quinta-feira, 3 de setembro de 2009

EUCLIDES DA CUNHA - A HISTÓRIA COMO TRAGÉDIA


Publicado em 1902, Os sertões é uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Euclides da Cunha recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para estilizar a guerra de Canudos e inserir os fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular.
Cobriu o conflito, de agosto a outubro de 1897, como correspondente de O Estado de S. Paulo, acompanhando a quarta e última expedição, formada por oito mil soldados. A epopéia gloriosa da República brasileira, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter de tragédia na violenta intervenção militar que testemunhou no sertão da Bahia.
Relatou, em sua última reportagem, o sangrento combate de 1o de outubro: "Felizes os que não presenciaram nunca um cenário igual...". As pilhas de cadáveres e o monte de feridos que gemiam amontoados no chão lhe lembraram o vale do Inferno, que o poeta Dante Alighieri (1265-1321) percorreu n'A Divina Comédia. Tal visão demoníaca deixou profundas marcas no ex-militante republicano: "acreditei haver deixado muitas idéias, perdidas, naquela sanga maldita, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam manchados de poeira e sangue..."
A guerra se tornou uma experiência-limite, que o colocou em contato com a morte vã e inglória e com a crueldade covarde e abjeta. O mal absoluto, que Euclides encarou no vale da morte em Canudos, foi também exposto pelo escritor polonês Joseph Conrad, ao enfocar a colonização predatória do Congo belga em O coração das trevas (1902), ou pelo italiano Primo Levi, em Se isso é um homem (1947), com seu relato do horror inominável dos campos de concentração alemães.
Euclides elaborou, no livro de 1902, seu remorso e perplexidade com o desfecho brutal da campanha, para o qual contribuiu, ainda que de modo involuntário, com artigos exaltados em O Estado de S. Paulo, que se encerravam com os brados patrióticos de "viva a República" ou "a República é imortal". Fizera coro, como quase toda a imprensa, àqueles que viam na rebelião um grave perigo para o novo regime.
Passou quatro anos após o término da guerra, preenchendo centenas de folhas de papel, para ordenar o caos e superar o vazio trazidos sob o impacto daquela "região assustadora", de onde voltou deprimido e doente. Seguia revendo na mente as "Muitas cenas do drama comovente/ De guerra despiedada e aterradora", conforme escreveu no poema "Página vazia".
Traçou, em Os sertões, um retrato de Antônio Conselheiro, o líder da comunidade, como personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à insanidade e ao conflito com a ordem. Viu Canudos como desvio histórico capaz de ameaçar a "linha reta", que seguia desde a juventude, entendida como a fidelidade aos princípios éticos aprendidos com o pai, amparados na crença no progresso e na República.
Filho de um comerciante de Quixeramobim, no interior do Ceará, Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, iniciou sua peregrinação mística na década de 1870, depois de ter sido abandonado pela mulher, que fugira com um policial. Seus familiares participavam, desde a década de 1830, de um sangrento combate contra um clã inimigo. Para Euclides, tal luta entre famílias teria criado uma "predisposição fisiológica" nos seus descendentes, que tornou hereditários os rancores e as vinganças, de modo semelhante aos personagens trágicos dos mitos gregos.


A história como ficção

O historiador norte-americano Hayden White já havia observado, em ensaio de 1987, que a diferença entre história e ficção reside mais no conteúdo do que propriamente na forma. A história trata de acontecimentos reais, passíveis de comprovação, enquanto a ficção apresenta fatos imaginários ou inventados. Ambas são porém construções verbais, que ordenam e codificam os fatos de acordo com as formas de ficção adotadas.
O crítico canadense Northrop Frye enfocou, em Anatomia da crítica (1957), o personagem trágico como um líder, situado entre o divino e humano, que se move do heróico ao irônico, por ser muito grande se comparado ao homem comum, mas que se mostra falho frente aos deuses ou ao destino: "O herói trágico situa-se tipicamente no topo da roda da fortuna, a meio caminho entre a sociedade humana, no solo, e algo maior, no céu." Limitado por uma ordem natural ou divina, o protagonista da tragédia é humilhado e acaba por entrar em agonia, muito distante da postura heróica inicial.
Frye define a atitude irônica a partir do eíron, o homem que se deprecia. A ironia gera um arranjo de palavras que se afasta da afirmação direta ou óbvia em favor dos sentidos velados mas sugeridos: "O termo ironia indica uma técnica, de alguém parecer que é menos do que é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de dizer o mínimo e de significar o máximo possível." E conclui: "O escritor de ficção irônica, portanto, censura-se".
Ao contrário da tragédia, em que a catástrofe do herói se relaciona de forma plausível com seu caráter e ações, a ironia torna arbitrária a situação trágica, ao mostrar que a vítima é um bode expiatório, escolhido por acaso e que não merece o que lhe acontece. Surgindo da comédia e da ficção realista, a ironia se move em direção ao mito, fazendo surgir os contornos obscuros das cerimônias de sacrifício.


