quarta-feira, 31 de março de 2010

Rebeldia gaulesa

Soldados franceses preparam motim para protestar contra batalhas inúteis - Também está na pauta reivindicação de mais licenças - Herói Philippe Pétain é chamado para apaziguar os insurgentes

Chega de dureza: dois soldados franceses baixam as armas e tiram cochilo perto de campo de pouso de aviões

Normalmente, o fracasso da recém-empreendida Ofensiva Nivelle no rio Aisne seria apenas mais uma derrota a ser acrescentada no caderninho de débâcles do vacilante exército francês nesta grande guerra. Desta vez, porém, a derrota parece se desdobrar em consequências não previstas pelo alto-comando militar da França. Inconformados com a disparidade entre a vitória fácil cantada pelos comandantes (que haviam garantido um tranquilo avanço de 9 quilômetros em só dois dias), e a hedionda realidade enfrentada no campo de batalha - em 12 dias, quase 100.000 baixas foram registradas, com 30.000 mortos, e o avanço foi de apenas 500 metros -, os soldados dão indícios de um princípio de motim nas fileiras gaulesas.

Extra-oficialmente, apesar da disposição em proteger a pátria de ataques inimigos, uma fatia enorme do exército, que pode chegar até a metade das cerca de 100 divisões disponíveis, garante que desobedecerá ordens e, se convocada, não se engajará em batalhas tão sangrentas quanto inúteis, sem compensação estratégica ou territorial - como boa parte das últimas contendas alimentadas pelos senhores da guerra na Europa.

Em um efeito dominó, o revés na batalha do Aisne acabou extravasando uma série de demandas dos combatentes: mais licenças, melhor alimentação, melhor tratamento para as famílias do soldados e o fim das injustiças e das carnificinas. Para aplacar essa animosidade latente, no último dia 29 de abril o primeiro-ministro Aristide Briand nomeou como chefe do Estado-Maior ninguém menos do que Philippe Pétain, herói da batalha de Verdun, oficial de linha dura mas conhecido por sua empatia com as tropas. Ele já prometeu licenças mais longas e regulares e maior treinamento às tropas.

Eles querem mais licenças: soldados preparam uma ceia de Natal no front

Cabotino - A influência de Pétain, inclusive, pode ser ainda mais estendida dentro do exército. Especula-se que, no caso de uma derrota definitiva em Aisne, já esperada por todos, o coronel Robert Nivelle, mentor da malograda ofensiva à qual empresta seu sobrenome, será destituído do cargo de comandante-em-chefe do Exército. E com razão, é bom acrescentar. Sua situação foi dificultada por seus próprios atos cabotinos: Nivelle espalhou aos quatro ventos que seu plano não apenas faria a França ganhar terreno, mas também a guerra - garantia que, é evidente, não está nem perto de cumprir. Mais discreto, razoável, ativo e astuto no trato com os militares, Pétain é o número um da lista.

A reação do exército à chegada do símbolo da resistência em Verdun ainda está por ser avaliada - o teste máximo acontecerá no próprio Aisne, em que milhares e milhares de soldados prometem abandonar nos próximos dias o Chemin des Dames, parte da Linha Hindemberg alemã, um dos objetivos dos franceses. O que está cristalino é que Pétain, por já ter cedido a algumas demandas dos insurgentes, avisou que não tolerará qualquer ato de sublevação ou rebeldia, a ser punido com força. O inimigo pode ser bem mais íntimo do que se supunha.

Veja na História

terça-feira, 30 de março de 2010

Quando o racismo é a lei

Na África do Sul, a segregação racial é legitimada,
o sistema de leis garante fartos privilégios à minoria branca
– e ninguém consegue fazer nada para mudar o quadro

'Com passes, somos escravos': manifestação de mulheres contra a obrigatoriedade do porte das infames cadernetas


Regime sem precedentes na história mundial, idealizado e executado com eficiência nos campos político, cultural, econômico, agrícola e industrial, o apartheid, política oficial governamental de segregação racial orquestrada pela minoria branca, vem há 12 anos espalhando seus tentáculos contra os negros na África do Sul. O sistema que assombra o mundo moderno começou a ser implantado em 1948, assim que o Partido Nacional emergiu vitorioso nas eleições gerais do país – em sufrágio exclusivo aos brancos, obviamente. As diretrizes de segregação estavam descritas no programa de governo, mas poucos poderiam imaginar que as cabeças do nacionalismo afrikâner obteriam tanto êxito, em tão pouco tempo, em sua pérfida cruzada.

A segregação, o preconceito e o ódio racial afligem a África desde a chegada dos europeus e da colonização, há séculos. Na África do Sul, que de possessão holandesa passou às mãos inglesas em 1815, por determinação do Congresso de Viena, já existiam alguns decretos dispondo sobre o tema – o mais conhecido deles a Lei da Terra, de 1913, que dividiu desproporcionalmente as terras nacionais. Na ocasião, a minoria branca ficou com mais de 90% das áreas, enquanto a maioria negra recebeu menos de 10%. A partir de 1948, porém, o governo habilmente lançou mão de uma série de leis que regulariam e legitimariam o apartheid, tirando-o da esfera das convenções sociais para incluí-lo, de forma sistemática, na própria constituição do país. A lei do passe, que motivou a manifestação que acabaria em tragédia em Sharpeville, é apenas uma das inúmeras disposições que instituem a segregação. A seguir, alguns desses instrumentos:

Lei da proibição de casamentos mistos (1949)
Proíbe o casamento entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei da imoralidade (1950)
Proíbe e criminaliza a relação sexual entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei de registro populacional (1950)
Obriga a população a cadastrar-se em um registro nacional, separando-a por raças.

Lei de agrupamentos urbanos (1950)
Força a separação física entre as raças ao criar áreas residenciais separadas. Permitiu a remoção forçada de negros de suas áreas de origem.

Lei dos nativos (1952)
Mais conhecida como a lei do passe, obriga os negros a carregar uma caderneta de identificação. Sua não-apresentação à polícia, quando solicitada, é crime.

Lei de reserva de benefícios sociais separados (1953)
Garante a segregação em todos os locais e equipamentos públicos, para eliminar o contato entre brancos e outras raças. Determina a afixação de sinais de “Somente europeus” e “Somente não-europeus”.

Lei de Educação Bantu (1953)
Cria medidas para reduzir o nível de educação recebida pela população negra – seu objetivo real, de acordo com seu idealizador, Hendrik Verwoerd, é impedir que os negros aspirem a posições às quais não podem ter na sociedade sul-africana

Em que pese a organização de negros para combater o regime – e a clara oposição da comunidade internacional –, o apartheid segue em pleno funcionamento, sem sinais de cansaço. Ao contrário: o líder Verwoerd não se cansa de espalhar as supostas virtudes do regime, definido em seu âmago pelo ex-primeiro-ministro Daniel Malan. “A consciência da cor, profundamente arraigada nos sul-africanos brancos – um fenômeno inacessível à compreensão dos mal informados – provém das diferenças fundamentais existentes entre os dois grupos: o branco e o preto. A diferença de cor é meramente uma manifestação física do contraste existente entre dois modos de vida irreconciliáveis, entre o barbarismo e a civilização, entre o idolatrismo e a cristandade, e finalmente entre números esmagadores, de um lado, e números insignificantes, de outros.”

Na África do Sul, a segregação racial é legitimada,
o sistema de leis garante fartos privilégios à minoria branca
– e ninguém consegue fazer nada para mudar o quadro

'Com passes, somos escravos': manifestação de mulheres contra a obrigatoriedade do porte das infames cadernetas


Regime sem precedentes na história mundial, idealizado e executado com eficiência nos campos político, cultural, econômico, agrícola e industrial, o apartheid, política oficial governamental de segregação racial orquestrada pela minoria branca, vem há 12 anos espalhando seus tentáculos contra os negros na África do Sul. O sistema que assombra o mundo moderno começou a ser implantado em 1948, assim que o Partido Nacional emergiu vitorioso nas eleições gerais do país – em sufrágio exclusivo aos brancos, obviamente. As diretrizes de segregação estavam descritas no programa de governo, mas poucos poderiam imaginar que as cabeças do nacionalismo afrikâner obteriam tanto êxito, em tão pouco tempo, em sua pérfida cruzada.

A segregação, o preconceito e o ódio racial afligem a África desde a chegada dos europeus e da colonização, há séculos. Na África do Sul, que de possessão holandesa passou às mãos inglesas em 1815, por determinação do Congresso de Viena, já existiam alguns decretos dispondo sobre o tema – o mais conhecido deles a Lei da Terra, de 1913, que dividiu desproporcionalmente as terras nacionais. Na ocasião, a minoria branca ficou com mais de 90% das áreas, enquanto a maioria negra recebeu menos de 10%. A partir de 1948, porém, o governo habilmente lançou mão de uma série de leis que regulariam e legitimariam o apartheid, tirando-o da esfera das convenções sociais para incluí-lo, de forma sistemática, na própria constituição do país. A lei do passe, que motivou a manifestação que acabaria em tragédia em Sharpeville, é apenas uma das inúmeras disposições que instituem a segregação. A seguir, alguns desses instrumentos:

Lei da proibição de casamentos mistos (1949)
Proíbe o casamento entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei da imoralidade (1950)
Proíbe e criminaliza a relação sexual entre brancos e pessoas de outras raças.

Lei de registro populacional (1950)
Obriga a população a cadastrar-se em um registro nacional, separando-a por raças.

Lei de agrupamentos urbanos (1950)
Força a separação física entre as raças ao criar áreas residenciais separadas. Permitiu a remoção forçada de negros de suas áreas de origem.

Lei dos nativos (1952)
Mais conhecida como a lei do passe, obriga os negros a carregar uma caderneta de identificação. Sua não-apresentação à polícia, quando solicitada, é crime.

Lei de reserva de benefícios sociais separados (1953)
Garante a segregação em todos os locais e equipamentos públicos, para eliminar o contato entre brancos e outras raças. Determina a afixação de sinais de “Somente europeus” e “Somente não-europeus”.

Lei de Educação Bantu (1953)
Cria medidas para reduzir o nível de educação recebida pela população negra – seu objetivo real, de acordo com seu idealizador, Hendrik Verwoerd, é impedir que os negros aspirem a posições às quais não podem ter na sociedade sul-africana

Em que pese a organização de negros para combater o regime – e a clara oposição da comunidade internacional –, o apartheid segue em pleno funcionamento, sem sinais de cansaço. Ao contrário: o líder Verwoerd não se cansa de espalhar as supostas virtudes do regime, definido em seu âmago pelo ex-primeiro-ministro Daniel Malan. “A consciência da cor, profundamente arraigada nos sul-africanos brancos – um fenômeno inacessível à compreensão dos mal informados – provém das diferenças fundamentais existentes entre os dois grupos: o branco e o preto. A diferença de cor é meramente uma manifestação física do contraste existente entre dois modos de vida irreconciliáveis, entre o barbarismo e a civilização, entre o idolatrismo e a cristandade, e finalmente entre números esmagadores, de um lado, e números insignificantes, de outros.”

