pela exploração de nosso ouro negro
CECÍLIA PRADA
O Visconde comemora o sucesso da perfuração
de seu poço / Reprodução
Quando a ministra Dilma Rousseff, no dia 8 de novembro de 2007, proclamou às quatro esquinas do mundo e em voz de altissonante patriotismo que o Brasil deixava, naquele momento, de ser apenas um país auto-suficiente em petróleo para entrar, em breve, no rol dos maiores exportadores mundiais do produto, causou um impacto como há muito não se via, em âmbito internacional. Confirmando-se o que se prevê após anos de prospecções e cálculos cuidadosos, o campo de Tupi, que se estende da costa do Espírito Santo até Santa Catarina, poderá valer até US$ 800 bilhões.
Para os mais velhos de nós, que assistimos à campanha "O petróleo é nosso!" do início dos anos 1950, esse brado ressoou ainda mais longe, na história. Evocou a figura ímpar daquele que foi o pioneiro absoluto que desde 1931 lutou pela exploração e pela nacionalização dos recursos de nosso subsolo – o escritor José Bento Monteiro Lobato (1882-1948). Aquele homem de sobrancelhas estranhas, compactas, furibundas, que nos retratos parecia sempre carrancudo, mas do qual sorvíamos, deliciados, as saborosas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com suas personagens onipresentes no imaginário infantil até hoje, Pedrinho e Narizinho, Emília, dona Benta... Mas do qual também nos contavam, pais e tios, as coisas ousadas que costumava fazer, campanhas e discursos de dedo em riste denunciando misérias e mazelas, governo e entidades oficiais, companhias estrangeiras, como a Standard Oil – protestos apaixonados, rebuliço grande que conseguia armar o jornalista vigoroso, tirando o sossego de muita gente importante. O que lhe valeu até uma condenação judicial e um período de prisão em 1941, sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, por ele classificado como "uma ditadura gosmenta que envolveu o país inteiro num visgo de mentira onímoda".
O inconformista
Menino terrível aquele José Renato, neto do visconde de Tremembé, nascido e criado em uma fazenda de Taubaté (SP). Já aos 11 anos revelava a vontade de mudar o mundo – a começar pelo próprio nome, pois, tendo recebido do pai como presente antecipado para sua maturidade uma vistosa bengala com as iniciais J. B. M. L., resolveu também chamar-se José Bento, como o pai, para poder usá-la. Aos 17 anos já era exímio desenhista e caricaturista e queria estudar belas-artes, mas acabou formando-se em direito em 1904, por imposição do avô, que substituíra seus pais, já falecidos. Nos dez anos seguintes, sua borbulhante inquietação o fez criar mil projetos de negócios, para tentar fugir à monotonia de sua carreira de promotor público. Quis abrir, em Areias (SP), seu primeiro posto, um armazém de secos e molhados, associou-se depois a um negócio de estradas de ferro e, finalmente, em 1911, herdando do avô a Fazenda da Buquira, abandonou o Ministério Público para se tornar fazendeiro, sonhando com técnicas de modernização da lavoura e da criação. Fundou também um externato em Taubaté. E – já entediado com a vida morna da fazenda – planejou até explorar comercialmente o Viaduto do Chá, em São Paulo....
Sem falar que durante todo esse tempo, enfiado no campo ou nas várias "cidades mortas" do interior paulista que descreveria mais tarde em seus livros Urupês e Cidades Mortas, Lobato colaborava assiduamente com artigos, traduções, caricaturas e desenhos em várias publicações do interior e da capital paulista e até na Fon-Fon do Rio de Janeiro. Em 1917, sua carreira literária se definiria: tomado de santa indignação com a técnica primitiva das "queimadas" praticadas pelos caboclos, mandou uma carta intitulada "Velha praga" para a seção "Queixas e Reclamações" de O Estado de S. Paulo – tão bem escrita que o jornal resolveu publicá-la como artigo, e a polêmica que a ele se seguiu foi acirrada. Em outros artigos, Lobato introduziu um personagem que se tornaria famoso, o Jeca Tatu, um contraste absoluto a todos os caboclos e índios estilizados de nossa literatura romântica – acocorado na beira da estrada, podre de paludismo e inanição, rindo de imbecilidade com a boca desdentada, pitando seu fuminho e vendo a vida passar... e as potências estrangeiras aqui chegarem e se instalarem, arrogantes, para a exploração de nossos produtos primários e de nosso riquíssimo subsolo.