Sob o signo da ironia

Euclides recorreu à ironia, para mostrar como a guerra de Canudos negou ou inverteu o mito glorioso da Revolução Francesa. Conhecera tal mito pelos relatos românticos de Victor Hugo, com o romance Noventa e três (1874), sobre a guerra dos camponeses católicos da região da Vendéia, e de Jules Michelet, com a História da Revolução Francesa (1874-53), que transformaram o povo em herói coletivo.
Fez, em Os sertões, a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens e se afastou da comparação entre a história brasileira e a Revolução Francesa. Em seus artigos iniciais sobre a guerra, como "A nossa Vendéia", aproximara o conflito no sertão baiano da rebelião em 1793 dos camponeses monarquistas e católicos contra a França revolucionária. Reconhecia a omissão de sua cobertura jornalística, ao relatar no livro, ainda que de forma velada, o massacre dos prisioneiros, sobre o qual antes se calara.
Euclides viu o sertão como o reflexo do litoral, ambos dominados pela mesma barbárie. Tal nota pessimista encontrou expressão nas inúmeras antíteses, que indicam suas próprias hesitações no julgamento da guerra. Canudos é a "Tróia de taipa dos jagunços", misto de cidadela inexpugnável e de labirinto de casebres de barro, cuja luta evocaria os feitos épicos cantados por Homero. O sertanejo é um herói monstruoso, "Hércules-Quasímodo", tão forte quanto desgracioso. Conselheiro um "pequeno grande homem", que entrou para a história, como poderia ter ido para o hospício...