Veja na História

A História da Terapia Por Choque em Psiquiatria

A História da Terapia Por Choque em Psiquiatria
Renato M.E. Sabbatini, PhD


As primeiras décadas do século XX testemunharam uma grande revolução na nossa compreensão e no tratamento das doenças mentais. Até então, pessoas portadoras de psicose eram simplesmente trancadas em asilos para loucos, onde recebiam apenas alguns cuidados simples e, algumas vezes, apoio social, sem que nenhuma terapia efetiva estivesse disponível para os "alienistas", como os psiquiatras eram então denominados. Mesmo quando reformadores médicos bem-intencionados, tais como Phillipe Pinel, conseguiram amenizar em parte as aterrorizantes condições existentes nos asilos para loucos, ainda não existiam tratamentos de rotina realmente efetivos no começo do século XXI.

A primeira revolução na terapia científica da loucura foi baseada nas teorias da mente proposta pelo médico austríaco Sigmund Freud, o fundador da psicanálise. O valor dessa abordagem se tornou evidente para o tratamento de distúrbios mentais de gravidade leve ou média, particularmente nas neuroses; mas pouco representou de efetivo para o tratamento doenças mentais mais graves, como as psicoses. No entanto, isso começou a mudar no começo da década de 30. Os métodos psicoterapêuticos passaram a ser suplementados ou até substituídos por abordagens físicas, usando drogas, terapia eletroconvulsiva, e cirurgia.

O conhecimento de que o trauma encefálico, as convulsões e a febre alta podiam ser usados para amenizar distúrbios mentais não é novo em Medicina. Hipócrates foi o primeiro a notar que as convulsões induzidas por malária em pacientes insanos era capaz de curá-los. Na Idade Média, alguns médicos observaram os mesmos fenômenos após um severo surto de febre, tal como o que ocorreu durante epidemias de cólera em asilos para doentes mentais. Em 1786, um médico chamado Roess observou que pacientes mentais melhoravam após a inoculação com vacina contra a varíola. Além disso, muitos médicos ao longo dos séculos notaram que havia poucos epilépticos que também eram esquizofrênicos, e uma teoria biológica sobre a incompatibilidade entre as convulsões e doenças mentais gradualmente se desenvolveu. É conhecido, também que durante muito tempo os médicos foram fascinados com a idéia de tratar doenças mentais e neurológicas usando a eletricidade.

Entre 1917 e 1935, quatro métodos para produzir choque fisiológico foram descobertos, testados e usados na prática psiquiátrica, todos no continente europeu:

Febre induzida por malária, para tratar paresia neurosifilítica, descoberta em Viena por Julius Wagner-Jauregg, em 1917;
Coma e convulsões induzidas por insulina, para tratar esquizofrenia, descoberta em Berlim por Manfred J. Sakel, em 1927;
Convulsões induzidas por metrazol, para tratar esquizofrenia e psicoses afetivas, descoberta em Budapest por Ladislaus von Meduna, em 1934, e
Terapia por choque eletroconvulsivo, descoberta por Ugo Cerletti e Lucio Bini em Roma, 1937.
O advento do tratamento das psicoses usando choque fisiológico aumentou a oposição entre duas escolas de pensamento em psiquiatria: a psicológica e a biológica.

A "escola psicológica" interpreta a doença mental como sendo devida a desvios na personalidade, problemas surgidos durante o crescimento, no controle de impulsos internos, e a outros fatores originados externamente. Esta escola, tipificada pelos psicanalistas, foi fundada por Sigmund Freud no começo do século XX.

A "escola biológica", ao contrário, considera que as doenças mentais, particularmente as psicoses, são causadas por alterações patológicas, químicas ou estruturais do cérebro.

Devido à essas diferenças, as abordagens terapêuticas adotadas por cada escola são marcadamente diferentes. O sucesso da terapia por choque, em virtude de, evidentemente, causar alguma alteração drástica no ambiente interno do cérebro, e, consequentemente, nas funções das células nervosas, foi um forte argumento a favor das causas biológicas de muitas doenças mentais.

Febre e Doença Mental
O primeiro pesquisador a investigar sistematicamente o elo entre febre e doença mental foi o médico austríaco Julius Wagner von Jauregg. Ele observou que pacientes loucos melhoravam consideravelmente após sobreviverem à febre tifóide, erisipela e tuberculose. Impressionado pela coincidência de que todos estes pacientes tinham episódios de febre alta e inconsciência, ele começou a fazer experimentos com vários métodos de induzir febre, tais como infecção por erisipela, injeções de tuberculina, tifóide, etc. sem muito sucesso.

O primeiro grande achado de Wagner-Jauregg aconteceu quando ele tratou a paresia generalizada, uma doença neuropsiquiátrica comum e extremamente grave, e que é causada por neurosífilis avançada (sua verdadeira causa era desconhecida na época). A paresia, também chamada de demência paralítica, era uma doença incurável e quase sempre fatal, e os asilos psiquiátricos estavam repletos de pacientes com ela, devido à inexistência de tratamentos efetivos para a sífilis. Esta doença é acompanhada por uma pronunciada degeneração progressiva, incluindo convulsões, ataxia (incoordenação motora), déficits na fala e paralisia geral. Na área mental, ela causa mania, depressão, paranóia e comportamento violento, incluindo suicídio, delírio, perda da memória, desorientação e apatia.

A descoberta de Wagner-Jauregg foi inspirada por uma série de revolucionárias descobertas médicas em microbiologia. Em 1985, Ronald Ross descobriu na Índia que a malária é causada por um parasita transmitido pelo mosquito Anopheles. Em 1905, Schaudinn, na Alemanha, descobriu o agente patológico para a sífilis, o Treponema pallidum. No mesmo ano, Karl Landsteiner provou que a febre era capaz de matar os espiroquetas que causavam a sífilis. No ano seguinte, Wassermann descobriu o teste sorológico para sífilis, o qual é usado até hoje para detectar precocemente a existência de infecção, e em 1908 ele foi usado pela primeira vez para testar o fluído cérebroespinhal. Em 1909, após 605 tentativas de achar uma quimioterapia para a sífilis, Paul Ehrlich conseguiu o sucesso com o salvarsan ou o "Composto 606", a base de arsênico, o qual foi a primeira substância a ser cientificamente projetada para ser usada para combater micróbios, na história da Medicina. Finalmente, em 1913, Noguchi e Moore demonstraram que a paresia generalizada era de fato uma infecção do sistema nervoso pela sífilis, e esta foi a primeira vez na história médica que um tipo de distúrbio mental ou loucura pode ser atribuído a uma alteração biológica do cérebro ! A escola biológica de psiquiatria tinha conseguido uma tremenda vitória.

Wagner-Jauregg, que era atento à qualquer associação que surgisse entre febre e paresia, não demorou muito em inocular, em julho de 1917, o sangue contaminado de um soldado malárico em nove pacientes com paresia crônica. O resultado foi impressionante: ele conseguiu recuperação completa em quatro desses pacientes e uma melhora em mais dois. Em seguida, ele elaborou e testou um complexo protocolo de tratamento em 275 pacientes sifilíticos que tinham o risco de adquirir paresia. Primeiro ele testou o sangue e líquido céfaloraquidiano desses pacientes, usando a reação de Wassermann, e em seguida os tratou com sangue malárico, seguido por doses de quinino (de modo a brecar a infecção pela malária), alternadas com injeções de neosalvarsan, para limpar o sangue de espiroquetas. Seu grau de sucesso foi notável: 83% dos pacientes ficaram livres de contrair paresia. Por esta descoberta, Wagner-Jauregg ganhou o Prêmio Nobel em 1927.

Atualmente, a demência paralítica é uma complicação rara da sífilis, e o tratamento de Wagner-Jauregg foi suplantado pelo uso de antibióticos.

Terapia Por Choque Insulínico
O segundo grande avanço no tratamento de psicoses por choque ocorreu em 1927, através da descoberta de um jovem neurologista e neuropsiquiatra polonês chamado Manfred J. Sakel. Enquanto era residente do Hospital Lichterfelde para Doenças Mentais, em Berlim, ele provocou um coma superficial em uma mulher viciada em morfina, usando uma injeção de insulina, e obteve uma notável recuperação de suas faculdades mentais.

A insulina tinha sido descoberta em 1921 por dois pesquisadores médicos canadenses Frederick Banting e Charles Best, como o hormônio fabricado pelo pâncreas, responsável pela manutenção do equilíbrio de glicose no corpo. A falta de insulina causa diabetes, ou hiperglicemia (excesso de glicose), enquanto seu excesso natural ou artificial causa hipoglicemia, o qual leva ao coma e convulsões, devido ao déficit de glicose nas células cerebrais.

O motivo de Sakel usar insulina foi o seguinte:

"Minha suposição foi que alguns agentes nocivos enfraqueceriam a resistência e o metabolismo das células nervosas...uma redução no gasto de energia da célula, isto é, ao invocarmos uma menor ou maior hibernação nela, bloqueando a célula com insulina, isso a forçará conservar a sua energia funcional e armazená-la, de modo a ficar disponível para o reforço da célula.

Sakel descobriu acidentalmente, ao causar convulsões com uma dose excessiva de insulina, que o tratamento era eficaz para pacientes com vários tipos de psicoses, particularmente a esquizofrenia. Em 1930 ele começou a aperfeiçoar aquilo que se tornou conhecido como a "Técnica de Sakel" para tratar esquizofrênicos, primeiro em Viena, na Clínica de Neuropsiquiatria da Universidade, e a partir de 1934, nos Estados Unidos, para onde fugiu do regime nazista. A comunicação oficial desta técnica foi feita em setembro de 1933, e foi entusiasticamente recebida. Até então, nenhum tratamento biológico para esquizofrenia estava disponível. A abordagem de Sakel foi um método fisiológico prático e efetivo para atacar a mais debilitante e cruel das doenças mentais. Esta foi uma das mais importantes contribuições jamais feitas pela psiquiatria.

De acordo com os achados de Sakel, mais de 70 % de seus pacientes melhoraram após a terapia por choque insulínico. Dois amplos estudos realizados nos EUA, em 1939 e 1942, deram a ele fama e ajudaram sua técnica a se expandir rapidamente ao redor do mundo. De acordo com o estudo de 1939, publicado pela American Psychiatric Association por R. Ross e Benjamin Malzberg, entre 1757 casos de esquizofrenia tratados por terapia por choque insulínico, 11 % tiveram uma pronta e total recuperação, 26.5 % apresentaram uma grande melhora e 26 % tiveram alguma melhora. O segundo estudo, realizado no Hospital da Pensilvânia, tiveram uma taxa de melhora de 63 %, com 42 % dos pacientes ainda em boas condições mentais após dois anos de seguimento.

O entusiamo inicial foi seguido pela diminuição no uso da terapia por coma insulínico, depois que estudos controlados adicionais mostraram que a cura real não era alcançada e que as melhoras eram na maioria das vezes temporárias. Contudo, como o método de Sakel é a mais amena e menos deletéria de todas as técnicas, estava ainda em uso até recentement,e em muitos países.