Vendendo a fazenda, Lobato transfere-se então com a família (tinha quatro filhos) para a capital, assumindo plenamente sua carreira de jornalista-escritor – das mais fecundas que tivemos. Ao morrer, em 1948, ele nos legaria 47 livros, dos quais 24 eram obras de ficção para adultos e ensaios, e 23 infantis. Carreira que se encaixa totalmente em um projeto de engajamento pessoal sui generis, voltado para a ação política, para a participação atuante na realidade social do Brasil. É dos poucos escritores que nunca se demorou em subjetivismos líricos – em qualquer dos gêneros por ele adotados procurava denunciar as condições do atraso político, econômico, social e cultural do país.
Uma fênix empresarial
Até o final da década de 1920, o empresário Lobato já tinha se metido de alma e corpo na indústria do livro – provando que era possível lançar escritores brasileiros em grandes edições (de até 50 mil exemplares) com capas modernas e chamativas, produção gráfica impecável, e distribuí-las Brasil afora. O sucesso retumbante que teve, tanto com seus próprios livros como com os de outros autores nacionais ou estrangeiros, traduzidos por ele, levou-o a investimentos pesados em máquinas importadas dos Estados Unidos e da Europa, para aumentar seu parque gráfico. Alguns elementos inesperados cortaram sua euforia – o grande "apagão" da energia elétrica em São Paulo, em 1924, reduziu o funcionamento de sua gráfica a dois dias por semana, em um momento em que estava atolado em compromissos. E o presidente Arthur Bernardes (Lobato o combateu muito), desvalorizando a moeda e suspendendo o redesconto pelo Banco do Brasil, gerou a falência do negócio de Lobato e de muitos outros. Embora ainda mantivesse participação em outra empresa recém-fundada, a Companhia Editora Nacional, o empresário que pulsava nele sob a pele do escritor procurou outros estímulos editoriais.
Em 1927 foi nomeado pelo presidente Washington Luís adido comercial do Brasil nos Estados Unidos, e estabeleceu-se em Nova York. Sem nunca deixar de escrever livros (lançou mais sete, no período 1927-1930), cumpriu um programa de visitas a indústrias e companhias como a Ford e a General Motors, para estudar os caminhos do sucesso do empresariado americano. Desenvolveu seu interesse pelas questões relacionadas ao petróleo e ao ferro, organizando até uma empresa brasileira para a produção do aço pelo processo Smith, mas jogou na Bolsa de Valores de Nova York e acabou perdendo tudo o que possuía na crise de 1929. Para cobrir o prejuízo, foi obrigado a vender as ações que tinha da Companhia Editora Nacional, em 1930.
Até o fim da vida, seu percurso seria marcado por altos e baixos dramáticos, nas finanças e na vida pessoal: seus dois filhos homens morreriam jovens, Guilherme com 27 anos e Edgar com 32. Mas Lobato não se deixava abater, nem esmorecia em suas múltiplas atividades, intelectuais ou empresariais.
O homem do petróleo
Em 1931, já de volta a São Paulo, Lobato cria a Companhia Petróleos do Brasil, que tem a metade de suas ações subscrita em apenas quatro dias – mostrando como a procura pelo produto empolgava os investidores nacionais. Depois dela, animado com o sucesso, vai fundando várias empresas similares, até culminar, em julho de 1938, com a fundação da maior de todas, a Companhia Matogrossense de Petróleo, que visava realizar perfurações próximo à fronteira boliviana, onde o produto já fora encontrado. Durante toda a década de 1930 percorre o país divulgando sua convicção de que era grande, enorme mesmo, o potencial petrolífero do país (e de toda a América Latina, pela própria formação geológica). E denunciando, em conferências, em artigos, a existência dos trustes internacionais aos quais não interessava, como exportadores do produto vital, que mais "descobertas" fossem feitas.