A história como tragédia

Euclides concebeu a história como drama trágico, ao escrever sobre os conflitos armados dos primeiros anos da República, como a Revolta da Armada (1893-4) e a guerra de Canudos (1896-7), dos quais foi testemunha ou participante. Empregou imagens ligadas às artes plásticas e cênicas, para apresentar a história como se fosse uma peça de teatro ou os quadros de uma exposição.
Leu, ao longo da vida, os trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, além dos dramas de Shakespeare. Redigiu grande parte de Os sertões em São José do Rio Pardo, de 1898 a 1901, enquanto dirigia a reconstrução de uma ponte metálica sobre o rio. À frente do barracão, de onde fiscalizava as obras, escreveu a indagação cruel e irônica do Hamlet de Shakespeare, surpreso com a alegria de sua mãe, a rainha Gertrude, após a misteriosa morte do marido: "What should a man do but be merry?" ("O que pode um homem fazer senão alegrar-se?")
Berthold Zilly, tradutor alemão da obra, observou que o engenheiro-escritor recria a guerra como tragédia, em que o não-herói, o sertanejo, se revela como o único herói numa transfiguração quase milagrosa de apoteose: "A História é apresentada como trágica, repleta de infelicidades, infâmias e catástrofes, um imbricamento de progressos e retrocessos marcados por hecatombes."
O espaço geográfico se transforma, nas palavras de Euclides, em palco de um "emocionante drama" histórico. O sertão de Canudos é um "monstruoso anfiteatro", cujo isolamento se reforça pelo majestoso círculo de montanhas, que evoca os teatros ao ar livre da antigüidade. A matança dos prisioneiros é tomada como "um drama sanguinolento da Idade das cavernas", ou uma "inversão de papéis", em que os soldados e oficiais, supostos representantes da civilização, agiam de forma bárbara.
A natureza é vista, em "A terra", primeira parte de Os sertões, como cenário trágico, que antecipa, de modo simbólico, a chacina dos prisioneiros. A vegetação da caatinga permitiria antever o sacrifício dos sertanejos degolados pelos soldados. As flores rubras das cabeças-de-frade lembravam "cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica".
Euclides apresentou as batalhas, a que assistiu como repórter, como quadros e cenas vistos de tribunas elevadas ou de camarotes, formados pelos morros ao redor de Canudos, onde se instalaram as tropas com os canhões que bombardeavam a cidade. As metáforas teatrais transformam os combates em espetáculo, em que o narrador retoma o papel do coro da tragédia, comentando os acontecimentos, lamentando as vítimas e acusando os vencedores.
A violenta batalha de 24 de setembro de 1897, que resultou no cerco de Canudos, é narrada de um modo épico, plástico e ilustrativo, com longas descrições de quadros, e depois como um ato de tragédia, em que as imagens se tornam teatrais e dinâmicas. Contado com intensa dramaticidade, o combate é central no desenrolar da guerra. Observa Euclides: "traçara-se a curva fechada do assédio real, efetivo. A insurreição estava morta."
Munido de binóculos, o narrador contempla o espetáculo do alto do morro, junto com os oficiais, que formavam uma "platéia enorme", entusiasmada com os avanços das tropas: "Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos." Os incêndios no casario lembravam os refletores de um palco e a fumaça escondia por vezes o quadro, "como o telão descido sobre um ato de tragédia". Refere-se à cortina, empregada nas tragédias gregas para impedir a visão das cenas violentas ou patéticas, que eram representadas por trás do pano, enquanto os espectadores ouviam os gritos da vítima.
A degola dos prisioneiros é mencionada, de forma velada, no final de Os sertões. Tal elipse, em que a matança se torna implícita, tem função semelhante à do telão no teatro: o narrador adota o decoro trágico e evita a representação de fatos cruentos, já que não haveria linguagem capaz de exprimir tal horror: "E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera?"
Euclides retomou tal visão teatral e irônica da história no breve relato "A esfinge", de Contrastes e confrontos (1907). Contou a visita noturna do marechal Floriano Peixoto às obras da fortificação que, como engenheiro militar, erguia no cais do porto, para abrigar o canhão que iria bombardear os navios rebelados. O marechal de ferro, que ocupava a Presidência, surgia, aos seus olhos, como a "esfinge", em cuja face enigmática via inscritos os destinos do país.
O sogro de Euclides, o general Sólon Ribeiro, um dos líderes da proclamação da República, se encontrava preso sob a acusação de envolvimento com os revoltosos da Marinha. Euclides lia, em meio a tantos conflitos, o romance de cavalaria, Ivanhoé (1820), do escocês Walter Scott, e a obra histórica do inglês Thomas Carlyle, A Revolução Francesa (1837), em que são criticados os abusos do poder revolucionário. Procurava, nas páginas de Scott ou Carlyle, encontrar consolo para os descaminhos do novo regime, manchado por guerras civis.
Mirando, durante a Revolta da Armada, os navios de guerra imersos na escuridão da baía de Guanabara, o escritor se sentia como o figurante de um drama trágico: "Imaginei-me, então, obscuríssimo comparsa numa dessas tragédias da antigüidade clássica, de um realismo estupendo, com os seus palcos desmedidos, sem telão e sem coberturas, com os seus bastidores de verdadeiras montanhas em que se despenhavam os heróis de Ésquilo".
Os papéis desse drama histórico, repleto de ironia e comicidade, se confundiam "num jogar de antíteses infelizes", em que a legalidade -- o governo - esmagava a revolta pela suspensão das leis: "Os heróis desmandam-se em bufonerias trágicas. Morrem, alguns, com um cômico terrível nesta epopéia pelo avesso". A história se encenava como comédia trágica ou era narrada enquanto epopéia sem heróis, em que o estilo elevado era rebaixado pela perspectiva irônica.
Euclides teve, como o Conselheiro, um fim trágico. Ambos foram construtores itinerantes, um de igrejas e cemitérios, o outro de pontes e estradas. Os dois tiveram o destino marcado pelo adultério das esposas, pela luta sangrenta de suas famílias contra seus inimigos e pelas posições que assumiram frente à República. Ambos tiveram fé, o líder religioso na força redentora da devoção e do ascetismo, o escritor no poder transformador da ciência e da filosofia.
Euclides morreu, em 15 de agosto de 1909, no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, ao tentar matar, a tiros, o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher. Sete anos depois, Dilermando fuzilou Euclides da Cunha Filho, que tentara vingar o pai. A imprensa noticiou a morte do autor de Os sertões como a "tragédia da Piedade", usando as mesmas imagens teatrais presentes em sua obra, e comparou o fim de seu filho ao drama do Hamlet de Shakespeare, obcecado em desforrar o pai assassinado. Ao agir como os heróis antigos ou como os valentões sertanejos, a vida de Euclides se tornou uma ficção trágica.

Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP, autor de História e dependência: Cultura e sociedade em Manoel Bomfim (com Flora Süssekind; Moderna), Estilo tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil (Companhia das Letras) e Folha explica Casa-grande & senzala (Publifolha, no prelo).


Obras consultadas

Andrade, Olímpio de Souza. História e interpretação de Os sertões. São Paulo, Edart, 1966.
Cunha, Euclides da. Diário de uma expedição (1897). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. Org. de W. N. Galvão.
_____. Os sertões: Campanha de Canudos (1902). São Paulo, Ática, 1998.
_____. Contrastes e confrontos (1907). Em: Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, v. 1.
_____. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo, Edusp, 1997. Org. por W. N. Galvão e O. Galotti.
Frye, Northrop. Anatomy of criticism: Four essays (1957). Princeton, Princeton Univ. Press, 1973. Trad. Anatomia da crítica: Quatro ensaios. São Paulo, Cultrix, s.d.
Kitto, H. D. F. Greek tragedy: A literary study (1939). London, Routledge, 1990.
White, Hayden. "The question of narrative in contemporary historical theory". In: The content of the form: Narrative discourse and historical representation. Baltimore, London, The Johns Hopkins Univ. Press, 1987.
Zilly, Berthold. "Um depoimento brasileiro para a História Universal: traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha". In: Humboldt (Bonn), 72: 8-12, 1996.
_____. "A guerra como painel e espetáculo. A história encenada em Os sertões". In: História, Ciências, Saúde: Manguinhos (Rio de Janeiro), v. 1, 1: 13-37, 1997.

Gilberto Freyre: Sexo na senzala
Roberto Ventura

"Com fuxicos danados
E chamegos safados
De mulecas fulôs
Com sinhôs!"
Manuel Bandeira, "Casa-Grande & Senzala"