Convulsões Químicas e Esquizofrenia

Em 1933, no mesmo ano que Sakel anunciou oficialmente seus resultados com a terapia por coma insulínico, um jovem médico húngaro chamado Ladislaus von Meduna, trabalhando no Instituto Interacadêmico de Pesquisa Psiquiátrica, em Budapest, deu início àquilo que se tornaria uma abordagem inteiramente nova para o uso do choque fisiológico no tratamento da doença mental. Sem saber das investigações de Sakel, Meduna estudou os cérebros e as histórias de doença mental de esquizofrênicos e epilépticos, e notou que parecia existir um "antagonismo biológico" entre estas duas doenças do cérebro. Meduna raciocinou então que convulsões epilépticas "puras" induzidas artificialmente poderiam ser capazes de "curar" a esquizofrenia.

Ele então começou a testar vários tipos de drogas convulsivas em animais, e logo depois em pacientes, também. Seu ideal era alcançar convulsões reproduzíveis e completamente controláveis. A primeira substância que ele testou, em 1934, foi a cânfora, mas os resultados não foram significativos. Ele também testou estricnina, tebaína, pilocarpina e pentilenotetrazol (também conhecido com metrazol ou cardiazol), sempre injetando-as por via intramuscular. Sakel também usou muitas destas drogas junto com a insulina, afim de aumentar as convulsões, mas nunca sozinhas. Entretanto, o ideal de Meduna foi alcançado somente quando ele experimentou injeções intravenosas de metrazol.. As convulsões ocorriam rápida e violentamente, e eram dose-dependentes. Após uma série de 110 casos, Meduna pôde registrar uma freqüência de altas de 50 %, com notável melhora e mesmos algumas "curas dramáticas".

Meduna comunicou seus achados à comunidade psiquiátrica reunida em Münsingen, na Suiça, em 1937, para discutir a terapia por choque pioneiramente iniciada por Sakel. A partir daí, dois campos foram firmemente estabelecidos em relação à terapia por choque fisiológico: o daqueles que defendiam a terapia insulinica e o daqueles que eram a favor das convulsões induzidas por metrazol. O metrazol era mais barato, muito mais fácil de usar e mais propenso a induzir convulsões de forma repetível. O coma por insulina requeria cinco a nove horas de hospitalização e um seguimento mais trabalhoso, mas ela era facilmente controlada e terminada com injeções de adrenalina e glicose, quando necessário. Por sua vez, o metrazol era mais forte e mais difícil de controlar. A terapia por insulina causava poucos efeitos colaterais, enquanto que as convulsões por metrazol eram as vezes tão severas que causavam fraturas espinhais em 42 % dos pacientes !

Meduna foi forçado a imigrar para Chicago, nos EUA, em 1939, e de lá ele continuou suas pesquisas sobre convulsões por metrazol. Eventualmente, a comunidade científica reconheceu que a teoria de incompatibilidade biológica entre convulsões e esquizofrenia não era verdadeira, mas que as convulsões provocadas artificialmente tinham o seu valor em psiquiatria.

Em 1940, A.E. Bennett, um psiquiatra, combinou injeções de metrazol com curare para neutralizar as fortes contrações musculares que eram responsáveis por estes e outros incidentes. Curare é um agentes muscular paralizante que é extraído de plantas da América do Sul por índios, para fazer flexas e dardos envenenados. Ele ocupa os receptores nervosos nos músculos, bloqueando a ação normal do neurotransmissor acetilcolina, liberado pelas células motoras naquele ponto. Posteriormente, a escopolamina também foi usada em conjunto com metrazol e curare, para sedar o paciente e evitar o terror de estar sujeito a convulsões violentas enquanto conscientes (esta era uma vantagem da insulina).

Entretanto, em testes controlados, o metrazol pareceu ser menos eficiente do que a insulina no tratamento da esquizofrenia, particularmente na doença crônica. Ele foi mais efetivo em tratar as psicoses afetivas, tais como a doença maníaco-depressiva e da epressão psicótica, alcançando mais de 80 % de melhora nos pacientes.

Devido à aparência de muitos métodos para tratar doenças mentais, incluindo neurolépticos e terapia eletroconvulsiva, o metrazol foi gradualmente descontinuado no final dos anos 40 e não mais utilizado. Atualmente, sua importância é unicamente histórica.

A Terapia Por Choque Eletroconvulsivo
Em 1937, um neurologista italiano chamado Ugo Cerletti estava convencido que as convulsões induzidas por metrazol eram úteis para o tratamento de esquizofrenia, mas muito perigosas e incontroláveis para serem aplicadas (naquele tempo não havia um antídoto para parar as convulsões, como acontecia com a insulina). Além disso, os pacientes tinham muito medo da terapia.

Cerletti sabia que um choque elétrico aplicado à cabeça produzia convulsões, pois, como um especialista em epilepsia, ele tinha feito experimentos com animais para estudar as consequências neuropatológicas de ataques repetidos de epilepsia. Em Genova, e posteriormente em Roma, ele usou equipamentos de eletrochoque para provocar crises epilépticas em cães e outros animais. A idéia de usar o choque eletroconvulsivo em seres humanos ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos sendo anestesiados com eletrochoque, antes de serem abatidos nos matadouros de Roma. Ele então convenceu dois colegas Lucio Bini e L.B. Kalinowski (um jovem médico alemão) a ajudá-lo a desenvolver um método e um equipamento para ministrar breves choques elétricos em seres humanos.

Eles inicialmente experimentaram vários tipos de dispositivos em animais, até determinarem os parâmetros ideais e aperfeiçoarem a técnica, antes de iniciarem uma série de eletrochoques em sujeitos humanos (com esquizofrenia aguda). Após 10 a 20 eletrochoques em dias alternados, a melhora na maioria dos pacientes começou a se tornar evidente. Um dos benefícios inesperados do eletrochoque transcraniano foi que ele provocava amnésia retrógrada, ou seja, uma perda de todas as memórias de eventos imediatamente anteriores ao choque, incluindo a sua percepção. Assim, os pacientes não tinham sentimentos negativos relacionados à terapia, como acontecia com o choque por metrazol. Além disso, o eletrochoque era mais seguro e mais bem controlado, e menos perigoso para o paciente do que o metrazol.

Em 1939, Kalinowski começou um tour para anunciar a terapia por choque eletroconvulsivo ao redor do mundo, visitando a França, Suiça, Inglaterra e Estados Unidos. Pesquisadores que adotaram o método de Cerletti-Bini logo descobriram que ele parecia ter efeitos espetaculares sobre os distúrbios afetivos. De acordo com E.A. Bennett, 90 % dos casos de depressão severa que eram resistentes a todos os tratamentos, desapareceram após três ou quatro semanas de eletrochoques. Logo, o curare e escopolamina estavam sendo usados em conjunto com a terapia eletroconvulsiva, e gradualmente substituíram o choque induzido por insulina e metrazol. O eletrochoque começava então a sua longa jornada como a terapia de choque de escolha, na maioria dos hospitais e asilos ao redor do mundo.

Outros tipos de terapia por choque foram brevemente testados, tais como a indução de febre por meio de microondas radiomagnéticas, anóxia cerebral transitória induzida pela respiração de uma mistura de oxigênio e nitrogênio, e pela crioterapia (redução da temperatura do corpo). Os resultados foram dúbios na maioria das vezes, e estas técnicas foram logo abandonados em favor da terapia eletroconvulsiva, mais prática, efetiva e barata.

Aperfeiçoamentos significativos na técnica de eletrochoque foram feitos desde então, incluindo o uso de relaxantes musculares sintéticos, tais como succinilcolina, a anestesia de pacientes com agentes de curta duração, a pré-oxigenação cerebral, o uso de EEG para monitoração da crise, e melhores dispositivos e formas de onda para ministrar o choque transcraniano. Apesar destes avanços, a popularidade da terapia eletroconvulsiva diminiu grandemente nas décadas de 60 e 70, devido ao uso de neurolépticos mais efetivos e como resultado de um forte movimento politicamente antagônico ao eletrochoque em psiquiatria, como veremos abaixo. Entretanto, a terapia eletroconvulsiva voltou a ganhar evidência nos últimos 15 anos, devido à sua eficácia. É a única terapia somática da década dos 30 que permanece em grande uso hoje. Entre 100.000 e 150.000 pacientes são submetidos à terapia por eletrochoque anualmente nos EUA, em função de condições médicas estritamente definidas.

Muitas personalidades importantes foram submetidas à terapia por choque. Entre elas estão:

Terapia por coma insulínico: James Forrestal (primeiro Secretário de Defesa dos EUA, que cometeu suicidio em 1949), o dançarino de ballet russo Vaslav Nijinski, e Zelda Fitzgerald (mulher do autor Scott Fitzgerald).

Terapia por choque eletroconvulsivo: o escritor Ernest Hemingway (que se baleou na cabeça pouco tempo depois de se submeter ao tratamento na Mayo Clinic), os poetas Silvia Plath (que também cometeu suicídio) e Robert Lowell, o artista Paul Robeson, o estrela de rock Lou Reed, as atrizes de Holliwood Frances Farmer (que posteriormente foi lobotomizada) e Gene Tierney, os pianistas Vladimir Horowitz e Oscar Levant, e o animador de TV americano Dick Cavett.

A Reação Contra o Eletrochoque
Como aconteceu com a psicocirurgia, a terapia por eletrochoque foi muitas vezes usada de forma polêmica. Em primeiro lugar, ocorreram muitos casos em que o eletrochoque era usado para subjugar e controlar pacientes em hospitais psiquiátricos. Pacientes problemáticos e rebeldes recebiam várias sessões de choque por dia, muitas vezes sem sedação ou imobilização muscular adequadas. O historiador médico David Rothman afirmou em uma reunião de Consenso Clínico do NIH sobre terapia por eletrochoque em 1985:

"A terapia por eletrochoque se destaca de forma praticamente solitária entre todas as intervenções médicas e cirúrgicas, no sentido em que seu uso impróprio não tinha a meta de curar, mas sim o de controlar pacientes para o benefício da equipe hospitalar"

Na década dos 70, começaram a surgir importantes movimentos contra a psiquiatria institucionalizada, na Europa e particularmente nos EUA. Juntamente com a psicocirurgia, a terapia por eletrochoque foi denunciada pelos partidários dos direitos humanos, e o mais famoso libelo de todos foi um romance escrito em 1962 por Ken Casey, baseado em sua experiência pessoal em um hospital psiquiátrico no Oregon. Intitulado "One Flew Over the Cuckoo's Nest", o livro foi posteriormente roteirizado em um filme de grande sucesso, dirigido pelo tcheco Milos Forman, que recebeu no Brasil o título de "Um Estranho no Ninho ", com o ator Jack Nicholson. Uma exposição desfavorável na imprensa e na TV desembocaram em uma série de processos jurídicos por parte de pacientes envolvidos em abusos da terapia por eletrochoque.

Em meados de 1970, a terapia por eletrochoque estava derrotada como prática terapêutica. Em seu lugar, os psiquiatras passaram a fazer um uso cada vez maior de novas drogas poderosas, tais como a torazina e outros fármacos antidepressivos e antipsicóticos.

