terça-feira, 29 de setembro de 2009

O ano de 1945

O período mais conturbado do século 20 foi o início de uma nova era

CECÍLIA PRADA

A ascensão do nazismo / Foto: Reprodução

Há seis décadas uma série de acontecimentos fez de 1945, na opinião dos historiadores, "o ano mais importante do século 20": no plano internacional, o fim da 2ª Guerra Mundial e o advento da era atômica, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), a redistribuição de forças com a conseqüente alteração do mapa da Europa, a reviravolta de valores estabelecidos; no Brasil, que também participou da guerra, tivemos a deposição de Getúlio Vargas após 15 anos de ditadura e a retomada de uma normalidade democrática que duraria, infelizmente, somente 18 anos.

Se a 1ª Guerra Mundial, pelas proporções catastróficas assumidas (9 milhões de mortos, entre civis e militares), fora considerada "a guerra para acabar com todas as guerras", a 2ª Guerra Mundial demonstraria a falácia desse slogan, pois excederia em horror tudo o que até aquele momento a humanidade presenciara, multiplicando os seus números: 60 milhões de homens em armas, com um saldo total de 40 milhões a 50 milhões de mortos, na maioria civis, como resultado direto de combates; ou 80 milhões se forem contadas as pessoas que morreram de fome ou doença, devido ao conflito. Além disso, as atrocidades institucionalmente cometidas, de um lado ou de outro das potências beligerantes, contra populações civis - extermínio dos judeus, de outras minorias raciais e toda espécie de dissidentes, bombardeios gratuitos e arrasadores (como o de Dresden pelos Aliados, no final da guerra), o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki - mostraram em escala nunca antes imaginada a terrível potencialidade para o mal que reside no âmago do ser humano.

E se Theodor Adorno sintetizou em uma frase que se tornou famosa, "escrever poesia depois de Auschwitz é uma coisa bárbara", o estarrecimento, o desespero da humanidade diante de tanta crueldade e ignomínia, infelizmente o estado atual do mundo, com a irracionalidade dos fundamentalismos e a brutalidade crua do superpoder armado, não parece encorajar a esperança de equilíbrio e paz. Há dez anos, quando se comemorou o cinqüentenário do final do conflito, concordavam os historiadores - como Tullo Vigevani - que "a 2ª Guerra Mundial constitui, mais do que qualquer outro fato político (...) o momento iniciador de uma ordem que parece a mais estável alcançada no período histórico contemporâneo". Estável é hoje com certeza o adjetivo que menos ocorre à mente de qualquer cidadão que assista a um mero telejornal - infelizmente temas como racismo, genocídio, autoritarismo, nacionalismo, continuam mais do que nunca atuais. Nesse sentido, podemos ver aquele ano que nos parece tão longínquo, o de 1945, como persistente até hoje, com seus dilemas e conflitos pouco ou nada resolvidos. Donde a necessidade de recordar não somente os fatos históricos que marcaram aquele período, mas de aprofundar um pouco - o permitido pela limitação jornalística - as próprias causas da guerra e suas conseqüências no plano mundial.

Idéias e bombas

Simplificaram alguns historiadores as causas da 2ª Guerra Mundial, explicando-a unicamente pela precariedade e impropriedade dos tratados de paz estabelecidos pelos Aliados com a Alemanha e as potências centrais após o término da 1ª Guerra Mundial - arrasada econômica e militarmente, a Alemanha teria sido obrigada a reagir de forma violenta à sua humilhação, conseguindo rearmar-se para restabelecer suas fronteiras anteriores a 1914 e unir-se novamente à Áustria. Essa simplificação obviamente esquece alguns detalhes de suma importância: o papel do nazi-fascismo e da própria personalidade de Adolf Hitler na preparação da guerra, pois, como diz Vigevani, "uma das conotações intrínsecas da idéia de ‘raça superior’ implicava uma exaltação da ‘experiência positiva’ da guerra".