Casa-Grande & Senzala causou surpresa e espanto, quando de seu lançamento em 1933, por suas saborosas descrições dos hábitos sexuais dos senhores de engenho, patriarcas muitas vezes chegados a um sado-masoquismo. As negras e mulatas surgiam, em suas páginas, como "areia gulosa", em que os meninos brancos da classe senhorial davam início à sua precoce depravação, ao mesmo tempo que preservavam a pureza e a integridade das sinhás e sinhazinhas. "A virtude da senhora branca", escreve Freyre, "apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Tais vícios morais se deviam aos efeitos da monocultura escravista sobre a população brasileira.
Freyre foi um inovador pela importância que atribuiu ao sexo na formação da sociedade e da cultura. O historiador francês Lucien Febvre, no prefácio de 1952 à edição francesa de Casa-Grande & Senzala, já havia se referido com admiração ao importante lugar que a questão sexual ocupava no livro. O sociólogo se inspirou nos estudos psicanalíticos de Sigmund Freud, psicológicos de Havelock Ellis e antropológicos de Bronislaw Malinowski e Margaret Mead, sua colega, junto com Ellis, nos tempos de estudante na Universidade de Colúmbia. Tal dimensão erótica e afetiva da cultura se deve ainda, segundo Enrique Larreta, um de seus biógrafos, em artigo na Folha de S. Paulo de 12 de março de 2000, à influência de ensaístas lidos na juventude, como Walter Pater, e dos esteticistas do final do século XIX, Nietzsche, Simmel, George Moore e Huysmans.
Casa-Grande & Senzala pode ser lido como uma autobiografia sexual, em que Freyre dá compreensão histórica ao seu entusiasmo pelas mulatas, procuradas, segundo ele, "pelos que desejam colher do amor físico os extremos de gozo". Sua predileção pelas mulatas se ancoraria no gosto imemorial dos colonizadores portugueses pela "mulher de cor", desde os tempos do cativeiro árabe na Península Ibérica até o latifúndio escravocrata nas plantações brasileiras, segundo o velho ditado: "Branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar". Ou, como dizia um senhor de engenho, citado por Freyre: "Botina e mulher só pretas".
Freyre racionaliza, em Casa-Grande & Senzala, seu gosto pelas mulatas, que revelou nas recordações de Tempo Morto e Outros Tempos, ou na entrevista que deu à revista Playboy em março de 1980, em que confessou sua fixação pela mulher morena e o encantamento com a atriz Sônia Braga, que viveria no cinema e na TV os papéis da Tieta e da Gabriela de Jorge Amado. Fala, em suas memórias, do apetite sexual pelas mulatas ternas e dengosas, sempre de posição social inferior. Tem aos 17 anos as primeiras relações com A., "diabo de mulatinha", virgem e adolescente como ele, que o introduz ao sexo anal e o inicia em mulher de uma forma "oblíqua", mas "singularmente deleitosa". Conta ainda a relação que manteve no Recife por muitos anos com "a melhor das mulatas do Recife", "um monumento no gênero", que lhe fora recomendada pelo tio.
Freyre revelou ainda, na entrevista à Playboy, ter fumado maconha, que aprendeu a tragar com os pescadores alagoanos, e ter tido aos 20 anos algumas poucas e insatisfatórias aventuras homossexuais na Europa. Refere-se, de modo velado, ao seu namoro com Esme Howard Junior, presidente do Oxford Spanish Club, que reunia admiradores da cultura hispânica. Descrito por Freyre como "o mais rosado e belo dos adolescentes de Oxford", Esme era filho do embaixador inglês na Espanha, Lord Howard. Alude ainda à sua curiosidade pelos belos rapazes de Berlim, que se prostituíam devido à fome e à miséria que se abatera na Alemanha entre a primeira e a segunda guerras mundiais.
O filósofo francês Michel Foucault comentou, na História da Sexualidade, que a confissão é um ritual que purifica o sujeito, que se torna digno de salvação pelo perdão de suas faltas. Freyre conta, nas memórias, como a educação protestante no Colégio Americano, no Recife, seguida de sua breve conversão à Igreja batista, fez com que a "consciência do pecado" o perseguisse por toda vida: "Como me esquecer dessa leitura da Bíblia e desses hinos?" Espécie de "Nossa formação", que remete a Minha Formação, de Joaquim Nabuco, Casa-Grande & Senzala se converte em autobiografia sexual, em que o notável apetite priápico de seu autor ganha dimensões histórico-sociais.
Freyre faz portanto, em Casa-Grande & Senzala, uma espécie de auto-análise, ao mostrar como sua fixação nas mulheres "de cor" constituía uma autêntica predileção nacional, já que, desde os tempos da colônia, os colonos manifestavam uma "preferência quase mórbida pelas negras e mulatas". A marca da influência negra sobre o homem brasileiro se estenderia assim da mesa à cama, da cozinha ao sexo, "da escrava ou sinhama que nos embalou [e] que nos deu de mamar" à mulata "que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem". Até os padres e frades mergulhavam fundo neste "grande atoleiro de carne", composto de índias desnudas e de negras cativas, praticando o "livre arregaçar de batinas para o desempenho de funções quase patriarcais" de multiplicação da espécie.
Tais relações sado-masoquistas de prazer e dominação tiveram seus efeitos não apenas na privacidade doméstica e na intimidade sexual, mas também na ordem social e política. O autoritarismo da sociedade e da política brasileiras teria, para Freyre, razões de ordem cultural, já que o sadismo, aprendido e praticado na relação com os cativos e dependentes, se transformaria em "simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho". Já os situados nos níveis inferiores da hierarquia social e sexual acabariam por tomar o "gosto [masoquista] pela dominação". Chega a afirmar, em Casa-Grande & Senzala, que "no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar 'povo brasileiro' ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático"! A vida política brasileira se equilibraria portanto entre duas místicas: de um lado, a ordem e a autoridade, decorrentes da tradição patriarcal, e de outro, a liberdade e a democracia, bases da sociedade moderna.