Veja também: Choque Eletroconvulsivo: Recursos na Internet

Para Saber Mais
Endler, N.S. - The origins of electroconvulsive therapy. Convulsive Therapy 1988; 4: 5-23.
Fink, M. - Meduna and the origins of convulsive therapy. Am J Psychiatry 1984; 141: 1034-1041.
Abrams, R. - Electroconvulsive Therapy. Oxford: Oxford University Press, 1988.
Fink, M. Convulsive Therapy. New York: Raven Press, 1985.
Mackay, R.P. - Ladislas Joseph Meduna 1896-1964. Recent Adv Biol Psychiatry 1965;8:357-358
Sakel, M. - The methodical use of hypoglicemia in the treatment of psychoses. Reproduced in: Am J Psychiatry 1994 Jun;151(6 Suppl): 240-247
Ugo Cerletti and the discovery of Electroshock. An imaginary interview by Francesco Bollorino*, Rossella Valdre*, Maria Vittoria Giannelli Ph.D**.University of Genoa
Presentation Speech: Julius Wagner-Jauregg, The 1927 Medicine and Physiology Award, The Nobel Foundation
Renato M.E. Sabbatini , PhD é neurocientista e especialista em informática médica, com doutorado em neurofisiologia pela Universidade de São Paulo, Brasil, e cientista convidado do Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique, Alemanha. Ele é o diretor do Núcleo de Informática Biomédica e professor livre-docente e coordenador da área de informática médica da Faculdade de Ciências Médicas, ambos na Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Email: renato@sabbatini.com
Revista Mente e Cérebro

Pitágoras, Mercator, Franklin, Gutenberg...Invenções perdidas


Pitágoras, Mercator, Franklin, Gutenberg...Invenções perdidas
Pitágoras não foi o primeiro a perceber a relação entre os lados do triângulo reto. Nem foi Gutenberg quem inventou a tipografia. Conheça alguns dos verdadeiros pais de descobertas universais com quem a história não foi justa
por Tatiana Bonumá
A idéia de que as invenções e descobertas científicas podem alterar o rumo da história é apenas parte da verdade. De fato, os instrumentos, materiais e técnicas que o homem descobriu e dominou lhe deram condições para superar limites, impor-se diante da natureza e dos outros homens. Porém uma olhada mais atenta revela que o que muda tudo é o uso que determinado povo emprega à sua descoberta. Muito do que hoje é creditado aos vitoriosos gregos e romanos, já havia sido experimentado pelos extintos babilônicos e algumas das descobertas comemoradas pelos europeus, eram velhas conhecidas dos chineses.

O que é mais importante: a invenção ou seu uso? O que é mais revolucionário? O que muda, de fato, a história? “A utilização do conhecimento está ligada com o momento histórico e com aspectos culturais do povo que a absorve. Exprime a maneira como ele vê o mundo, o entende e o interpreta”, diz Ana Maria Alfonso-goldfarb, especialista em história da ciência e autora do livro Da Alquimia à Química.

Por isso, para ela, não faz muito sentido dizer quem inventou o quê e sim acompanhar o processo pelo qual o conhecimento gerou invenções e descobertas diferentes em cada local, em cada época.

Os triângulos da Babilônia

Recupere seus cadernos do primeiro grau, consulte os livros de geometria. Em todos eles vai encontrar o Teorema de Pitágoras, que de tão importante mais parece um mantra da trigonometria. Ele emana a seguinte verdade: em um triângulo com ângulo de 90 graus, o quadrado do lado maior é sempre igual à soma dos quadrados dos outros dois lado. Porém, antes mesmo de entender a equação, você saberá responder quem a desenvolveu. Como o próprio nome diz, Pitágoras, um filósofo e matemático grego fez o teorema por volta de 550 a.C.. “Pitágoras e seus discípulos formavam uma fraternidade esotérica, que se dedicava não só ao estudo da matemática, mas também ao ascetismo, que buscava a harmonia do cosmos baseada nas premissas de que tudo existe em conformidade com os números, sendo que a matemática é o princípio de todas as coisas”, explica Walter Carnielli, professor de história da ciência, da Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo.

Assim, a equação vai além do triângulo e, na época, era mais um exemplo de harmonia entre os elementos. Tudo muito coerente, explicado e comprovado. Segundo Walter, esse é a afirmação matemática que mais recebeu demonstrações, foram feitas 370 provas. Porém, justamente o que parece mais óbvio – o teorema de Pitágoras é de Pitágoras – é o X da equação. “O filósofo grego não foi o primeiro a perceber a relação. Indianos, egípcios e babilônios já usavam essas triplas de números (que formam um triângulo retângulo) há pelo menos mil anos”, afirma o historiador Dick Teresi, em seu livro Lost Discoveries (Descobertas Perdidas, sem tradução em português). Os hindus, por exemplo, os utilizavam entre 800 e 600 a.C., para desenhar triângulos e trapézios, consideradas figuras nobres, nos altares de cemitérios, em reverência aos deuses.

Mas, a prova definitiva de que o teorema era conhecido antes de Pitágoras vem dos babilônios e data de 1800 a.C. “É um pedaço de barro conhecido por Plimpton 322, mantido na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Ali, estão gravados centenas de números alinhados três a três. Para entender a relação entre os números, basta aplicar o teorema do triângulo reto. Um deles, é sempre o quadrado da soma dos quadrados dos outros dois”, afirma Walter.

Os segredos da Terra plana

Poucas descobertas deram ao homem tanta sensação de domínio do planeta como o mapa-múndi. Porém, para chegar a um resultado eficaz, estudiosos tiveram que desvendar um enigma: como representar num plano a Terra que é esférica? Gerhard Kremer Mercator, matemático e geógrafo flamengo, ofereceu uma boa resposta, com o método de representação cilíndrica, em 1569. Para entender como ele fez isso, imagine uma luz que parte do centro de um globo colocado dentro de um canudo de papel. A imagem projetada do globo (Terra) no cilindro (mapa) permitiu, pela primeira vez, representar continentes, oceanos e meridianos numa superfície. Foi uma festa para a indústria da navegação.

O método, como não poderia deixar de ser, ganhou o sobrenome de seu inventor e ficou conhecido nos quatro cantos do mundo como “Projeção de Mercator”. Procure nas enciclopédias e nos livros didáticos. Mercator será sempre indicado como um importante nome na cartografia (o que realmente ele é!), aquele que deu um passo indispensável para se chegar ao mapa moderno (verdade!) e o primeiro a trabalhar com a projeção cilíndrica (aí o bicho pega!).

Os chineses, ótimos navegadores e acostumados a vencer longas distâncias, já haviam elaborado e aplicado o mesmo conceito há exatos 629 anos. A prova está arquivada na Biblioteca Britânica, em Londres. Um documento chinês de 940 d.C. mostra a esfera terrestre projetada sobre uma superfície, conseguida por meio da mesma técnica de projeção cilíndrica. Quanto ao impulso de desenhar mapas, pode-se afirmar que ela é quase tão antiga quanto o homem. Babilônios, egípcios, gregos e árabes esboçaram o mundo, cada um a sua maneira. O mapa mais antigo que se tem conhecimento é o Mapa de Ga-Sur, de 2500 a.C., encontrado na Mesopotâmia, que representa o Rio Eufrates e os acidentes geográficos ao redor, numa pequena placa de barro que cabe na palma da mão.

As misteriosas águas penetrantes

Atualmente, os ácidos preparados a partir de minerais, como o nítrico, o clorídrico e o sulfúrico, são de extrema importância. Esse último, por exemplo, é normalmente usado como índice para avaliar o grau de industrialização de um país. Eles são vastamente utilizados nas produções de plástico, borracha e fertilizantes, entre outras coisas. “Grande parte dos historiadores da química atribui a descoberta dos ácidos minerais a Geber, um lendário alquimista que teria vivido no século 13”, afirma Maria Helena Roxo Beltran, professora de história da ciência, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. Mas a referência mais antiga dos tais ácidos foi escrita por Vanoccio Biringucci, um artesão de Siena (na atual Itália). Em 1540, ele publicou um livro chamado De La Pirotechia, em que fornece uma descrição detalhada de como obter o que chamou de “águas penetrantes”, utilizadas na época para corroer metais.

No entanto, hoje se sabe que os árabes já utilizavam os ácidos minerais no século 9 e, antes ainda, eles já eram conhecidos na Mesopotâmia, em 1700 a.C. “Antigas gravações em pedra mostram que os assírios fabricavam um tipo especial de vidro vermelho que só é possível com a utilização de pequenas quantidades de ouro dissolvido em água-régia, uma mistura dos ácidos minerais nítrico e clorídrico”, afirma Ana Maria Afonso-goldfarb.

Onde os raios vão parar?

As pesquisas arqueólogicas em Pueblo, no deserto no Novo México, Estados Unidos, já revelou muita coisa importante e polêmica sobre os antigos moradores daquela região, os anasazi. Em 1997, pinturas rupestres datadas do século 7 indicaram que podem ter sido eles os primeiros inventores do pára-raios. Uma técnica extremamente simples, utilizada pelos antepassados dos índios americanos atraía as descargas elétricas, preservando suas cidades de prejuízos. “Eles não colocavam objetos pontiagudos, como altas lanças de madeira, em locais elevados e de grande incidência de raios, como forma de impedir sua propagação”, conta Amaury Carruzo, meteorólogo e diretor-científico do Instituto Ciênciaonline de Educação e Cultura.

Se não fossem os anasazi, ainda assim os americanos ficariam com o crédito por livrar casas e prédios dos raios. Na Filadélfia, no fim século 18 – um período fértil nos debates sobre fenômenos atmosféricos – o físico e inventor Benjamin Franklin, ficou famoso por comprovar a natureza elétrica dos raios com uma experiência tão conhecida como perigosa, realizada em 1752. Franklin saiu no meio de uma tempestade para empinar uma pipa, com uma chave presa em sua ponta e conseguiu atrair uma descarga elétrica. Com menos sorte, poderia ter sido carbonizado. Afortunado, acabou inventando – e patenteando – o pára-raios. O instrumento é constituído de um ou mais captores (lanças) de 04 pontas, montado sobre um mastro de metal. Este modelo é utilizado até hoje e chama-se captador Franklin.

Os Bastidores da imprensa

Quando se fala em técnicas de impressão, uma associação é imediata: o nome de Johannes Gensfleisch. O.k., talvez o nome nem tanto, mas o sobrenome é inconfundível: Gutenberg, que viveu entre 1399 e 1468. Seu invento consiste em um trabalhoso e elaborado método que ficou conhecido como tipografia. Ele juntava peças de metal esculpidas com letras em relevo, que eram organizadas para formar palavras. As folhas de papel eram colocados diretamente sobre elas e comprimidas contra o metal sujo de tinta. Depois de secar, a página estava pronta. Aí, para fazer páginas diferentes, bastava trocar as letras e as palavras, é claro. O negócio dava trabalho, mas muito menos que escrever tudo à mão. “A técnica dos caracteres móveis e o livro impresso trouxeram novas possibilidades para a difusão de conhecimento numa proporção até então inédita”, afirma Maria Helena, da PUC, de São Paulo.

