domingo, 20 de setembro de 2009

Loucura coletiva?

No início do século XX, médicos e psiquiatras encaravam o espiritismo como uma doença mental contagiosa a ser banida da sociedade
Artur Cesar Isaia

Espiritismo e psiquiatria viviam momentos semelhantes no início do século XX: ambos buscavam aceitação social, guiados pelo mesmo ideal moderno – o elogio da racionalidade.

Mas não demorou para que entrassem em choque frontal. Afinal, à luz da ciência médica da época, manifestações mediúnicas eram sinônimo de atraso, uma afronta à civilização.

Para os médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro não havia dúvida: o espiritismo era uma patologia. Preocupados em detectar os focos de doenças físicas e mentais, esses cientistas não tardaram em apontar aquela “superstição” como algo extremamente contagioso, capaz de inutilizar grandes contingentes humanos para o trabalho. Precisava, portanto, ser reprimida pelas autoridades e erradicada por meio de intensas campanhas de saúde pública.

“O combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocaína, etc.), à tuberculose, à lepra, às verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o aniquilamento das energias vitais, físicas e psíquicas do nosso povo, da nossa raça em formação”, escreveu João Coelho Marques em 1929, em tese de doutorado em Psiquiatria apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No espaço de uma década, três teses defendidas naquela instituição elegeram o espiritismo como assunto principal. Seu conteúdo revela muito sobre as idéias que norteavam a formação médica da época.

A psiquiatria ensinada naquela Faculdade de Medicina foi fortemente influenciada pelo trabalho do baiano Juliano Moreira (1873-1933). Chegando ao Rio aos 30 anos, depois de estudar na Alemanha, ele trazia como principal referência os estudos de Emil Kraepelin, que acreditava na correspondência entre doenças físicas e mentais. Sua teoria permitia identificar “epidemias contagiosas de loucura” – entre as quais se destacava o espiritismo, supostamente capaz de provocar crises de histeria coletiva.

Mas, por se tratar de uma ciência ainda em formação, a psiquiatria passeava por outros referenciais teóricos, como o positivismo e as primeiras e tímidas investidas da psicanálise freudiana. A tese de doutorado de Oscar dos Santos Pimentel, defendida em 1919, cita o positivista alemão Ernst Haeckel (1834-1919), ao colocar o espiritismo em total oposição à ciência: “A nossa descendência de bárbaros explica filogeneticamente a tendência hereditária que temos para a superstição e para o misticismo”. Se Haeckel dizia isso referindo-se à culta Alemanha, o que pensar de um Brasil marcado pela recente herança escravista, com um povo inculto e doente? O autor expressa seu ponto de vista citando a frase de Miguel Pereira: “O Brasil é um grande hospital”. E como todo grande hospital, requeria a presença ostensiva dos médicos, a fim de tentar reverter o quadro degradante de uma população que sucumbia a toda sorte de males orgânicos.

A miséria facilitava vivências patológicas, em que populações ignorantes eram submetidas ao arbítrio de “doentes mentais” como Antônio Conselheiro, em Canudos, e o padre Cícero, em Juazeiro. Catalisador de energias desconhecidas e primitivas, o espiritismo tinha, para os médicos, o poder de transformar homens e mulheres pacatos em feras humanas. Diversos relatos psiquiátricos enfatizavam situações assustadoras. Franco da Rocha, diretor do Juquery de São Paulo e egresso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, descreveu um caso de “epidemia psíquica” ocorrido em Taubaté, São Paulo, em meados da década de 1880. Nessa ocasião, “escravos, crianças seminuas e outros sectários do espiritismo” seguiam “cegamente” um advogado, “chefe da seita”, que, em nome dos espíritos, propalava a necessidade de imolação de um de seus seguidores, devendo seu sangue ser bebido por todos.

Outro episódio teria ocorrido em Campina Grande, Paraíba. Inquérito policial relata o caso de uma mulher que logo após dar à luz começou a apresentar sintomas de desequilíbrio mental. “Chamado um charlatão, este declarou que se tratava de simples manifestação de um espírito mau, e determinou o jejum obrigatório e coletivo”. Além disso, teria declarado que a cura aconteceria após a vítima ser transformada em um sapo, que deveria ser morto a pauladas. Em determinado momento, “parentes da doente, julgando chegado o momento de matar o sapo, atiraram-se contra ela a socos, pontapés, murros, dentadas e pauladas, deixando o cadáver insepulto” e, finalmente, queimando-o.

Segundo os médicos da época, o espiritismo confundia o povo crédulo com incursões criminosas na prática médica: “No Brasil só há espíritos de médicos. Os que se manifestam, os que atuam sobre os médiuns, nada mais sabem fazer que receitar até mesmo para pessoas que nunca existiram”, acusa a tese de Pimentel.

Se os fenômenos espíritas eram encarados como fruto da sugestão ou da fraude, os médiuns deveriam ser responsabilizados penalmente por seus delitos ou recolhidos aos manicômios. Com um agravante: o preconceito racial, ainda fortemente marcado na sociedade herdeira do escravismo. Basta saber que na primeira edição de seu Manual de Psiquiatria (1921), em que dedica um capítulo inteiro ao espiritismo, o influente Henrique Roxo (1877-1969) reproduz o discurso médico e católico da época, que remetia a crença, no Brasil, a resquícios do fetichismo africano. “Vê-se muito freqüentemente o que se observa no cinema, nessas danças de negros, com seus movimentos extravagantes, suas contorções e seus gestos”, escreveu.