Desde a década de 1920 Hitler desenvolvera um sistema político de amplo alcance: ganharia antes de mais nada um considerável apoio no interior de seu próprio país, depois consolidaria o domínio da Alemanha sobre a Europa central, para alcançar mais tarde o status de potência mundial, em duas etapas: 1) a edificação de um império continental em toda a Europa; 2) a equiparação da Alemanha aos grandes impérios da Grã-Bretanha, do Japão e dos Estados Unidos (após a eliminação da França e da União Soviética - a URSS), pela aquisição de colônias na África e pela construção de uma poderosa frota naval com bases no Atlântico. Chegava a prever, para a próxima geração, um conflito decisivo entre a Alemanha e os Estados Unidos, no qual, esperava, a Grã-Bretanha se aliaria aos alemães - para extermínio de todas as "impurezas raciais" e hegemonia de uma única raça, ariana e superior.

Hoje ainda a chamada "querela dos historiadores" divide-os quanto às causas do conflito e multiplicam-se teses e estudos particularizados de todas as condições (políticas, sociais, econômicas) que se entrelaçaram para desencadeá-lo. A corrente dita do "revisionismo histórico alemão", por exemplo, tem como tese central o nexo lógico e causal entre a política de extermínio bolchevique e a política racial nacional-socialista - e não é possível minimizar o efeito da complacência inicial e mesmo admiração para com Hitler mostrada pela burguesia principalmente da Grã-Bretanha e da França, até pouco antes da guerra, pelo fato de ele se declarar inimigo do seu grande inimigo, a URSS. Enquanto isso, toda a intelectualidade, em nível mundial, aderia à utopia socialista e apoiava-a, fechando os olhos ao desvio stalinista e à disparidade das classes que iam se formando dentro da própria burocracia soviética.

Que a 2ª Guerra Mundial foi principalmente um embate de ideologias, ninguém contesta. Ou, pelo menos, desenrolado sobre um pano de fundo ideológico. Como diz o historiador britânico Eric Hobsbawm, "à medida que avançava a década de 1930, tornava-se cada vez mais claro que havia mais coisas em questão do que o relativo equilíbrio de poder entre os Estados-nação que constituíam o sistema internacional", podendo a política de então do Ocidente "ser mais bem entendida não como uma disputa entre Estados, mas como uma guerra civil ideológica internacional". Cometem erro grosseiro, no entanto, os que simplificam os naipes do complicado baralho ideológico - não são absolutamente dois, como habitualmente se define, uma luta democracia versus totalitarismo. Antes, um entrechoque de totalitarismos e utopias, digladiando-se pelo supremo interesse de domínio territorial, militar e econômico, ao qual as ideologias prestaram, e continuam a prestar, serviço. Basta ver no quadro da 2ª Guerra os vaivéns da amizade/inimizade entre Alemanha e URSS - se Hitler, como querem os revisionistas, teria como objetivo combater a "barbárie comunista", o que significou o pacto de não-agressão mais cínico e escandaloso da história, assinado pelos chanceleres Von Ribbentropp e Molotov em 23 de agosto de 1939? Em termos práticos, constituiu o aval recíproco em suas guerras de conquista - enquanto Hitler invadia a Polônia, Josef Stalin sentia-se à vontade para dominar Finlândia, Lituânia, Estônia e Letônia.

O também historiador britânico Paul Johnson, em seu livro Modern Times - The World from the Twenties to the Nineties, estuda os detalhes dessa aliança que desafiava qualquer lógica aos que não estavam inteirados - como ninguém esteve - dos numerosos protocolos secretos trocados desde a Revolução Russa entre as chancelarias das duas potências, com uma "total desconsideração pelos princípios ideológicos que cada partido professava ostensivamente". Quando, às vésperas da assinatura do pacto, o chanceler alemão Von Ribbentropp foi recebido e festejado no Kremlin, disse que se sentia como se estivesse entre velhos camaradas de partido, "como entre meus velhos amigos nazistas". Para seus íntimos, Hitler definia o acordo como "o pacto com Satã para expulsar o demônio", isto é, seus inimigos mais reconhecidos, as potências ocidentais. O restante da história é bastante conhecido - a aliança entre os dois gigantes durou somente até 22 de junho de 1941, quando Hitler a rompeu invadindo o território soviético. Esse fato fez Stalin, inimigo figadal e ideológico dos estados "capitalistas", rever às pressas suas táticas e interesses e acabar lutando lado a lado com norte-americanos, ingleses e franceses pela "grande causa comum, a democracia" (a ideologia é uma comodidade sempre à mão, uma camisa prêt-à-porter que se veste rapidamente, a cada mudança de cenário).

Nesse balé de troca-troca, a coisa iria mais longe: mal terminado o conflito mundial, desfez-se o breve idílio entre Aliados e soviéticos, e o camarada Stalin fez ver ao que viera, de maneira clara, anexando os países do leste europeu. A Guerra Fria, estado de beligerância contida entre as potências ocidentais e a URSS que durou 45 anos (até a desintegração do bloco soviético em 1991), teve seu início oficial em um discurso realizado por Winston Churchill nos Estados Unidos, na Universidade de Fulton, no dia 5 de março de 1946, que assim principiava: "De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente". Segundo alguns historiadores, porém, ela já teria na realidade começado no dia seguinte à Conferência de Ialta, que em fevereiro de 1945 reuniu Franklin D. Roosevelt, Churchill e Stalin. Segundo Paul Johnson foi naquele momento que Roosevelt, sempre tão tolerante com a política soviética, percebeu enfim como tinham razão os que o haviam advertido de que o acordo com Stalin sobre as eleições na Polônia fora "tão elástico que os russos podem espichá-lo de Ialta a Washington sem tecnicamente rompê-lo". Quando seu embaixador em Moscou, Averell Harriman, após conferenciar com Molotov informou-o no dia 23 de março de que as eleições polonesas seriam feitas "no estilo russo" e não democraticamente, o presidente norte-americano teria ficado muito indignado e deprimido, dizendo: "Não podemos fazer negócios com Stalin. Ele rompeu todas as promessas que fez em Ialta". Os dias seguintes marcaram uma veemente troca de mensagens com Churchill, que o faziam compreender a mesma coisa. Desgostoso, Roosevelt se retirou para Warm Springs, no estado da Geórgia, onde morreria repentinamente a 12 de abril de 1945.

O curso da guerra

A "ingenuidade" dos que acreditaram no Pacto de Munique (1938) e endossaram a anexação feita por Hitler dos territórios ocupados pelos sudetos (habitantes de origem alemã de uma região da Tchecoslováquia) e do "corredor polonês" que dava acesso ao porto de Dantzig (hoje Gdansk), pensando assim ter resolvido pacificamente todos os problemas, foi o erro fatal que possibilitou os propósitos do Führer de provocar um conflito mundial.

Foi também um erro de cálculo da parte de Hitler na invasão da Rússia o que provocou um ponto de inflexão na sua guerra de conquista - ele a adiou de meados de maio ao fim de junho de 1941, deixando-se absorver por outros dois golpes nesse meio tempo (desviando tropas contra a Grécia e a Iugoslávia) e acabou por errar no seu timing e ter de enfrentar o mesmo inimigo que derrotara Napoleão Bonaparte, em 1812: o inverno russo, que em 1941 chegou antes do previsto, devido às grandes inundações da primavera.

O ano de 1943 marcou o revertério da ofensiva alemã - se os primeiros anos do conflito haviam visto o auge da política agressiva conquistadora de Hitler, com a sucessiva queda sob seu domínio da maior parte dos países europeus, em 1943 os Aliados realizaram grandes investidas nas várias frentes, enquanto o ditador alemão concentrava-se na defensiva e conscientemente se preparava para a derrocada do império nazista, seguindo o lema que inventara: "Ou a Alemanha será uma potência mundial ou não será absolutamente nada". Para isso, suas tropas recebiam ordens peremptórias de defender suas posições até a morte, sendo-lhes vetada a possibilidade de capitulação.

As derrotas sofridas pelas forças alemãs em Stalingrado em fevereiro de 1943 e na Tunísia em maio do mesmo ano pelo exército alemão-italiano que operava na África marcaram as primeiras etapas do colapso final do Reich. Em julho, seu grande parceiro Benito Mussolini seria obrigado a demitir-se do governo da Itália e era preso por ordem do rei Vítor Emanuel III, que pôs fim ao regime fascista e nomeou um novo gabinete, chefiado pelo marechal Pietro Badoglio. O ano de 1944 veria a invasão da Normandia pelos Aliados - o "Dia D", em 6 de junho - e um reforço contínuo dos bombardeios sobre importantes objetivos estratégicos e cidades alemãs. Duas semanas e meia após o Dia D a URSS lançaria também sua maior ofensiva, surpreendendo os alemães no front da Bielo-Rússia. Dali por diante as tropas de Hitler iriam ficar cada vez mais encurraladas e forçadas a recuar.

Nos primeiros dias de janeiro de 45, ao mesmo tempo em que eram obrigados a abandonar as Ardenas (na França), os alemães sofriam o início da pesada campanha de inverno do Exército Vermelho às margens do rio Vístula. No dia 17 Varsóvia caía em poder dos russos. No dia 20, a Hungria assinava o armistício com os Aliados e declarava guerra à Alemanha. No final de janeiro e início de fevereiro, as tropas russas avançavam já pelo território da Silésia e da Prússia, caminhando em direção a Berlim, enquanto uma ofensiva britânico-canadense se processava no baixo Reno. O encontro das forças russas e norte-americanas se daria em 25 de abril em Torgau, às margens do rio Elba. Depois de dias de sangrentos combates entre russos e resistentes alemães nos subúrbios e bairros de Berlim, em 30 de abril os soviéticos atingiriam o centro da cidade e hasteariam sua bandeira no Reichstag. Nesse mesmo dia Adolf Hitler, sua amante e alguns de seus ministros cometeriam suicídio. No dia 28 o Duce e sua amante Clara Petacci haviam sido capturados pelos partigiani, executados e sujeitos à execração pública em uma praça de Milão. Nos primeiros dias de maio as forças alemãs que ainda lutavam na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no próprio noroeste da Alemanha se renderiam. Desde fevereiro, o chanceler do Reich, Heinrich Himmler, havia feito inúteis tentativas de negociar a rendição com os Aliados, usando como intermediário um diplomata sueco, o conde Folke Bernadotte. Em 24 de abril uma proposta formal de capitulação fora recusada pelos Aliados, por não ser incondicional - a rendição incondicional de todas as tropas alemãs seria assinada enfim pelo general Alfred Jodl, em Reims, no dia 7 de maio, com a suspensão, no dia seguinte, de todas as operações de guerra na Europa. Três meses mais tarde, após o lançamento pelos norte-americanos das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, o imperador Hiroito fez em 14 de agosto uma proclamação aos seus súditos, informando-os de que deveriam aceitar sua decisão de render-se. A rendição formal e incondicional do Japão seria assinada no dia 2 de setembro de 1945. Assim terminou o Eixo.

Foi também em 1945 que se concretizou a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), destinada a substituir a antiga Liga das Nações, que se mostrara ineficiente na manutenção da paz mundial. A Carta das Nações Unidas foi assinada em 26 de junho de 1945 por 51 países, entrando em vigor em 24 de outubro do mesmo ano. O novo órgão fora idealizado por Roosevelt e Churchill em 1942, durante a Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, ocasião em que fora assinada por 26 países a Declaração das Nações Unidas. A ONU se tornaria, nas décadas posteriores, o principal cenário onde as duas superpotências - EUA e URSS - discutiriam suas divergências, negociariam seus interesses e ensaiariam certas ações estratégicas de alcance mundial. Desdobrando-se em múltiplas entidades - como Unesco, OMS, Unctad, FAO, OIT, entre outras -, promovendo de maneira sistemática o desenvolvimento cultural, econômico e social de todos os povos, a ONU conseguiu nestes 60 anos realizar muito mais do que o previsto quando da sua fundação, muito embora se tenha mostrado várias vezes impotente diante da sanha beligerante, como no recente caso da guerra do Iraque.

No Brasil

O renovado interesse por assuntos históricos que vem se registrando no mundo todo tem proporcionado uma revisão sistemática de temas, fatos e figuras históricas de tal ordem que parece justificar a esperança de que neste início do terceiro milênio - como dizem muitos - "o que estava escondido seja revelado ao conhecimento de todos". No caso específico do Brasil, os sombrios períodos ditatoriais vividos no século 20 merecem, a cada dia que passa, novos estudos de historiadores sérios e começam a ser vistos em sua plenitude. Dentre eles emerge agora sob nova luz, crua e implacável, o período da ditadura Vargas.

Se bem que se tenha sabido sempre, de uma forma meio vaga, que as simpatias do primeiro governo de Getúlio Vargas fossem muito mais orientadas para o Eixo do que para os Aliados, e que somente depois de sofrer pressão dos Estados Unidos o ditador resolveu declarar, em agosto de 1942, guerra à Alemanha, apenas agora se revelam a extensão e a gravidade do que, segundo a tradição, seria essa "simpatia" - na realidade uma política fascista muito bem articulada e desenvolvida de maneira tão complexa que ressaltam dela dois vetores básicos. No campo interno, a manipulação maciça de uma suposta "mobilização de guerra" para controle completo, autoritário e arbitrário, de todos os setores da vida nacional, em proveito da manutenção do estado ditatorial - veja-se, por exemplo, o excelente livro do historiador Roney Cytrynowicz, Guerra sem Guerra. No campo externo, uma política de admiração ao nazi-fascismo e de racismo manifesto, que visava dificultar ao máximo, quando não simplesmente proibir, a acolhida de judeus fugitivos da Europa. Racismo que, no plano interno, sob pretexto de segurança nacional, exerceu-se ampla e injustamente também sobre os imigrantes japoneses já residentes há muito no país - uma perseguição que somente agora começa a ser suficientemente estudada.

A historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro, especialista na questão judaica, afirma: "Infelizmente, sob a máscara do nacionalismo varguista, o Brasil foi conivente com a prática de extermínio em massa da população judaica que habitava os territórios alemães entre 1933 e 1945". A verdade histórica nos coloca diante de uma diplomacia brasileira que, seguindo instruções específicas e claras de Vargas e de seu ministro Oswaldo Aranha, era obrigada a tratar os judeus como uma anomalia social. Durante o Estado Novo, numerosas circulares secretas instruíam nossas repartições no exterior a dificultar ao máximo a concessão de vistos, quando não condicionando sua obtenção ao dispêndio de quantias elevadas. Após 1942, a situação dos judeus no Brasil - ainda segundo Tucci Carneiro - pioraria, pois passavam então a ser também acusados de "cidadãos do Eixo". Um dos episódios mais dramáticos do período foi o ocorrido com o navio Cabo de Hornos, obrigado em novembro de 1941 a voltar do porto do Rio de Janeiro sem que os 95 judeus refugiados que trouxera da Europa pudessem aqui desembarcar.

Em 1945, porém, vários fatores contribuíram para o término da ditadura de Vargas - em primeiro lugar a contradição entre a atitude de combate ao totalitarismo fascista que o Brasil era obrigado a adotar no plano externo e o fato de, no interno, continuar sob um regime desse tipo. O período marcou nitidamente, também, a transferência da hegemonia européia para a norte-americana. Aos EUA, que desfraldavam à toda a bandeira da democracia, não interessava muito prestigiar regimes ditatoriais. E pelos diários deixados pelo próprio Getúlio sabemos que ele temia uma articulação política mais efetiva pró-Aliados, o que significaria a derrocada do Estado Novo - como realmente ocorreu com o término da guerra, em 1945.

Na verdade, o fim da ditadura somou esforços de vários setores da população com a pressão externa. Já em 1943 um Manifesto dos Mineiros fora divulgado, assinado por intelectuais e figuras proeminentes de Minas Gerais e provocara grande comoção pública e reação violenta do ditador - multiplicaram-se demissões, prisões e punições após sua publicação. Em janeiro de 1945 o 1º Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, exigiu liberdade de expressão, volta à legalidade e eleições livres. No dia 22 de fevereiro, um dia depois de a Força Expedicionária Brasileira (FEB) realizar um importante feito na Itália, a tomada de Monte Castelo, o "Correio da Manhã", do Rio de Janeiro, desprezando a censura, publicava uma entrevista que se tornaria célebre, feita por Carlos Lacerda com o político José Américo de Almeida, antigo companheiro de Getúlio na Revolução de 1930 - ele denunciava as intenções continuístas do ditador e seus planos de prorrogar mandatos também dos interventores que colocara nos estados.

Explorando seu prestígio entre o povo, Vargas tornava evidentes seus propósitos insuflando o queremismo ("Queremos Getúlio!"), movimento chefiado pelo populista Hugo Borghi e apoiado pelos comunistas. Entre março e abril de 1945, o ditador, bem no seu estilo, criaria dois partidos políticos antagônicos: além do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Social Democrático (PSD) para atuar nas classes mais conservadoras, liderado por coronéis e interventores. Em seu esforço de conciliar os opositores - reunidos na União Democrática Nacional (UDN), que apresentava o brigadeiro Eduardo Gomes como candidato à presidência -, e sentindo a guinada democrática que se processava no mundo, já no fim de abril Getúlio anistiou os presos políticos, suprimiu a censura à imprensa e garantiu a liberdade de organização partidária.

Tancredo Neves - conta Claudio Bojunga em seu livro JK - o Artista do Impossível - assim definia o ditador: "Getúlio era homem que acreditava no poder quase como quem acredita numa divindade. O poder como força super-humana ou de complementação das deficiências humanas para realizar grandes objetivos de ordem política e social. Ele via no poder a única forma capaz de lhe permitir exteriorizar suas concepções de ação política".

No clima político do ano de 1945, com o crescimento do temor de mais um golpe, a gota d’água que precipitou os acontecimentos foi a nomeação por Getúlio de seu irmão caçula - adequadamente chamado Benjamin, mais conhecido como Bejo -, um notório boêmio e desordeiro, mulherengo e negocista, para o cargo de chefe de polícia do Rio de Janeiro. Na mesma noite, o general Góes Monteiro - também antigo companheiro de Vargas - punha a tropa na rua e ocupava a Assembléia Legislativa, avisando Getúlio de que estava deposto. Temporariamente o poder foi entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Linhares. E os brasileiros puderam, após 15 anos, achar o caminho das urnas - a escolha seria, porém, entre dois militares, o brigadeiro Eduardo Gomes de um lado, o general Eurico Gaspar Dutra de outro. Getúlio, mesmo exilado em São Borja (RS), conseguiu influir no resultado, mandando o povo votar no carrancudo general que realizaria um dos governos mais medíocres e limitados que já tivemos.

Curiosamente, nove anos mais tarde o estopim do traumatizante processo que resultou no trágico suicídio de Vargas em 24 de agosto de 1954, quase no fim do seu período de governo constitucional, teria sido igualmente o comportamento irresponsável e criminoso do mesmo Bejo, que vinha sendo acusado pela oposição de instigador de um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda.

Mas essa é uma outra história.

Revista Problemas Brasileiros

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