Mas sem desmerecer tanto suor, paciência e dedicação, Gutenberg não foi o inventor da impressão. Mais uma vez, os chineses largaram na frente. Eles dominavam várias técnicas para imprimir textos e imagens, e, desde o século 7, eram impressores compulsivos de calendários, livros sagrados e poesias. O tipo móvel foi desenvolvido pelo chinês Pi Sheng, entre 1041 e 1048, e transformou-se no método mais tradicional pela facilidade em lidar com o material. A destreza chinesa para a tipografia era impressionante, mas invento nenhum seria o bastante para o desafio que tinham pela frente: lidar com a quantidade necessária de tipos móveis para dar conta do idioma chinês. Para um texto escrito no século 12, por exemplo, foram necessários cerca de 400 mil caracteres diferentes. Comparada com a missão dos chineses, nesse aspecto braçal, a missão de Gutenberg parece fichinha.

Os caminhos do sangue

Contestar o conhecimento aceito como verdadeiro pela maioria é sempre perigoso. Durante o Renascimento, então, era um ato de muita coragem e certa dose de insanidade. A época foi marcada justamente pela veneração das doutrinas clássicas e negá-las poderia colocar qualquer um em maus lençóis. A não ser que ele fosse amigo do rei. Esse era o caso de William Harvey, médico inglês casado com a filha do fisiologista da corte, que dedicou sua vida aos estudos do sistema vascular. Em 1568, publicou no livro Exercitatio Anatomica de Motu Cordis Et Sanguinis Animalibus uma descrição precisa do fluxo sangüíneo dos seres humanos e da real função do coração no corpo. “A publicação inicia o método experimental na fisiologia e inaugura o conceito de corpo humano como uma máquina mecânica e hidráulica, concepção que teria seu auge no século 18”, diz Luzia Aurélia Castañeda, professora do Centro de História da Ciência, na PUC, em São Paulo. Suas explicações são aceitas até hoje, mas foram agressivamente rejeitadas na época. William incomodou porque desbancou as teorias de Galeno de Pérgamo (131-201 d.C), fisiologista e cirurgião dos gladiadores, que acreditava que o sangue era formado no fígado e que se movia em fluxos e refluxos.

Porém, se na Europa ocidental as idéias de William eram chocantes, na China, elas eram antigas conhecidas. “Eles foram os primeiros a executar dissecações do corpo humano e descreverem corretamente o fluxo sangüíneo em O Livro Clássico de Medicina do Imperador Amarelo, dois mil anos antes da civilização ocidental”, diz Carlos Bella, coordenador do Instituto Ciênciaonline.

E, ao contrário do que se pensa, essas teorias não se perderam ao longo da história. Os europeus provavelmente já haviam tomado conhecimento das experiências chinesas no século 13. Contudo, sob a forte influência religiosa, a sociedade européia não parecia estar aberta para novos conceitos. Por isso, apesar da descrição do fluxo sangüíneo não ser propriamente uma novidade, William teve o mérito de incorporar uma experiência alheia para criar uma teoria absolutamente em relação ao pensamento de seus pares.

Made in China
Uma sociedade pragmática e avançada, a China foi um importante pólo de novas idéias e descobertas do mundo antigo.

Há mais de 110 inventos que partiram de lá para ganhar o mundo. A seguir, alguns exemplos.

Sismógrafo

O equipamento do ano 132 indicava até a direção da qual viria o tremor. Aparelho similar na Europa, só em 1855

Dinheiro

Eles criaram o papel-moeda no século 7. Na Europa, a Suécia foi a primeira a adotá-lo, em 1661

Bússola

Na China do século 4 a.C. ela era usada para equilibrar as energias dos indivíduos. Na Europa, chegou em 1232 e virou um importante instrumento de navegação

Whisky

Chang Hua descobriu o álcool destilado em 654. Na Europa, ele surgiu na Itália, no século 12

Porcelana

No século 3 ela já era feita na China. Os europeus a conheceram em 1500, mas só 200 anos depois aprenderam como fabricá-la

Revista Aventuras na História

.Montesquieu: Roma iluminada


Montesquieu: Roma iluminada
por Celso Miranda
Publicadas originalmente em 1734, as Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos de Sua Decadência (Contraponto), do filósofo francês Montesquieu (1689-1755), é uma oportunidade ímpar para conhecer a história de Roma – epicentro do mundo mediterrâneo durante tantos séculos – a partir da ótica de um dos principais pensadores do século 18.

Já famoso por livros como Cartas Persas e Reflexões sobre a Monarquia Universal, que precederam sua grande obra Do Espírito das Leis, de 1748, Montesquieu isolou-se da agitada vida de Paris em seu castelo em La Brède, próximo a Bordeaux, uma região de ótimos vinhos, aliás. Ali, ele consumiu dois anos e leu não apenas os clássicos, mas também antigos textos não latinos e pré-medievais. Mas a erudição e o rigor das citações de trechos de Procópio, Políbio, Apiano, Zózimo e Jordanes, não devem intimidar o leitor. Com habilidade, Montesquieu serve-se dessas fontes, hoje praticamente inacessíveis, transformando-as em uma deliciosa e completamente inteligível iguaria: um texto curto, sintético, cuja ambição é conceber uma história explicativa e que, por outro lado, incite o leitor a fazer sua própria reflexão.

Montesquieu não se prende à narrativa de eventos singulares ou à sua datação e vai ao essencial com habilidade e método. Ele pretende observar o passado para esclarecer o presente e, nessa empreitada, revela-se um precursor Hegel, o fundador da filosofia da história. Algumas das suas idéias são particularmente úteis para entender tanto a história do Império Romano, quanto a filosofia de Iluminista que serviu tão bem ao Estados Modernos. Montesquieu acredita que há racionalidade na história: “Não é a sorte que domina o mundo. Quando o acaso de uma batalha, isto é, uma causa particular, destrói um Estado, é porque havia uma causa geral que fazia com que este Estado devesse perecer em uma única batalha”. Mas também não se deixa fascinar pelas individualidades: “Se César e Pompeu houvessem pensado como Catão, outros teriam pensado como César e Pompeu”.

Hoje, quando os leitores de história parecem preferir as estruturas ocultas e estáveis à simplória cronologia dos fatos, essas considerações adquirem novo valor e reafirmam a modernidade de Montesquieu.

Revista Aventuras na História

A lavagem do Rio

Jeanne Marie Gagnebin

Professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Caixa Postal, 6110 Barão Geraldo, 13081-970 Campinas — SP Brasil

Myriam Bahia Lopes
O Rio em movimento — quadros médicos e(m) história: 1890-1920
Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2001, 136p.

Para um leitor, como a autora desta resenha, que não é nenhum especialista em história, o livro de Myriam Bahia Lopes, O Rio em movimento — quadros médicos e(m) história: 1890-1920, reserva surpresas instigantes. Embora trate de um período relativamente curto, de um episódio singular, a Revolta da Vacina, e restrito ao Rio de Janeiro, a obra levanta questões que dizem respeito tanto à representação do passado quanto à representação da especificidade brasileira sobre esse passado. O questionamento historiográfico salutar leva o leitor, atento à voz crítica que ali se articula certamente com discrição, mas com firmeza, a se perguntar se alguns lugares-comuns sobre a interpretação do Brasil de hoje não poderiam igualmente ser chacoalhados com proveito.

Desde o início, Myriam Bahia define seu livro como um ensaio, isto é, uma tentativa ou, como ela também diz, uma luta. O livro apresenta um momento histórico preciso, um acontecimento singular, mas, ao mesmo tempo e de forma inseparável, também procede a uma constante auto-reflexão sobre as categorias empregadas nessa apresentação, categorias como "modernidade" (versus "atraso"), civilização, "regeneração" (versus "decadência"). Essa "luta implícita contra a rigidez das palavras", segundo Myriam, faz desse texto um pequeno laboratório de indagações preciosas sobre algumas idéias prontas, mesmo que bem-intencionadas e progressistas, que circulam a respeito de nossa "triste realidade nacional", como se diz, e que impedem que se tenha uma percepção mais atenta de sua complexidade, de seus paradoxos, talvez até de suas contradições e também de suas possibilidades insuspeitas.

Para estimular essa percepção mais fina, para "intervir nas imagens cristalizadas na memória histórica", a autora lança mão de uma quantidade e de uma diversidade notáveis de documentos, dos quais a lista de fontes consultadas ao final do volume dá uma boa idéia. Arquivos, bibliotecas, fundações, casas, museus, correspondências, jornais fornecem não só textos, mas também canções e imagens que mostram uma multiplicidade de visões, de interpretações e, portanto, de narrações dos acontecimentos.

Gostaria de ressaltar aqui o olhar perspicaz de Myriam Bahia quando analisa as fotografias da época, essas imagens que não reproduzem a realidade, mas são elas também construções ideológicas e artísticas. Um exemplo: a construção de 'tipos' urbanos, isto é, de figuras isoladas do seu contexto concreto de rua ou de moradia graças ao fundo, fornecido por um pano branco que recobre o resto, pano que o fotógrafo Marc Ferrez carrega consigo. Myriam estabelece um contraste entre várias fotografias assépticas do Rio em obras, protótipos de uma modernização urbana ordenada, e as numerosas caricaturas que revelam a sujeira, o desconforto, a exclusão dos moradores em decorrência desse mesmo processo de "modernização". Assim, as ilustrações fazem mais do que 'ilustrar' o texto escrito; tornam-se documentos à part entière que trazem outras informações possíveis e trazem-no de uma outra forma que a fornecida pelo documento escrito.

No último capítulo, especificamente consagrado à eclosão e ao desenrolar da revolta, podemos examinar croquis cuidadosamente elaborados dos bairros cariocas no dia da revolta, todos eles dotados de um sistema de convenções desenhadas pela autora, como "bonde virado", "crianças representando batalhas", "pancadarias" ou "quartel de polícia". Textos e croquis apóiam-se e comentam-se mutuamente, num esforço visível de deixar em aberto a interpretação dos acontecimentos: no cenário da cidade, que os mapas apresentam, os revoltosos encenam uma história cujo desfecho não está prefixado e cuja conclusão não é definitiva.

A respeito do fim da revolta só se pode afirmar com segurança o seguinte: "Os presos, em torno de setecentos, aguardaram na Ilha das Cobras antes de serem enviados para o Acre." A imagem corrente da Revolta da Vacina é a de um levante popular provocado pela pobreza e cujo pretexto foi a resistência da população mais simples à obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Ademais, em vez de esclarecer o povo sobre os benefícios da medida, vários jornais de oposição aproveitaram-se de sua ingenuidade para propagar a suspeita de que a vacina transmitia doenças, em vez de combatê-las. Assim, monta-se um quadro composto pelo atraso brasileiro (em relação ao resto do mundo moderno e higiênico), pelo obscurantismo popular encorajado pela miséria e pela manipulação proveniente de algumas pessoas da elite que não têm escrúpulos.