O escritor-sociólogo

Freyre foi mais escritor do que sociólogo, ainda que recorresse aos métodos de investigação social aprendidos com o antropólogo Franz Boas na Universidade de Colúmbia, nos E.U.A., onde fez mestrado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais de 1920 a 1922, e no breve período que passou por Oxford, na Inglaterra. Procurou criar uma escrita própria, mais artística do que científica, em que as idéias e os assuntos se emendam em um contínuo, com uma aparente falta de plano que evoca a livre associação de idéias do romance psicológico.
Sua preocupação com a escrita e o vivo interesse pela literatura o levaram a escrever perfis de autores, como José de Alencar e Euclides da Cunha, e a se debruçar sobre os hábitos de leitura no Império e na República. Escreveu ainda poemas, reunidos em Talvez Poesia (1962), e duas obras ficcionais, Dona Sinhá e o Filho Padre (1964) e O Outro Amor do Dr. Paulo (1977).
Antonio Candido comentou, em "Gilberto Freyre, crítico literário", ensaio de 1962, a fecunda diversidade do pluralismo do sociólogo, que, tomado pelo pavor de parecer técnico ou acadêmico, atacava vorazmente a realidade, disposto a esclarecê-la e mesmo transfigurá-la a qualquer preço: "quando saímos à busca do sociólogo, deslizamos para o escritor; e quando procuramos o escritor, damos com o sociólogo".
Freyre se inspirou em obras literárias, como os romances históricos dos irmãos Goncourt, que consideravam a história íntima de um povo como o "verdadeiro romance". Observou, em Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX, sua dissertação de mestrado de 1922, que pretendia reconstituir os "aspectos menos ostensivamente públicos e menos brilhantemente oficiais [...] do viver em família - inclusive o quase secreto viver das alcovas, das cozinhas".
Leu com paixão as autobiografias de Santo Agostinho e do teólogo John Newman. Baseou-se ainda na ficção memorialista de Marcel Proust, de Em Busca do Tempo Perdido, cujo narrador recria, em No Caminho de Swann, os tempos de menino na casa da tia-avó, evocados pelo gosto da "madeleine" embebida no chá. O antropólogo Roger Bastide chegou a chamar Freyre de Proust da sociologia. O próprio sociólogo dizia fazer uma espécie de "sociologia proustiana", entendida como a "interpretação do que de mais íntimo se possa encontrar no passado de uma sociedade".
A trilogia de ensaios histórico-sociais, que inclui Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959), abarca a formação e a dissolução da família patriarcal brasileira em uma narração cíclica, cujos temas e personagens surgem e ressurgem, de modo semelhante às grandes obras romanescas, como A Comédia Humana, de Balzac, ou o ciclo dos Rougon-Macquart, de Émile Zola. Tais romancistas franceses procuraram captar, de modo semelhante aos historiadores sociais, a interação, ao longo do tempo, entre o indivíduo e a sociedade.
Ao escrever o prefácio para Minha Formação (1900), livro de memórias do líder abolicionista Joaquim Nabuco, cujo interesse pelo escravo viera da infância passada no engenho familiar, Freyre observou que o autor "descobriu-se somente pela metade": "Conservou para si mesmo, ou dentro de si mesmo, a outra metade do todo semi-revelado". A autobiografia de Nabuco seria assim parcial, por esconder seus excessos de reformador social ou revolucionário político, que lutara quando jovem contra os interesses de sua própria casta, a elite de brancos e de quase brancos do Império agrário.
A obra ensaística de Freyre tem uma inflexão autobiográfica tão velada quanto a de Nabuco. Muitas das motivações pessoais e sexuais de seu enfoque histórico-social se iluminam com a leitura de suas memórias em Tempo Morto e Outros Tempos. Por sua vez, os aspectos mais encobertos de sua autobiografia, sobretudo aquilo que chamaria de seu "homossexualismo transitório", se desdobram nos personagens gays de suas novelas, o filho padre de Dona Sinhá e o Dr. Paulo.

Casa de Cultura Euclides da Cunha

Nenhum comentário: