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24/08/2009
A historiadora da arte Birgit Schwarz explicou à "Spiegel" porque Adolf Hitler via a si mesmo como um gênio e como sua obsessão pela arte afetou suas visões políticas.
Spiegel: Sra. Schwarz, inúmeros livros e trabalhos acadêmicos já foram escritos em todo o mundo sobre Hitler, o Terceiro Reich e o Holocausto. Agora a senhora afirma que é tempo de corrigir a imagem que temos de Hitler. Em que sentido?
Birgit Schwarz: Na minha opinião, as pessoas subestimaram a noção de que Hitler se considerava um artista, na verdade, um gênio artístico, e isso pode ser deduzido a partir dessa autoimagem, desse ego de artista superinflado. Entretanto, isso influenciou muito pouco a pesquisa até hoje. Mas, no meu ponto de vista, este é o ponto de partida que pode nos ajudar a ter uma maior compreensão de Hitler enquanto pessoa, assim como de seu sistema de poder. A ilusão de Hitler de que era um gênio é baseada no confuso sistema de idéias que emergiram no final do século 19, centrado na ideia de que um gênio - uma forte personalidade que brilhava acima de tudo - podia fazer de tudo e podia fazer o que bem entendia.
Spiegel: Isso soa como uma visão discutível. Os historiadores vão reclamar.
Schwarz: Talvez. Mas acredito que é importante corrigir a história de sua personalidade. Além disso, estou ansiosa para o debate.
Spiegel: A relação de Hitler com a arte é bem documentada. Ele ganhou dinheiro com suas aquarelas e queria se tornar um pintor. Mais tarde ele se tornou um colecionador insaciável, numa paixão que se transformou no roubo de arte mais brutal de todos os tempos. Tudo isso nós sabemos. O que, então, está supostamente incorreto em relação à imagem atual que temos de Hitler?
Schwarz: Há uma visão bastante disseminada de que ele não era verdadeiramente fascinado pela arte, e que apesar de colecionar arte e usá-la para cultivar sua imagem, ele a escondia em porões e minas.
Alguém como Göring estava constantemente se vangloriando de sua coleção, mas muitos acreditavam que Hitler não estava de fato tão interessado. Entretanto, isso estava profundamente enraizado em sua personalidade.
Spiegel: O que a faz ter tanta certeza?
Schwarz: Entre outras coisas, relatos até então subestimados de seus contemporâneos. Por exemplo, havia um arqueólogo e historiador da arte italiano chamado Ranuccio Bianchi Bandinelli, um grande estudioso que não era do lado de Hitler. Ele se tornou um dos grandes intelectuais italianos depois da guerra. Em 1938, Bianchi Bandinelli foi convidado para servir de guia turístico durante uma das visitas oficiais de Hitler, e Hitler passou horas a fio admirando pinturas. De acordo com Bianchi Bandinelli, era evidente na linguagem corporal de Hitler que ele estava verdadeiramente encantado pela arte.
Spiegel: Mas Mussolini ficava simplesmente irritado com o tempo que Hitler passava olhando obras de arte.
Schwarz: Sim, mas fontes como o relato de Bianchi Bandinelli mostram que há algo importante faltando no retrato que fazemos de Hitler, algo que ainda precisamos compreender e que não foi levado em consideração até agora. De fato, uma imagem bem diferente foi construída ao longo de décadas, mais precisamente a da luta de Hitler contra a chamada arte degenerada.
Spiegel: Mas isso também é uma parte importante do relacionamento dele com a arte.
Schwarz: É claro, e isso é provavelmente alimentado por um ódio real. Mas, ao mesmo tempo, a arte foi muito importante para ele durante toda a sua vida.
Spiegel: A percepção de Hitler como um artista faz com que ele pareça menos nefasto?