A tese de João Coelho Marques, de 1929, é reveladora do trabalho classificatório da doença mental. Com o título “Espiritismo e idéias delirantes”, analisa relatos de casos clínicos e tenta enquadrá-los na classificação das doenças mentais da Sociedade Brasileira de Neurologia e Medicina Legal. A maioria dos casos foi classificada como “delírios episódicos dos degenerados”, exatamente a modalidade estudada por Henrique Roxo, que formou levas de novos profissionais da época.

O doutorando concluiu que havia duas possíveis ligações entre doença mental e espiritismo: ou o espiritismo aparecia de maneira secundária, acessória, ou (na maioria dos casos) era identificado como diretamente vinculado aos episódios patológicos, “era a causa de tudo”. Quase todos os casos estudados referiam-se a “indivíduos que viviam a estudar o espiritismo, a assistir sessões espíritas, praticando a mediunidade, vivendo assim impressionados com o que presenciavam, tendo o cérebro em estado de superexcitação. Neste estado, um abalo moral, um pequeno desgosto ou um choque emotivo qualquer podem provocar o aparecimento de alucinações”.

Para enfrentar esse problema de saúde pública, era preciso promover campanhas educacionais, na tentativa de reverter a tendência de credulidade popular. “Seria de desejar que, desde os lares, nos jardins-de-infância e nas escolas primárias, se procurasse fazer uma educação mais racional, menos mentirosa e hipócrita, que tivesse por fim refrear a tendência ao sobrenatural e ao misterioso”, afirma. O doutorando apelava à Liga Brasileira de Higiene Mental e à Igreja Católica para sensibilizarem a opinião pública e os poderes constituídos. Propunha uma “Semana antiespírita”, a espelhar-se na já existente “Semana antialcoólica”, que mobilizava a sociedade contra esse mal.

Dementes, charlatões, incultos, histéricos. O diagnóstico psiquiátrico não poderia ser mais distante do caráter atribuído ao espiritismo pelos seus próceres: as obras que embasavam a crença caminhavam na direção da ciência, da razão, da civilização.
Essa possibilidade de diálogo entre ciência médica e espiritismo foi a motivação da corajosa tese “Contribuição ao estudo da Psiquiatria (Espiritismo e Metapsiquismo)”, escrita em 1922 por Brasílio Marcondes Machado. Corajosa porque ia na contramão do pensamento da instituição que deveria julgá-la. O trabalho defendia a revisão dos princípios norteadores da medicina psiquiátrica, propondo a esta o reconhecimento da sobrevivência da alma e a possibilidade de comunicação entre vivos e mortos. O espiritismo deveria ser apresentado como doutrina aparentada com a modernidade, capaz de embasar-se na razão e na experimentação.

Bom exemplo disso, segundo ele, eram os ensinamentos do médico e espírita cearense Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831-1900), conhecido como o “Kardec brasileiro”. Na obra A loucura sob novo prisma, escrita no final do século XIX, Bezerra de Menezes coloca o espiritismo a serviço de uma nova compreensão da loucura. Defende que casos de demência podem ser creditados à ação persecutória de espíritos sobre o doente. Essa atuação, denominada obsessão, poderia ser neutralizada por meio da doutrinação do espírito obsessor. O tratamento consistia em fazer o espírito perseguidor conhecer a lei do carma, “pela qual terá que pagar em dores todas as que tem feito sua vítima sofrer”.

A tese também envereda pelo campo da interpretação dos sonhos pela psicanálise. O psiquiatra Francisco Franco da Rocha (1864-1933) chamava de beócios aqueles que encaravam os sonhos como revelações possíveis de contato com espíritos, ligados a “preconceitos populares, superstições, concepções mitológicas”. Provocativamente, Brasílio Machado critica essa idéia citando o astrônomo e espírita francês Camille Flammarion. Mais precisamente, o discurso que Flammarion proferiu junto ao túmulo de Kardec em seu enterro: “Com que direito, pois, pronunciaremos a palavra ‘impossível’ diante dos fatos que testemunhamos, sem podermos descobrir a causa única? A ciência nos fornece dados tão autorizados como os precedentes sobre os fenômenos da vida e sobre a força que nos anima”.

Por fim, o doutorando refuta os fundamentos de Joseph Grasset (1849-1918) para explicar os chamados “estados alterados da consciência”. O neurologista francês defendia a coexistência de dois psiquismos: um superior, sede da razão, outro inferior, domínio do inconsciente. Os fenômenos mediúnicos aconteciam, para Grasset, pela desagregação entre os dois psiquismos. O transe nada mais seria do que a memória e a imaginação do próprio médium vindo à tona. Machado parte dos mesmos conceitos para tentar comprovar a veracidade dos fenômenos espíritas. Acrescenta ao psiquismo superior algo que chama de “superconsciente” – este dotaria o ser humano da capacidade de emancipação total, sobrevivendo à morte física. Fenômenos mediúnicos, para ele, deveriam ser encarados como manifestações do superconsciente dos mortos.

É claro que o autor estava diante de uma missão inglória. Sua argumentação metafísica simplesmente não podia conviver, naquele momento, com a psiquiatria materialista da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Resultado: ao contrário das outras duas – aprovadas com louvor –, a tese de Brasílio Marcondes Machado acabou reprovada. Ele pode não ter se tornado doutor, mas deixou para a posteridade um documento revelador sobre o conflito entre ciência e espiritismo no início do século passado.

Artur Cesar Isaia é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e organizador da obra Orixás e Espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea. (Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2006).

Saiba Mais:

CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica. São Paulo: Pioneira, 1961.

COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil. Um corte ideológico. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1976.

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos. Uma história de condenação e legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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