de cantar, de noitadas, e dizia que somente dona Maria Amélia o impedira de deixar-se arrastar de vez para a boemia. As palavras do amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade o definem bem: "O homem Sérgio é igualmente múltiplo e genuíno na sua variedade. No exercício da chefia de serviço público ou na mesa de bar, como patriarca entre a esposa e os sete filhos ou como delegado a conferências internacionais, ele é perfeitamente ajustado a cada função".
O historiador escritor
Sérgio Buarque de Holanda, nascido em 1902 na cidade de São Paulo e nela falecido em 1982, embora fosse formado em direito nunca exerceu a advocacia. Foi historiador, jornalista, escritor e professor universitário, tendo ocupado várias cadeiras, na área de história, na Universidade do Distrito Federal, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, a partir de 1956, até sua aposentadoria em 1969, na Universidade de São Paulo (USP). "Raízes do Brasil" foi seu primeiro livro, seguido de mais 12, entre os quais se destacam importantes obras históricas – tanto de cunho didático como dirigidas ao público geral –, estudos de caráter antropológico e sociológico, como "Visão do Paraíso – Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil" e "Índios e Mamelucos na Expansão Paulista", e até mesmo uma obra de caráter literário, como a "Antologia de Poetas Brasileiros da Fase Colonial".
Foi extensa, constante e importante sua contribuição como jornalista para as mais eminentes publicações, no Brasil e no exterior. Teve sempre uma destacada atuação pública no setor cultural, ocupando cargos de relevo – foi diretor do Museu Paulista (Museu do Ipiranga), fundador e diretor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, vice-presidente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, presidente da Associação Brasileira de Escritores, seção do Rio de Janeiro. Em diversas ocasiões deu cursos em universidades estrangeiras, nos Estados Unidos, Chile, Peru, México e Costa Rica, e participou de importantes simpósios patrocinados pela Unesco, em Paris e em Genebra.
Foi co-fundador, em 1945, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980.
Casou-se em 1936 com Maria Amélia Alvim, com a qual teve sete filhos, entre os quais se conta o compositor Chico Buarque de Holanda.
Revista Problemas Brasileiros
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