Schwarz: Não. De fato, seu amor pela arte o levou diretamente para o coração do mal. Mas isso tampouco é a raiz de tudo. A perseguição fanática de sua própria causa e sua autoimagem de gênio contribuíram para seus poderes de persuasão e, portanto, para seu sucesso. A arte fez parte de sua vida até suas últimas horas, aparecendo até mesmo em seu testamento particular, no qual ele menciona suas coleções. Ele foi um homem que promulgou o chamado Decreto Nero (nota do editor: o Decreto Nero de Hitler, sancionado em março de 1945, ordenava a destruição de qualquer infraestrutura que pudesse ser utilizada pelos
aliados) e ao mesmo tempo se certificou de que os tesouros da arte fossem resgatados. Mas ninguém está disposto a admitir a obsessão dele pela arte.
Spiegel: Mas a história de como Hitler voou para a Paris ocupada e visitou os principais pontos turísticos pela manhã é lendária.
Schwarz: Essa obsessão com a arte foi interpretada como algo que servia apenas para cultivar sua imagem e propaganda. Quando você observa a biografia de Hitler, compreende que a arte era extremamente importante para ele muito antes disso, e que ele precisava dela para sua autoafirmação.
Spiegel: Historiadores importantes, particularmente o brilhante Ian Kershaw, veem o jovem Hitler principalmente como um pintor fracassado.
Ele queria estudar pintura, mas foi rejeitado pela Acadeia de Belas Artes de Viena duas vezes, em 1907 e 1908. Por que você não aceita essa interpretação?
Schwarz: É claro, ter sido rejeitado foi um choque importantíssimo para ele. Mas a comunidade de pesquisa sobre Hitler acredita que ele aceitou o fracasso e que desistiu do mundo artístico. Mas, na realidade, ele sempre manteve sua autoimagem de artista e de alguém obcecado pela arte. A rejeição da academia foi provavelmente o que o levou a considerar a si mesmo como um gênio.
Spiegel: Em sua opinião, ele via a si mesmo como alguém que havia sido subestimado. Mas onde está a diferença entre "fracassado" e "subestimado", que é tão fundamental para entender Hitler?
Schwarz: Se ele visse a si mesmo como um fracassado, ele teria de abandonar a ideia de ser um artista. É isso que Ian Kershaw, por exemplo, afirma. E (o historiador e biógrafo alemão de Hitler) Joachim Fest não leva a autoimagem de Hitler como um gênio suficientemente a sério. Muitos acreditam que Goebbles só começou a se referir a Hitler como um gênio mais tarde.
Spiegel: E foi de fato o que aconteceu.
Schwarz: Mas para Hitler isso era mais do que uma estratégia de propaganda. Ele acreditava seriamente que era um gênio, muito antes que Goebbles se referisse a ele dessa forma. E faz sentido que Goebbles o descrevesse constantemente como um gênio. Um gênio não deveria se referir a si mesmo como gênio. Ele precisa de uma comunidade de admiradores. Sua convicção de que era um gênio, na minha interpretação, era o centro de toda a sua visão de mundo.
Spiegel: Durante algum tempo, Hitler sobreviveu pintando aquarelas de paisagens de Viena. Ele foi aparentemente demitido de uma firma de arquitetura, onde você acredita que ele tenha trabalhado, porque seu desempenho não era bom o suficiente. E depois ele se mudou para Munique, onde passou muito tempo nos cafés. Isso não parece característico de alguém que tenha a urgência criativa de um gênio.
Schwarz: Pelo contrário. Deixe-me dar um exemplo. Foi anunciado em Berlim um concurso para um projeto de construção grandioso do final do período do Kaiser. O teatro da ópera seria reconstruído. Não sabemos se Hitler tentou oficialmente entrar na competição - de fato, é pouco provável - mas parece que ele desenhou alguns esboços próprios. Ele acreditava que poderia ser tão competente quanto os mais famosos arquitetos.
Spiegel: Por que ele não procurou o reconhecimento público?