Myriam Bahia não nega a presença parcial de tais elementos. Sua estratégia consiste, porém, em afirmar a existência geralmente ignorada ou silenciada de outras dinâmicas em jogo que permitem relativizar as conclusões cínicas ou resignadas decorrentes da versão anterior, que eram do tipo: "Enquanto houver tamanha pobreza no Brasil, não se pode esperar nenhuma independência crítica por parte do povo, que sempre se deixará seduzir por indivíduos malvados e interesseiros."

A estratégia argumentativa do livro desenvolve-se em duas direções principais. Primeiro, mostrar que a Revolta da Vacina também se inscreve em um movimento de resistência popular muito mais amplo contra a 'modernização' do Rio de Janeiro. Segundo, mostrar que os argumentos ideológicos e científicos contra a vacina obrigatória também remetem a uma outra concepção igualmente coerente da medicina, concepção defendida por vários movimentos internacionais.

O primeiro passo da obra baseia-se numa evocação cuidadosa das transformações urbanísticas impostas pelo governo à capital do Brasil. O Rio de Janeiro devia passar de uma cidade colonial atrasada, suja, malcheirosa, símbolo de um Império decadente, para uma capital moderna e limpa, imagem da nova ordem republicana e das ambições políticas renovadas do Brasil no cenário internacional. Contra o atraso tropical colonial, tratava-se de "integrar o Brasil no mundo civilizado" (nas palavras de Stepan citadas por Bahia), e isso através de duas operações higiênicas diferentes, mas paralelas: operação de saneamento da cidade e operação de vacinação da população. O livro estabelece uma analogia muito fecunda entre o espaço físico da cidade, o corpo urbano, por assim dizer, e o corpo individual singular de cada cidadão. Os dois corpos devem ser limpos, sadios, higiênicos, isto é, também delimitados, controláveis e controlados.

Assim, como na Paris de Hausmann, aqui, a destruição dos bairros populares e dos cortiços não serve à erradicação da pobreza (que continua e migra para os morros ou para a periferia). Ela visa, talvez antes de tudo, à delimitação disciplinadora de uma população que sabia viver sem domicílio nem trabalho fixos e ocupar um espaço urbano sem seguir as regras estabelecidas pelas autoridades. A rua colonial, local reservado a homens vagabundos, capoeiras, ladrões, negros quadrilheiros, prostitutas, mendigos ou penitentes (sic)" — só faltam os nossos camelôs —, devia ceder lugar a largas e modernas avenidas, como a avenida Central, de recorte claro e racional, pelas quais transitam indivíduos ordeiros, isto é, com família e lar determinados, locais de trabalho e de diversão definidos. Trata-se, diz Myriam, de "fixar os indivíduos pelo lar, promovendo a família, e, ao mesmo tempo, fazê-los circular por uma rede de trajetórias previstas e de instituições normativas, tais como as ruas, as praças, a casa de comércio, a escola, a fábrica e a moradia".

A introdução da iluminação a gás nas ruas e nas casas sem dúvida aumenta a segurança dos cidadãos, mas também permite um controle mais eficaz de seus afazeres e movimentos. A escuridão ameaçadora, mas também aconchegante, no seio da qual todos os negócios lícitos e ilícitos são possíveis, é substituída pela visibilidade invasiva: não foi por acaso que os revoltados da vacina destruiriam os postos de iluminação e mergulhariam os bons burgueses proprietários no "medo de escuro" e na insônia, segundo uns versos satíricos de Xiquote, de 1905.

Ora, essa intervenção agressiva no corpo da cidade, que tinha crescido certamente de maneira "desordenada", mas seguindo a ordem dos ritmos e das necessidades de seus habitantes, essa intervenção repetia-se agora sob a forma da obrigatoriedade da vacina, pela ação das brigadas sanitaristas que, acompanhadas por policiais, entravam à força nas casas e espetavam os corpos indefesos da população. Em termos simbólicos, é uma invasão semelhante que desaloja agora o indivíduo não só da sua rua ou da sua moradia, mas também do seu próprio corpo, seu espaço mais íntimo e incontestado.

Não se tratava somente de convencer a população a vencer um medo irracional diante da lanceta. Também não podemos esquecer dos inúmeros 'acidentes' (reações mórbidas à vacina) provocados, entre outros fatores, pelas péssimas condições de transporte da vacina, que geravam desconfiança na população e que seriam silenciados pela historiografia futura, pronta a denunciar rapidamente a falta de esclarecimento científico. Tratava-se, antes de mais nada, de uma outra relação do sujeito com seu próprio corpo: este não era visto como um organismo cuja saúde dependia do saber de outros (enfermeiros, médicos, cientistas) e que devia, portanto, se prestar a manipulações e a controles benéficos por parte dessas autoridades. Mais fundamentalmente, o corpo pertencia ao sujeito de maneira tão íntima e imediata que este nem podia dizer que era seu, como se fosse propriedade sua: ele não era nem mesmo 'dono' do seu corpo, mas existia nele, ele o era. Sentimento primeiro e difuso que talvez não chegue a se explicitar verbalmente, mas que está na raiz da resistência à intervenção sanitarista pública, percebida como uma desapropriação íntima e um controle repressivo sob o gesto da prevenção.

Nesse segundo momento de sua exposição, Myriam detém-se e puxa de sua manga de arguta historiadora dois trunfos inesperados: a concepção holística de muitos médicos positivistas da época, no Brasil, e a presença de um forte movimento internacional, nos meios médicos e políticos, contra a vacinação obrigatória, fato negligenciado pela historiografia da revolta. A análise de vários documentos e de inúmeras declarações, em particular na imprensa, de médicos ou de notáveis, membros da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil (IAPB), revela uma concepção singular da saúde e do saber médico. A concepção remonta a Hipócrates e continua viva em práticas atuais como a homeopatia. Ela repousa na afirmação da interligação entre o meio biológico e o meio social, inaugurando uma nova teoria, a mesologia. Daí decorre uma concepção holística da saúde e de sua preservação. O médico deve ajudar o paciente a manter o equilíbrio natural, que é definição da saúde, e a fortalecê-lo quando ele se torna precário, mas sem recorrer a intervenções diretas no funcionamento dos órgãos.

No quadro da doutrina positivista da sociedade, o dever de manutenção da saúde não faz parte das atribuições do Estado, não pertence ao domínio público. A saúde só se fortalecerá se houver um projeto moralizador da população para retornar às sagradas leis da natureza, em particular à preponderância dos laços familiares na educação, na formação e na manutenção da vida, passando pela reabilitação do papel central da mulher, elo privilegiado entre o natural e o social. Por essas razões, numerosos positivistas se opunham às "instituições de seqüestro (sic)", tais como a escola e o hospital, que retiravam o indivíduo do seu meio natural originário, isto é, da família.

Myriam não esconde o viés reacionário dessas teorias. Mas ela insiste no fato de que os médicos positivistas — que não são unânimes entre si; é importante ressaltar várias diferenças, em particular entre cariocas e paulistas — apresentavam uma teoria coerente que não era simplesmente uma cópia grotesca de seus mestres europeus. Sobretudo a luta entre positivistas e sanitaristas não é uma discussão entre charlatães supersticiosos e cientistas íntegros, mas um "debate travado entre duas figuras de saber": de um lado, uma concepção holística da saúde decorrente de uma teoria do meio; do outro, a teoria do agente específico de cada doença, isto é, a possibilidade de descoberta de estratégias e de técnicas específicas singulares (remédios, injeções, vacinas, operações etc.) que permitem lutar contra esses agentes isolados.

Pesquisando o acervo particular de um ilustre médico positivista, membro do IAPB, J. C. Bagueira Leal, Myriam encontrou cartas da Anti-Vaccination League of America e da National Anti-Vaccination League da Inglaterra. Bagueira Leal, aliás, seria eleito vice-presidente honorário da liga norte-americana em outubro de 1908. Myriam analisa aqui rapidamente os argumentos do movimento inglês (ela os estudará com mais detalhes em sua tese de doutoramento, concluída em Paris em 1997). À diferença da argumentação positivista brasileira, de cunho mais religioso — mesmo que se trate de uma teoria religiosa da natureza — os antivacinistas ingleses filiavam-se a uma longa tradição de luta dos radicais, segundo a qual "a ingerência estatal no domínio privado dos corpos cria o direito de resistência dos cidadãos".

A rica correspondência entre os antivacinistas brasileiros e seus colegas ingleses ou americanos revela a existência, apesar das diversas filiações, de um debate internacional importante, de relevância científica e política, sobre as novas práticas sanitaristas: a luta contra a vacinação obrigatória significa, portanto, muito mais que uma grotesca resistência de pseudocientistas da periferia tropical do mundo civilizado.

Concluamos. Ao lado da engenhosa e precisa pesquisa histórica, o maior mérito do ensaio parece ser sua capacidade de recontar um episódio da história brasileira sem cair nem no relativismo historiográfico nem no posterior acerto de contas para decidir quem estava com (a) razão. Essa revisão cuidadosa dos esquemas narrativos e interpretativos em uso na história da Revolta da Vacina permite vislumbrar uma outra hipótese. E se essa luta popular não fosse o mero levante de pobres miseráveis, atrasados e ignorantes, mas muito mais a tentativa de esboçar uma outra organização do espaço: do espaço exterior, da cidade, como palco da invenção de outras práticas de habitação; do espaço interior, dos corpos, como territórios não controláveis da invenção da vida?

Revista FIOCRUZ

Corpos ultrajados: quando a medicina e a caricatura se encontram

Myriam Bahia Lopes

Doutora em História pela Universidade Paris 7
Pesquisadora e professora do Departamento de História(ICHS) da Universidade
Federal de Ouro Preto (MG)
e-mail: myriamb@npd.ufes.br
m.lopes@mailexcite.com
Rua Getúlio Vargas, 3
35400-000 Ouro Preto — MG Brasil


Breve introdução à caricatura

A caricatura ganha esse nome, no prefácio de Mosini (1646), preparado para a edição dos desenhos do italiano Carrache, sobre o tema dos ambulantes e dos refrões publicitários.
Na Inglaterra, as primeiras caricaturas são editadas em um álbum de gravuras italianas, publicado em 1737, por Arthur Pond (1705-56), caricaturista, retratista, tipógrafo e gravurista, e, em 1739, têm nova edição por Knapton. No entanto, somente com a revogação das leis de censura à imprensa a partir de 1780, o gênero da caricatura veio a obter sucesso.
O século XIX marca uma inflexão sobre o desenvolvimento das artes gráficas.1 Da Inglaterra, propagam-se as inovações na arte da impressão. As ilustrações passam a ser gravadas segundo diversas técnicas novas: litografia, madeira de topo, gravura sobre aço e galvanotipia. Essas invenções barateiam as edições, inaugurando uma nova era — a da reprodutibilidade técnica — e impulsionando a arte da caricatura. A introdução da técnica de impressão com papel de rolo, por exemplo, acarreta a queda no preço dos impressos, e as ilustrações em série multiplicam-se: a base da representação estética da cidade e de seus habitantes está lançada. Já em meados do século XX, são lançadas por Charles Knight duas publicações educativas — a revista Penny e a enciclopédia do mesmo nome —, que, naquele momento, obtêm grande sucesso.
O ano de 1840 marca a comemoração do terceiro centenário da invenção da imprensa. Nesse momento, a palavra ‘ilustração’, antes utilizada tão-somente para designar uma celebridade, adquire um novo significado, a partir do lançamento, em Londres, do periódico London Illustrated News (1842). John Locke, em 1693, já preconizara a utilização das imagens para facilitar a compreensão dos leitores. Os ingleses, ainda ao longo do século XIX, aprimoram-se na arte de facilitar e enriquecer a mensagem através da imagem, propiciando o surgimento da tipologia que retrata a diversidade diluída na multidão das grandes cidades da época.
Antes de examinarmos a elaboração da ‘fórmula tipo’, enfocaremos a linguagem da caricatura e descreveremos seu processo de afirmação, acompanhando seu diálogo com a pintura histórica e a escultura.