Há no nacionalismo lobatiano um contraste constante, desde o início, com o falso nacionalismo romântico, com o ufanismo vazio, à la Afonso Celso (autor do xaroposo Por Que Me Ufano de Meu País, de 1900), que desde o final do século 19 embalava o país com suas belezas naturais, seus sabiás canoros, seus índios embelezados – os esforços de Lobato se concentravam em despertar o gigante eternamente deitado em berço esplêndido da nossa nacionalidade, para fazê-lo emparelhar passo com os elementos concretos da industrialização e da modernidade. Como disse em Belo Horizonte, diante de um auditório lotado: "Compreendi ser o petróleo a grande coisa, a coisa máxima para o Brasil, a única força com elementos capazes de arrancar o gigante do seu berço de ufanias".
Em 1935, traduz e lança com grande sucesso pela Companhia Editora Nacional o livro A Luta pelo Petróleo, de Essad Bey, apresentando-o com uma grande introdução em que denuncia tanto as empresas internacionais, a exemplo da Standard Oil e da Royal Dutch & Shell, quanto os "Interesses Ocultos" – isto é, os órgãos oficiais, os governos e as máquinas administrativas que eram seus cúmplices na estratégia de ocultação do petróleo.
Em agosto de 1936, Lobato lança seu livro O Escândalo do Petróleo, que qualificava como "sincero e desesperado". Dedicava-o ao exército e à marinha do Brasil, na sua qualidade de órgãos com que a nação assegurava sua dignidade e soberania. Reunia nele os depoimentos que apresentara à Comissão de Inquérito sobre o Petróleo com o intuito de denunciar a existência de "gente interna interessada em nosso suicídio como nação", já que "se não ter petróleo é inanir-se economicamente, militarmente é suicidar-se" – gente que impedia por todos os meios a exploração do combustível jacente em nosso subsolo, negando sua existência, duvidando de sua qualidade e mesmo fechando os poços já abertos.
Foi um escândalo realmente enorme, pois foram vendidos, em poucos meses, 20 mil exemplares. Mas Getúlio Vargas irritou-se, proibiu o livro e mandou apreender todos os exemplares disponíveis. Em 1937, novo ataque lobatiano, desta vez encenado diante de seu público predileto, o infanto-juvenil: O Poço do Visconde, no qual, seguindo linha já habitual em seus livros para crianças, o escritor conseguia realizar um trabalho educativo, passando um conhecimento geológico específico, até hoje válido para os que, crianças ou adultos, o queiram absorver da forma mais agradável e eficiente.
Em prefácio à reedição de O Escândalo do Petróleo de 1946, diria Caio Prado Júnior que Lobato era um dos raros praticantes do "idealismo do progresso material que se nutre do alto pensamento e da visão geral e ampla de um mundo melhor, de homens mais bem alimentados, melhor vestidos e abrigados, mas tem suas raízes solidamente plantadas no terreno das realizações práticas, possíveis e imediatas". Embora fracassada como projeto empresarial, a experiência de Lobato no setor do petróleo, ainda na opinião de Caio Prado, teve o valor de revelar um dos principais fatores do atraso e da pobreza do Brasil, e de denunciar os extremos de violência a que chegaram a força, o poder, os métodos das grandes organizações financeiras do mundo moderno, conluiadas com instituições governamentais.
Uma das armas usadas pelo audacioso jornalista foram as "cartas abertas" às autoridades, aos responsáveis diretos pelo acobertamento do que realmente se passava no país. A que dirigiu ao ministro da Agricultura foi considerada extremamente ofensiva. Logo mais foi detido, brevemente, no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Em 5 de maio de 1940 lançava outra bomba – uma carta aberta ao presidente Vargas, de ousadia ímpar, que começava com uma ameaça: "...se o senhor não toma a si a solução do caso [do petróleo] arrepender-se-á amargamente um dia..." E implorava, com lamento bíblico: "Doutor Getúlio, pelo amor de Deus ponha de lado sua displicência e ouça a voz de Jeremias. Medite por si mesmo [itálico dele] no que se está passando..."
Vargas não perdeu muito tempo meditando. Fez instaurar um inquérito que levou Lobato à prisão, 11 meses mais tarde, condenado "por crime de injúria à pessoa do presidente da República, ao Conselho Nacional do Petróleo e ao Departamento Nacional de Produção Mineral, e sujeito a pena de seis meses a dois anos de prisão". Preso em abril de 1941 em São Paulo, permaneceu detido até junho – quando Vargas, pressionado pelos protestos dos intelectuais, resolveu anistiá-lo. Mas sofreu todo o rigor do regime, pois foi mantido incomunicável, impedido de receber visitas ou mesmo de conversar com outros detentos e de tomar sol no pátio. Em carta à esposa, Purezinha, descreve sua vida no cárcere: "É a gente sozinho com o pensamento, e nunca o pensamento trabalha tanto. Mas de tanto trabalhar acaba girando num círculo".
"O petróleo é nosso!"
No final dos anos 1940, estava nas ruas a campanha nacionalista pelo petróleo – Pedrinho e Narizinho, aquelas crianças instruídas e endoutrinadas pelo "Andersen da América Latina", haviam crescido, aproveitado as lições de geologia e patriotismo dadas pelo Visconde de Sabugosa, já estavam na faculdade... E saíam às ruas gritando, portando cartazes e faixas, aproveitando os ares de liberdade que reinavam então no Brasil após a derrocada da ditadura Vargas.
A campanha foi mesmo considerada tão apaixonante no século 20 como fora a da Abolição, no século 19. Enquanto os "entreguistas" propugnavam uma ampla abertura do país ao capital estrangeiro para a exploração do petróleo, os "nacionalistas" (principalmente esquerdistas e estudantes) pregavam o monopólio estatal do produto e exigiam a criação de uma empresa nacional – uma ardorosa polêmica que só terminou com a fundação da Petrobras, no governo constitucional de Vargas, em 3 de outubro de 1953, após um debate parlamentar que durou 23 meses. E que na verdade ainda não terminou de todo, pois a discussão sobre a legitimidade e a conveniência dos contratos de risco e da necessidade ou não de parcerias com empresas multinacionais está na ordem do dia, multiplicada por mil outras questões que os especialistas já estão lançando por aí: valerá a pena o Brasil inscrever-se no clube da Opep? Quanto tempo durará ainda a hegemonia do poluidor petróleo como combustível? Como conciliar a possível superprodução petrolífera do Brasil com seus interesses em propalar o uso do etanol e com o desenvolvimento das pesquisas internacionais sobre os biocombustíveis?
É uma pena que o velho Lobato não esteja mais entre nós, com suas notáveis sobrancelhas, para debater com o vigor de sempre os projetos da nacionalidade. Afinal, foi dele a idéia da criação da Petrobras, 12 anos antes de sua efetiva fundação. Ele a remeteu, em mais uma carta malcriada, escrita na cadeia, ao "doutor Getúlio", no dia 19 de abril de 1941. Parabenizava-o pelo seu aniversário e dizia: "Quero dar-lhe um presente. Esse presente é uma idéia. Essa idéia é a seguinte: assim como o governo formou a Cia. Nacional Siderúrgica com 500 mil contos de capital, por que não funda também a Cia. Nacional do Petróleo com outros 500 mil contos de capital?" Uma empresa que, dizia, conciliaria os interesses do país com os esforços dos empresários nacionais que há muito (ele próprio à frente) lutavam para perfurar e manter abertos os poços que os membros do (vendido, na sua opinião) Conselho Nacional do Petróleo insistiam em mandar cimentar, por improdutivos. E sugeria até o aproveitamento do pessoal desse órgão: "O general comandante desse conselho, e os mais membros que o compõem, caso empregados como combustível nas fornalhas das sondas, darão para mover as máquinas por uns dois ou três dias – vantagem que positivamente não é de desprezar".
Revista Problemas Brasileiros
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