Schwarz: Um gênio pode brilhar em segredo, esperando causar uma grande sensação um dia.
"O gênio tinha permissão para estar acima da moralidade"
Spiegel: Hitler poderia seriamente ter se considerado um gênio? Seu talento como projetista era, na melhor das hipóteses, modesto.
Schwarz: Aparentemente ele se sentia diferente, e era importante para seu ego que ele fosse um autodidata. Depois da humilhação de ser rejeitado pela academia, ele desenvolveu uma aversão por todos os professores e pelo estudo acadêmico. Ele referiu-se a si mesmo certa vez como um pintor menor, mas isso foi numa época em que ele acreditava ser um grande arquiteto. No geral, ele via a si mesmo como um gênio criativo. Você não pode esquecer que o conceito que temos hoje de gênio é bem mais inofensivo do que o que existia na época.
Spiegel: Em que sentido?
Schwarz: Definimos um gênio com base em seu talento. Na época, o talento não era o foco principal. Um gênio precisava ter uma forte personalidade. Era um talento maior do que a vida a quem era permitido fazer tudo, inclusive maldades. O gênio tinha ideias superiores, que precisavam ser implementadas, mesmo que fossem completamente amorais.
Hitler admirava o trabalho de filósofos sombrios como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche. Um aspecto importante que é com freqüência ignorado é que o conceito de gênio foi por muito tempo colorido pelo racismo. Houston Stewart Chamberlain, um britânico de nascimento que havia se casado com uma mulher da família de Richard Wagner, foi uma figura significativa. Ele publicou suas ideias num livro que se tornou um bestseller. Chamberlain, que promoveu a grande personalidade ariana, era uma figura-chave para Hitler.
Spiegel: Você chega ao ponto de estabelecer uma relação entre o conceito de gênio e o Holocausto?
Schwarz: Permita-me repetir uma coisa: o gênio tinha permissão para ir além da moralidade. A amoralidade dos nazistas significa levar essa posição a seu extremo inconcebível. Goebbels escreveu a sentença
brutal: "gênios consomem pessoas". O conceito de gênio de Hitler compreendia a ideia de um inimigo. No caso dele, isso precisava até mesmo ser um inimigo mortal.
Spiegel: Mas a visão de mundo de Hitler foi fortemente influenciada pela 1ª Guerra Mundial e por suas próprias experiências drásticas na frente de batalha.
Schwarz: Naturalmente isso foi um ponto de virada. Entretanto, ele acreditava que a guerra havia provado que era possível superar todos os obstáculos. Mas não vejo uma mudança absoluta em sua vida. Mesmo antes da 1ª Guerra, ele já tinha essa autoimagem de gênio, e a manteve mesmo depois disso. É uma continuidade. No começo dos anos 20, chegou a declarar que era necessário um "ditador que fosse um gênio". É claro, a população também ansiava por um gênio.
Spiegel: Será que a palavra "gênio" não deveria ser substituída por "Führer" ("líder")?
Schwarz: Não. O conceito de Führer surgiu do conceito de gênio, antes de mais nada. Mais uma vez, foi feita uma distinção muito grande entre 'Hitler, o artista' e 'Hitler, o político' até hoje. A pesquisa descreve Hitler como um homem que foi um fracasso durante seus primeiros 30 anos antes de, repentinamente, como se tivesse uma nova vida, conseguir cativar as massas como político. É uma biografia dividida, em outras palavras. Mas a questão é: onde foi que ele conseguiu essa autoconfiança e a certeza de que era uma figura excepcional?
Spiegel: O próprio Hitler descreveu a si mesmo como alguém dividido em sua biografia, "Mein Kampf", na qual ele escreveu a frase notória:
"Mas decidi me tornar um político."