A hierarquia das artes plásticas

A temática da caricatura, para ilustrarmos com um exemplo, aproxima-se da pintura holandesa (Alpers, 1990), ou dos quadros que Frans van Mieris pinta das cenas do cotidiano (Figura 1).
No século XIX, a pintura foi hierarquicamente subdividida nos seguintes tipos: pintura histórica, retratos, pinturas de gênero e natureza-morta. Nessa classificação, a caricatura — penúltimo lugar na hierarquia — ironiza, no humor do seu traço, a elevada posição da pintura histórica, criando, ao tecer uma visão invertida do mundo, uma rede de significados que provoca o riso. Quanto maior e mais forte a posição social do retratado, maior o prazer que experimentamos ao ver as linhas que delimitam a norma serem transformadas pela instigante criação da caricatura. A caricatura tirou partido desse sentimento, atingindo grande produtividade na época dos regimes de exceção.

Fig. 1 — The doctor’s visit, de Frans van Mieris, dito o Velho (1657). Acervo do Kunsthistorisches Museum, Viena.

Os caricaturistas, por volta de 1840 (Riout, s. d.), satirizam as regras do mundo artístico, criando os salões de caricatura. O grande porte da pintura histórica e o tamanho dos monumentos históricos tornam-se fontes de humor. Os caricaturistas exploram a polarização do grande e do pequeno e elaboram uma reflexão sobre os materiais empregados e a morfologia da ‘grande arte’, que tem, por suporte, telas enormes, ricamente enquadradas, de difícil transporte, conservadas por colecionadores ou reunidas em museus, de preferência ao abrigo dos efeitos destruidores do tempo.
Em contrapartida, a arte do caricaturista transporta-se de várias formas, sob diversas tessituras. No início do século XIX, os retratos de celebridades circulam impressos em papel de embrulhar balas. Alguns anos mais tarde, as caricaturas retratam os seus personagens nos jornais, como os trabalhos de Honoré Daumier,2 litógrafo, pintor, escultor e caricaturista, que esculpe caricaturas em gesso e argila ou grava-as na pedra litográfica para imprimi-las posteriormente, e J. Carlos,3 que esculpe e desenha portrait-charges.
Quando o caricaturista representa um monumento, sua postura sarcástica em relação à grande arte assume a forma de um diálogo de imagens. Nos jornais ilustrados, o texto e a imagem, em formato portátil, podem ser lidos em qualquer lugar. Diferentemente, a pintura de grande formato e a escultura com seu tamanho e pedestal provocam um afastamento físico do público. A multiplicação do número de reproduções reduz o custo das ilustrações, tornando-as mais acessíveis ao grande público. Os portrait-charges estão ao alcance das mãos e dos olhos dos habitantes dos grandes centros. A caricatura, em seu diálogo com a grande arte, destitui as representações históricas do seu solene pedestal. O jogo de contraste entre o pequeno e o grande inspira o caricaturista, professor de direito, escultor, poeta e autor teatral Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953), autor do lindo álbum Cenas da vida carioca (1904), a criar o monumento mostrado na Figura 2.

Fig. 2 — ‘A vacinação’, de Raul (O Correio, 1.10.1904), em Falcão (1972, p. cxii).

Nesse período, os críticos de arte identificam a renovação do estilo gótico como responsável pela produção de uma poluição visual na arquitetura.4
No Brasil, encontramos muitos artistas que se consagram igualmente à pintura histórica e à caricatura. Entre eles, podemos citar dois exemplos significativos: Manuel José Araújo Porto Alegre (1806-79) e Pedro Américo de Figueiredo e Mello.5 Esses artistas dominam com perfeição as diferentes técnicas plásticas e suas respectivas linguagens, o que lhes permite introduzir um interessante debate sobre as diversas formas de expressão artística.

A atualidade e a história

Ao longo dos anos, a medicina vem fornecendo temas que integram a tradição cômica. Rabelais6 e Molière são dois de seus grandes exemplos. A rica produção de caricaturas sobre a medicina forma um ramo da produção de desenhos humorísticos (Desprez, 1994).
Desde o século XIX, essa linguagem plástica vem interessando aos médicos ingleses e brasileiros. O dr. Oswaldo Cruz colecionou em álbum7 as caricaturas publicadas na imprensa sobre a campanha sanitária por ele dirigida.
O tipo de temática e de personagem sobre os quais se detêm os caricaturistas sugere uma proposta clara de estudar situações da atualidade para atingir imediatamente o grande público. A caricatura cria, com freqüência, um jogo em que os elementos polarizados no desenho produzem humor.
Em 1908, quatro anos passados da revolta provocada pela vacinação, uma epidemia de varíola assola o Rio de Janeiro. O caricaturista desenha um dr. Oswaldo Cruz pequeno, enfrentando um personagem enorme, que representa a grande morte: a varíola (Figura 3).

Fig. 3 — A varíola e a vacina.
Oswaldo Cruz: Retira-te, em nome da ciência!
Varíola: Que ciência! A de Jenner? Conheço-a há 85 anos e ainda anda de carro de boi no Brasil, ao passo que eu, já ando de automóvel! ... Cresça e apareça!
O Malho, 1.2.1908 (em Falcão, 1972, p. ccvi).

No comentário sobre a epidemia, contido na legenda, a morte anda de automóvel, enquanto o Brasil anda de carro de boi: na corrida técnica, a ciência de Jenner é vencida pela velocidade da morte.
A caricatura, freqüentemente, representa oposições entre a história e a mitologia — domínios que aspiram a uma figuração imortal — e entre o instante e o transitório, assimilando em seu estilo o ritmo peculiar da imprensa — ‘o império da novidade’ —, na tentativa de expressar a maneira como a imprensa se relaciona com o imediato.
Em 1912, a capa do periódico ilustrado O Gato (Falcão, 1972, p. ccxxix) apresenta uma caricatura do dr. Oswaldo Cruz. O contorno irregular da legenda dá a impressão de que o canto do retrato está rasgado. Abaixo e à direita do desenho, lemos: "O novo imersível.
Deve-se a S. Exa. por ocasião da vacina obrigatória a exibição de muitas letras da parte do pessoal da lira."


O autor poderia ter composto a palavra da seguinte forma: ‘in’, prefixo de negação mais o radical ‘mort’ e o sufixo ‘vel’, mas optou pela sonoridade da palavra ‘imorrível’. A legenda da caricatura faz uma alusão crítica à entrada do dr. Oswaldo Cruz na Academia Brasileira de Letras (ABL). Às críticas lançadas contra o ‘homem das letras’, dr. Oswaldo Cruz, segue-se um jogo de palavras. Se alterarmos a ordem de composição da frase da legenda, reforçaremos a ironia do caricaturista, que sugere termos um débito para com o dr. Oswaldo Cruz.
Por ocasião do debate sobre a vacina antivariólica obrigatória, várias letras foram apresentadas pelo ‘pessoal da lira’.8 Assim, torna-se evidente que o dr. Oswaldo Cruz trouxe grande inspiração ao povo, pela qual este lhe deveria ser extremamente agradecido. O humor nasce da exploração da palavra ‘letra’. Sob a pena do caricaturista, a letra imortal dos academicistas adquire outro sentido. E aqui, mais uma vez, a ironia surge do contraste que o caricaturista estabelece entre a arte imortal dos acadêmicos e a linguagem popular.
A caricatura soma pontos de vista e pode ser lida a partir dos diversos ângulos, que oferecem vários pontos-chave que traduzem a condensação das idéias que o caricaturista quer comunicar ao leitor. O que nos parece extremamente interessante é que a caricatura pode ser percebida em vários níveis de compreensão. A proliferação do duplo sentido não impede que ela seja devidamente decifrada, mesmo quando sua elaboração requer conhecimento prévio de certos contextos situacionais, como, por exemplo, a maneira de vestir do representado, como veremos na Figura 4. Uma vez que o caricaturista trabalha com a riqueza de acepções das palavras, dos símbolos e dos emblemas, forçosamente, produz um texto de fundo duplo. A partir da aparente clareza e simplicidade do traço quase esquemático que se apresenta ao leitor, em uma primeira leitura, desdobra-se uma variedade de possibilidades através do recurso de associação de idéias, até que se chegue ao encontro da mensagem do artista. Entretanto, essa mensagem só poderá ser percebida quando retratar um dos temas que mobilizam a opinião pública. Dessa forma, consideramos que a caricatura domina a arte da comunicação, transmitindo sua mensagem a todos os seus contemporâneos, com a vantagem de poder, inclusive, atingir os leitores iletrados.
Mesmo no início, quando a caricatura vem acompanhada de muitos balões e legendas, a mensagem do desenhista é compreendida pela imagem, e o caricaturista não requer do leitor a competência nas letras para se comunicar com ele.