Schwarz: Não foi uma divisão, mas um desenvolvimento. Sua carreira como político não contradiz sua autoimagem de gênio de forma alguma. E era assim que ele considerava a si mesmo, em primeiro lugar um artista, e depois um político e estrategista. Mas sem sua autoimagem de artista, ele jamais teria sido capaz de ver a si mesmo como um gênio. É por isso que ele tinha que constantemente reafirmar seu amor pela arte.
Spiegel: Você descreve as pinturas que Hitler pendurou e removeu repetidas vezes de suas salas particulares e oficiais, incluindo trabalhos do pintor suíço Arnold Böcklin e do pintor alemão Carl Spitzweg. Esses dois pintores representam estilos bem diferentes: um é excessivo e agressivo e o outro é detalhista e contemplativo, respectivamente. E havia também os retratos neoclássicos de mulheres feitos por pintores como Anselm Feuerbach. Como isso tudo se encaixa?
Schwarz: Isso não se encaixa de forma alguma. Eu reconstruí sua coleção de pinturas, incluindo as que ele tinha em suas salas privadas. O gosto de Hitler não pode ser definido. Não há um denominador estético comum. Mas o que os seus pintores favoritos tinham em comum é que Hitler as via como gênios incompreendidos.
Spiegel: Um gênio precisa de uma musa? Se sim, a musa de Hitler foi Eva Braun - ou talvez seu arquiteto favorito, Albert Speer?
Schwarz: Talvez um artista precise de uma musa, mas um gênio não, porque a força criativa de um gênio vem de dentro. E um gênio, como Hitler explicou para sua secretária, não poderia ter filhos.
Entretanto, ele tinha alguns ídolos, incluindo Frederico, o Grande, que se tornou cada vez mais importante para ele. Hitler sentia que ele era uma encarnação desse líder amante das artes, que foi tanto um colecionador quanto um estrategista militar. Ele imitava Frederico em todos os aspectos, inclusive em seu amor por cachorros e, mais tarde, em seu andar arrastado e uniforme manchado. Isso era óbvio até para a terrivelmente banal Eva Braun, que desaprovava os esforços excessivos dele para imitar Frederico. No final, ele insistia em ter um retrato do rei por perto o tempo todo, mesmo no bunker. Os acadêmicos sabem dessa adoração e como ela foi profunda e alarmante, embora talvez não tenha sido devidamente estudada.
Spiegel: No final de sua vida, quanto ele reteve da crença de que era um gênio?
Schwarz: Isso foi tudo no fim. De fato, podemos compreender melhor os últimos meses da vida de Hitler se levarmos em consideração sua ilusão de ser um gênio. O período no bunker do Führer é muito esclarecedor. Seus aposentos ficavam a apenas poucos passos do porão da Chancelaria do Novo Reich, onde estavam expostas as maquetes de seus planos arquitetônicos para a cidade de Linz. Ele tinha de reafirmar seu status de gênio, e só podia fazer isso através da conexão próxima com a arte e a arquitetura. Essas tentativas finais de criar uma certa imagem de si mesmo tiveram um efeito fatal. Ele impressionava fortemente muitas pessoas ao seu redor. Muitos acreditavam que Hitler teria sucesso no final, assim como seu ídolo e suposto colega gênio Frederico, o Grande conseguiu ganhar algumas batalhas, saindo até mesmo vitorioso de algumas guerras apesar de ter sofrido derrotas militares.
Spiegel: Então a arte nunca abriu os olhos de Hitler - ele via apenas o que queria ver?
Schwarz: Essa sempre foi sua intenção, desde o início.
Spiegel: Sra. Schwarz, obrigado por esta entrevista.
Tradução: Eloise De Vylder
Der Spiegel
A historiadora da arte Birgit Schwarz explicou à "Spiegel" porque Adolf Hitler via a si mesmo como um gênio e como sua obsessão pela arte afetou suas visões políticas.
Spiegel: Sra. Schwarz, inúmeros livros e trabalhos acadêmicos já foram escritos em todo o mundo sobre Hitler, o Terceiro Reich e o Holocausto. Agora a senhora afirma que é tempo de corrigir a imagem que temos de Hitler. Em que sentido?
Birgit Schwarz: Na minha opinião, as pessoas subestimaram a noção de que Hitler se considerava um artista, na verdade, um gênio artístico, e isso pode ser deduzido a partir dessa autoimagem, desse ego de artista superinflado. Entretanto, isso influenciou muito pouco a pesquisa até hoje. Mas, no meu ponto de vista, este é o ponto de partida que pode nos ajudar a ter uma maior compreensão de Hitler enquanto pessoa, assim como de seu sistema de poder. A ilusão de Hitler de que era um gênio é baseada no confuso sistema de idéias que emergiram no final do século 19, centrado na ideia de que um gênio - uma forte personalidade que brilhava acima de tudo - podia fazer de tudo e podia fazer o que bem entendia.
Spiegel: Isso soa como uma visão discutível. Os historiadores vão reclamar.
Schwarz: Talvez. Mas acredito que é importante corrigir a história de sua personalidade. Além disso, estou ansiosa para o debate.
Spiegel: A relação de Hitler com a arte é bem documentada. Ele ganhou dinheiro com suas aquarelas e queria se tornar um pintor. Mais tarde ele se tornou um colecionador insaciável, numa paixão que se transformou no roubo de arte mais brutal de todos os tempos. Tudo isso nós sabemos. O que, então, está supostamente incorreto em relação à imagem atual que temos de Hitler?
Schwarz: Há uma visão bastante disseminada de que ele não era verdadeiramente fascinado pela arte, e que apesar de colecionar arte e usá-la para cultivar sua imagem, ele a escondia em porões e minas.
Alguém como Göring estava constantemente se vangloriando de sua coleção, mas muitos acreditavam que Hitler não estava de fato tão interessado. Entretanto, isso estava profundamente enraizado em sua personalidade.
Spiegel: O que a faz ter tanta certeza?
Schwarz: Entre outras coisas, relatos até então subestimados de seus contemporâneos. Por exemplo, havia um arqueólogo e historiador da arte italiano chamado Ranuccio Bianchi Bandinelli, um grande estudioso que não era do lado de Hitler. Ele se tornou um dos grandes intelectuais italianos depois da guerra. Em 1938, Bianchi Bandinelli foi convidado para servir de guia turístico durante uma das visitas oficiais de Hitler, e Hitler passou horas a fio admirando pinturas. De acordo com Bianchi Bandinelli, era evidente na linguagem corporal de Hitler que ele estava verdadeiramente encantado pela arte.
Spiegel: Mas Mussolini ficava simplesmente irritado com o tempo que Hitler passava olhando obras de arte.
Schwarz: Sim, mas fontes como o relato de Bianchi Bandinelli mostram que há algo importante faltando no retrato que fazemos de Hitler, algo que ainda precisamos compreender e que não foi levado em consideração até agora. De fato, uma imagem bem diferente foi construída ao longo de décadas, mais precisamente a da luta de Hitler contra a chamada arte degenerada.
Spiegel: Mas isso também é uma parte importante do relacionamento dele com a arte.
Schwarz: É claro, e isso é provavelmente alimentado por um ódio real. Mas, ao mesmo tempo, a arte foi muito importante para ele durante toda a sua vida.
Spiegel: A percepção de Hitler como um artista faz com que ele pareça menos nefasto?
Schwarz: Não. De fato, seu amor pela arte o levou diretamente para o coração do mal. Mas isso tampouco é a raiz de tudo. A perseguição fanática de sua própria causa e sua autoimagem de gênio contribuíram para seus poderes de persuasão e, portanto, para seu sucesso. A arte fez parte de sua vida até suas últimas horas, aparecendo até mesmo em seu testamento particular, no qual ele menciona suas coleções. Ele foi um homem que promulgou o chamado Decreto Nero (nota do editor: o Decreto Nero de Hitler, sancionado em março de 1945, ordenava a destruição de qualquer infraestrutura que pudesse ser utilizada pelos
aliados) e ao mesmo tempo se certificou de que os tesouros da arte fossem resgatados. Mas ninguém está disposto a admitir a obsessão dele pela arte.
Spiegel: Mas a história de como Hitler voou para a Paris ocupada e visitou os principais pontos turísticos pela manhã é lendária.
Schwarz: Essa obsessão com a arte foi interpretada como algo que servia apenas para cultivar sua imagem e propaganda. Quando você observa a biografia de Hitler, compreende que a arte era extremamente importante para ele muito antes disso, e que ele precisava dela para sua autoafirmação.
Spiegel: Historiadores importantes, particularmente o brilhante Ian Kershaw, veem o jovem Hitler principalmente como um pintor fracassado.
Ele queria estudar pintura, mas foi rejeitado pela Acadeia de Belas Artes de Viena duas vezes, em 1907 e 1908. Por que você não aceita essa interpretação?
Schwarz: É claro, ter sido rejeitado foi um choque importantíssimo para ele. Mas a comunidade de pesquisa sobre Hitler acredita que ele aceitou o fracasso e que desistiu do mundo artístico. Mas, na realidade, ele sempre manteve sua autoimagem de artista e de alguém obcecado pela arte. A rejeição da academia foi provavelmente o que o levou a considerar a si mesmo como um gênio.
Spiegel: Em sua opinião, ele via a si mesmo como alguém que havia sido subestimado. Mas onde está a diferença entre "fracassado" e "subestimado", que é tão fundamental para entender Hitler?
Schwarz: Se ele visse a si mesmo como um fracassado, ele teria de abandonar a ideia de ser um artista. É isso que Ian Kershaw, por exemplo, afirma. E (o historiador e biógrafo alemão de Hitler) Joachim Fest não leva a autoimagem de Hitler como um gênio suficientemente a sério. Muitos acreditam que Goebbles só começou a se referir a Hitler como um gênio mais tarde.
Spiegel: E foi de fato o que aconteceu.
Schwarz: Mas para Hitler isso era mais do que uma estratégia de propaganda. Ele acreditava seriamente que era um gênio, muito antes que Goebbles se referisse a ele dessa forma. E faz sentido que Goebbles o descrevesse constantemente como um gênio. Um gênio não deveria se referir a si mesmo como gênio. Ele precisa de uma comunidade de admiradores. Sua convicção de que era um gênio, na minha interpretação, era o centro de toda a sua visão de mundo.
Spiegel: Durante algum tempo, Hitler sobreviveu pintando aquarelas de paisagens de Viena. Ele foi aparentemente demitido de uma firma de arquitetura, onde você acredita que ele tenha trabalhado, porque seu desempenho não era bom o suficiente. E depois ele se mudou para Munique, onde passou muito tempo nos cafés. Isso não parece característico de alguém que tenha a urgência criativa de um gênio.
Schwarz: Pelo contrário. Deixe-me dar um exemplo. Foi anunciado em Berlim um concurso para um projeto de construção grandioso do final do período do Kaiser. O teatro da ópera seria reconstruído. Não sabemos se Hitler tentou oficialmente entrar na competição - de fato, é pouco provável - mas parece que ele desenhou alguns esboços próprios. Ele acreditava que poderia ser tão competente quanto os mais famosos arquitetos.
Spiegel: Por que ele não procurou o reconhecimento público?
Schwarz: Um gênio pode brilhar em segredo, esperando causar uma grande sensação um dia.
"O gênio tinha permissão para estar acima da moralidade"
Spiegel: Hitler poderia seriamente ter se considerado um gênio? Seu talento como projetista era, na melhor das hipóteses, modesto.
Schwarz: Aparentemente ele se sentia diferente, e era importante para seu ego que ele fosse um autodidata. Depois da humilhação de ser rejeitado pela academia, ele desenvolveu uma aversão por todos os professores e pelo estudo acadêmico. Ele referiu-se a si mesmo certa vez como um pintor menor, mas isso foi numa época em que ele acreditava ser um grande arquiteto. No geral, ele via a si mesmo como um gênio criativo. Você não pode esquecer que o conceito que temos hoje de gênio é bem mais inofensivo do que o que existia na época.
Spiegel: Em que sentido?
Schwarz: Definimos um gênio com base em seu talento. Na época, o talento não era o foco principal. Um gênio precisava ter uma forte personalidade. Era um talento maior do que a vida a quem era permitido fazer tudo, inclusive maldades. O gênio tinha ideias superiores, que precisavam ser implementadas, mesmo que fossem completamente amorais.
Hitler admirava o trabalho de filósofos sombrios como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche. Um aspecto importante que é com freqüência ignorado é que o conceito de gênio foi por muito tempo colorido pelo racismo. Houston Stewart Chamberlain, um britânico de nascimento que havia se casado com uma mulher da família de Richard Wagner, foi uma figura significativa. Ele publicou suas ideias num livro que se tornou um bestseller. Chamberlain, que promoveu a grande personalidade ariana, era uma figura-chave para Hitler.
Spiegel: Você chega ao ponto de estabelecer uma relação entre o conceito de gênio e o Holocausto?
Schwarz: Permita-me repetir uma coisa: o gênio tinha permissão para ir além da moralidade. A amoralidade dos nazistas significa levar essa posição a seu extremo inconcebível. Goebbels escreveu a sentença
brutal: "gênios consomem pessoas". O conceito de gênio de Hitler compreendia a ideia de um inimigo. No caso dele, isso precisava até mesmo ser um inimigo mortal.
Spiegel: Mas a visão de mundo de Hitler foi fortemente influenciada pela 1ª Guerra Mundial e por suas próprias experiências drásticas na frente de batalha.
Schwarz: Naturalmente isso foi um ponto de virada. Entretanto, ele acreditava que a guerra havia provado que era possível superar todos os obstáculos. Mas não vejo uma mudança absoluta em sua vida. Mesmo antes da 1ª Guerra, ele já tinha essa autoimagem de gênio, e a manteve mesmo depois disso. É uma continuidade. No começo dos anos 20, chegou a declarar que era necessário um "ditador que fosse um gênio". É claro, a população também ansiava por um gênio.
Spiegel: Será que a palavra "gênio" não deveria ser substituída por "Führer" ("líder")?
Schwarz: Não. O conceito de Führer surgiu do conceito de gênio, antes de mais nada. Mais uma vez, foi feita uma distinção muito grande entre 'Hitler, o artista' e 'Hitler, o político' até hoje. A pesquisa descreve Hitler como um homem que foi um fracasso durante seus primeiros 30 anos antes de, repentinamente, como se tivesse uma nova vida, conseguir cativar as massas como político. É uma biografia dividida, em outras palavras. Mas a questão é: onde foi que ele conseguiu essa autoconfiança e a certeza de que era uma figura excepcional?
Spiegel: O próprio Hitler descreveu a si mesmo como alguém dividido em sua biografia, "Mein Kampf", na qual ele escreveu a frase notória:
"Mas decidi me tornar um político."
Schwarz: Não foi uma divisão, mas um desenvolvimento. Sua carreira como político não contradiz sua autoimagem de gênio de forma alguma. E era assim que ele considerava a si mesmo, em primeiro lugar um artista, e depois um político e estrategista. Mas sem sua autoimagem de artista, ele jamais teria sido capaz de ver a si mesmo como um gênio. É por isso que ele tinha que constantemente reafirmar seu amor pela arte.
Spiegel: Você descreve as pinturas que Hitler pendurou e removeu repetidas vezes de suas salas particulares e oficiais, incluindo trabalhos do pintor suíço Arnold Böcklin e do pintor alemão Carl Spitzweg. Esses dois pintores representam estilos bem diferentes: um é excessivo e agressivo e o outro é detalhista e contemplativo, respectivamente. E havia também os retratos neoclássicos de mulheres feitos por pintores como Anselm Feuerbach. Como isso tudo se encaixa?
Schwarz: Isso não se encaixa de forma alguma. Eu reconstruí sua coleção de pinturas, incluindo as que ele tinha em suas salas privadas. O gosto de Hitler não pode ser definido. Não há um denominador estético comum. Mas o que os seus pintores favoritos tinham em comum é que Hitler as via como gênios incompreendidos.
Spiegel: Um gênio precisa de uma musa? Se sim, a musa de Hitler foi Eva Braun - ou talvez seu arquiteto favorito, Albert Speer?
Schwarz: Talvez um artista precise de uma musa, mas um gênio não, porque a força criativa de um gênio vem de dentro. E um gênio, como Hitler explicou para sua secretária, não poderia ter filhos.
Entretanto, ele tinha alguns ídolos, incluindo Frederico, o Grande, que se tornou cada vez mais importante para ele. Hitler sentia que ele era uma encarnação desse líder amante das artes, que foi tanto um colecionador quanto um estrategista militar. Ele imitava Frederico em todos os aspectos, inclusive em seu amor por cachorros e, mais tarde, em seu andar arrastado e uniforme manchado. Isso era óbvio até para a terrivelmente banal Eva Braun, que desaprovava os esforços excessivos dele para imitar Frederico. No final, ele insistia em ter um retrato do rei por perto o tempo todo, mesmo no bunker. Os acadêmicos sabem dessa adoração e como ela foi profunda e alarmante, embora talvez não tenha sido devidamente estudada.
Spiegel: No final de sua vida, quanto ele reteve da crença de que era um gênio?
Schwarz: Isso foi tudo no fim. De fato, podemos compreender melhor os últimos meses da vida de Hitler se levarmos em consideração sua ilusão de ser um gênio. O período no bunker do Führer é muito esclarecedor. Seus aposentos ficavam a apenas poucos passos do porão da Chancelaria do Novo Reich, onde estavam expostas as maquetes de seus planos arquitetônicos para a cidade de Linz. Ele tinha de reafirmar seu status de gênio, e só podia fazer isso através da conexão próxima com a arte e a arquitetura. Essas tentativas finais de criar uma certa imagem de si mesmo tiveram um efeito fatal. Ele impressionava fortemente muitas pessoas ao seu redor. Muitos acreditavam que Hitler teria sucesso no final, assim como seu ídolo e suposto colega gênio Frederico, o Grande conseguiu ganhar algumas batalhas, saindo até mesmo vitorioso de algumas guerras apesar de ter sofrido derrotas militares.
Spiegel: Então a arte nunca abriu os olhos de Hitler - ele via apenas o que queria ver?
Schwarz: Essa sempre foi sua intenção, desde o início.
Spiegel: Sra. Schwarz, obrigado por esta entrevista.
Tradução: Eloise De Vylder
Der Spiegel
2 comentários:
Tem um Selo para você no meu Blog Movie and Cia ! Espero que goste! Mais se estiver com tempo ou não gostar de selos não tem problema só lembrei-me de você na hora da indicação!:D
Um lindo Fim de Semana!!
Beijos
Elaine
caramba..não esperava isso de Hitler...
Amigo, voltei com meu primeiro blog e tem selo pra vc por lá ,segue o link:
http://glaukitos.blogspot.com/2009/09/selo-seu-blog-e-10.html
Ah, não me canso de parabenizá-lo pelo seu excelente blog, parabéns, parabéns,parabéns
=]
bom fds,abraço
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