As caricaturas de Oswaldo Cruz

As caricaturas sobre o dr. Oswaldo Cruz são abundantes na imprensa da época. Freqüentemente, para retratar um homem público, os desenhistas fazem alusão a algum figurante da galeria dos grandes personagens da história. Se, à primeira vista, a alusão conserva a autoridade da eminência, observamos, em seguida, que ela desvaloriza o homem público ao colocá-lo numa situação ridícula.
A caricatura estabelece um diálogo com as artes cênicas e, em particular, com o qüiproquó, que, segundo Bergson (1989, p. 75), pertence a uma categoria de fenômeno que provoca o riso, explorando a comicidade da coincidência de duas séries diferentes. O autor de teatro precisa empenhar-se para chamar atenção do público para a duplicidade integrante do fato: a independência e a coincidência; já o caricaturista, freqüentemente, nos remete à identificação e à alteridade dos representados.
A elaboração do portrait-charge se faz por uma série de etapas distintas. O personagem histórico é justaposto a um personagem da atualidade. À caracterização do primeiro, soma-se o rosto caricaturizado do segundo. A justaposição produz uma mistura, confundindo os traços de vestuário que poderiam ajudar a identificar o personagem. O portrait-charge inverte uma regra de produção do tipo, em que o traje é indissociável do personagem que o veste. Para o tipo, o traje é como a ‘segunda pele’ e representa um signo de reconhecimento de sua posição social (Le Men, 1992, p. 15). Em nosso exemplo, o dr. Oswaldo Cruz, pelo envio a séries distintas — Nero/dr. Oswaldo Cruz e Luís XIV/dr. Oswaldo Cruz — é diferentemente representado pelo caricaturista, que nos assinala que o traje não passa de uma convenção. Nas caricaturas, o traje segue algumas regras de moda, por sua liberdade de fazer referência a épocas distintas ou de misturar vários estilos. No entanto, a intenção do caricaturista vai além da criação de um desenho de moda: ele persegue a criação de uma composição metafórica.
Os elementos do desenho são integrados de maneira a provocar uma leitura equívoca do portrait-charge. O dr. Oswaldo Cruz, por exemplo, torna-se uma cópia de Nero. Assim, por analogia, o caricaturista ressalta e faz coincidir alguns aspectos do caráter dos dois personagens.
Para explicar melhor esse procedimento, permitimo-nos utilizar a metáfora do estereoscópio. Trata-se de um instrumento óptico que dispõe de duas lentes objetivas paralelas, sobre as quais colocamos os nossos olhos, e a visão que ele proporciona nos dá a impressão de relevo ou de uma imagem em duas dimensões. O estereoscópio opera com uma imagem duplicada. A caricatura, trabalhando o traço do desenho e o conteúdo das legendas, mistura identidades que não coincidem e cria ‘uma nova perspectiva’, que proporciona ao leitor, desde que este capte simultaneamente as identidades originais, a visão de um novo personagem.
A caricatura não obedece às regras da simetria — a nudez ideal do corpo e a noção de perspectiva a partir de um único ponto de fuga —, cânones da arte italiana. A caricatura libera-se das exigências da perspectiva italiana, em que a representação de um objeto está contida na sua relação espacial com o observador: "Não é verdade que o perspectivismo afasta-nos do objeto?" (Dagognet, 1982, p. 160).
A caricatura, por sua temática e linguagem, aproxima-se da arte holandesa do século XVII. A arte flamenga oferece uma abordagem fragmentada, de justaposição: uma abordagem aditiva do espaço arquitetural. Podemos citar, como exemplo, Pieter Saenredam (1597-1665), pintor de interiores de igrejas e aluno, em Haarlem, de Frans Pietersz, o pintor da história. Essa cultura visual exige do observador um olhar capaz de varrer a obra, deslizando seu olhar sobre o agregado de pontos de vista oferecidos à percepção.

Fig. 4 — O Nero da Higiene
"- Ah! Não querem o meu regulamento alemão para a vacina obrigatória? Pois fico em armas e sou capaz de mandar incendiar esta Roma dos meus pecados!" Dudu, que assina a caricatura, é o nome de Cícero Valadares, irmão do médico e professor da Faculdade de Medicina de Salvador, Prado Valadares. Seu sucesso proveio das estórias em quadrinhos e das ilustrações que criou para os periódicos de literatura infantil, como o Tico-Tico. Foi diretor artístico da Exposição Nacional de 1922.
O Malho, 19.11.1904 (em Falcão, 1972, p. cxliv).
A astúcia do caricaturista se faz presente, ainda, quando desdobra os pontos de visibilidade. No desenho reproduzido a seguir, Oswaldo Cruz torna-se o Nero da Higiene. Do personagem histórico, o caricaturista expõe um ponto de identidade com o dr. Oswaldo Cruz: a crueldade. A cena histórica aludida no desenho é o incêndio provocado por Nero em Roma. O desenhista Cícero Valadares transpõe o personagem conhecido da história, Nero, para um contexto familiar ao leitor, provocando a sensação de estranheza e o riso.
O caricaturista ridiculariza a feição do dr. Oswaldo Cruz. O ponto-chave metamorfoseado, marca deste personagem, é o bigode. A idéia de estender o traço dos fios do bigode do retratado9 não mais pertence ao artista. É uma idéia que integra o imaginário popular, e todos os desenhistas põem-se a trabalhá-la, aperfeiçoando-a.10 As repetidas versões oferecem ao público leitor a impressão de que se trata de uma série narrativa, em que cada desenho representa um episódio, cujo encadeamento dá consistência ao personagem. A cada aparição de uma caricatura do representado, o leitor evoca os demais desenhos da série correspondente, como se estivesse assistindo ao desenvolvimento de várias cenas de um mesmo drama.
Este estudo dá ênfase à ironia dos caricaturistas, que elegem o poder do dr. Oswaldo Cruz seu alvo preferido. Na caricatura, reproduzida na Figura 4, o humor nasce do contraste entre o grande e poderoso e o pequeno. Cícero Valadares mostra o dr. Oswaldo Cruz com uma expressão desolada, que mais parece o rosto de uma criança contrariada, prestes a cair em prantos.
As sobrancelhas levantadas e convergentes, a boca em curvatura ascendente e os braços cruzados são os traços que expressam seu sofrimento. Para a representação da expressão facial, a caricatura inaugura a seguinte estratégia: o desenhista pode riscar os diferentes traços, para cima ou para baixo, sem ter de se preocupar com a existência de coerência entre eles. O que realmente importa é o resultado final. Os braços do dr. Oswaldo Cruz estão cruzados sobre os elementos que representam sua crueldade: a arma de fogo e a pluma de vacina, banhada do sangue que ainda escorre. A fraqueza expressa pelo rosto contrasta com os emblemas do poder que ele abraça. A forma da coroa exprime igualmente as séries divergentes que o traço do desenhista consegue reunir: o alto e o baixo, a força e a fraqueza. A coroa, insígnia do poder, é composta pela coroa do cavaleiro, que representa a posição mais baixa na hierarquia heráldica, de onde brotam pequenas cruzes latinas.
Este trabalho é do caricaturista Bambino, alcunha, cujo significado em italiano é criança, o que remete, de imediato, à analogia que os críticos de arte estabelecem entre a simplicidade dos traços na caricatura e a dos traços nos desenhos infantis.
J. Carlos criou o personagem ‘Guilherme Tela de Arame’, cujo nome nos envia a três referências distintas: a palavra ‘Tela’, aos mosquiteiros; ‘de Arame’, a uma gíria do português que significa dinheiro; e à maleabilidade do arame em analogia ao bigode bem penteado do dr. Oswaldo Cruz.
A justaposição desses dois personagens faz-se perceptível em três níveis. O primeiro nível diz respeito à sonoridade do nome do personagem histórico, ‘Guilherme Tell’. J. Carlos constrói um trocadilho batizando o dr. Oswaldo Cruz de Guilherme Tela, relacionando o nome ‘Tela’ à escolha de um aspecto constitutivo do personagem a ser trabalhado — uma especialidade dos caricaturistas —, que, no caso do dr. Oswaldo Cruz, é um elemento do seu rosto, o bigode, denominado de arame. Dessa forma, chegamos à composição da alcunha ‘Guilherme Tela de Arame’.
O segundo nível concerne à característica de caçador, atribuída ao representado. O caçador é o homem que dissimula sua presença até o momento em que esteja pronto para abater a caça. Ele deve confundir-se com a paisagem a sua volta. As caricaturas da época exploravam as cenas em que o dr. Oswaldo Cruz e sua brigada iam à caça dos ratos e dos mosquitos, os causadores da peste e da febre amarela, respectivamente.11 Os desenhistas provocam o riso dos leitores com a encenação do pânico face aos pequenos animais. Os caricaturistas exploram o contraste. De um lado, a pequenez dos agentes causadores das doenças e, de outro, a grande quantidade de dinheiro dispensada e o dispositivo logístico erguido para combatê-los. Um fuzil de caça traçado no desenho, mais um ponto de suspensão (sinal de pontuação indicado por três pontos) após a palavra caçador, induz o leitor à ironia intencional da mensagem.
O terceiro nível situa-se no elemento cruz, símbolo que, por sua vez, nos envia a outras três referências. De imediato, o associamos ao país de origem de Guilherme Tell: a cruz figura nas armas suíças e simboliza a Cruz Vermelha Internacional, instituição que se origina em Genebra, em 1864. Em segundo plano, traçando uma referência mais abrangente, a cruz é o emblema da saúde, que aparece também nos capacetes da brigada sanitária do dr. Oswaldo Cruz. Na caricatura (Figura 5), a cruz surge por todos os lados: no traje, no boné, no colete, no tórax e na cintura de Guilherme Tela de Arame.

Fig. 5 — Guilherme Tela de Arame
O mais extraordinário caçador de... Mosquitos. J. Carlos, Tagarela, 12.3.1904
(em Falcão, 1972, p. lxviii).

O próximo exemplo (Figura 6) é uma demonstração da ironia provocada pela justaposição dos personagens. A caricatura de Kalixto intitula-se ‘O Luís XIV da seringação’. Relendo o nome de Luís XIV, identificamos uma mot-valise produzida pela adição das palavras ‘sering(a)’ e ‘ação’.

A legenda da caricatura exprime um trocadilho de frases homônimas, em francês: ‘L’état c’est moi’ — ‘O Estado sou eu’ — e "Le tas c’est" — "Essa bagunça sou eu". "Le tas" faz alusão ao conjunto de peças de vestimentas provenientes de diferentes épocas, que compõem o traje do representado: a gola pregueada, o colarinho plissado e engomado, típico das roupas de homens e mulheres no século XVI e início do século XVII, o traje à Henrique III e, nos pés, sapatos medievais. Para completar, o Luís XIV da seringação apresenta-se sem calças.
Kalixto opera um ajustamento dos atributos do rei aos do dr. Oswaldo Cruz: no lugar do cetro, a vassoura; no da espada, a seringa. As armas da casa do dr. Oswaldo, ‘o cru’, são compostas de uma cruz latina, que tem um dos braços mais longo que o outro, relembrando as cruzes colocadas sobre as sepulturas e os avisos funerários. A cruz latina distingue-se da cruz grega, que tem os braços iguais e representa o símbolo da saúde. Em torno dos quatro braços da cruz, dois mosquitos e dois ratos estão simetricamente dispostos. Um pouco abaixo da palavra cru, vê-se a letra z, e, se lermos a palavra e a letra juntas, obteremos a palavra cruz. No Brasil, a palavra cruz é também utilizada como interjeição, expressando surpresa e aversão.

Fig 6 — Luís XIV da seringação
"Le tas c’est moi" (Essa bagunça sou eu).
Kalixto, 1904 (em Falcão, p. xii).

No exemplo da Figura 7, Raul explora o humor negro, representando o dr. Oswaldo Cruz no papel de Herodes. O desenho está assinado por Bambino, pseudônimo do caricaturista Artur Lucas, criador de tipos populares que, mais tarde, viriam a ser adaptados para o teatro, como Sô Lotero e Nhá Ofrásia. Artur Lucas chegou a ilustrar uma edição brasileira do conhecido romance policial Sherlock Holmes, surgido em 1911 e escrito por Conan Doyle, com o pseudônimo de W. Taylor.




Fig. 7 — Cena antiga
"Herodes Cruz: — É de são João Batista,
esta cabeça ?
Herodiades Higiene: — Não, é de um fedelho.
Herodes Cruz: — É pena; se fosse de João Batista
seria mais histórica."
Raul, s. d. (em Falcão, p. lx).

O caricaturista produz forte tensão a partir da identidade dos representados. Nesse desenho, a identificação do dr. Oswaldo Cruz com Herodes é feita por meio dos elementos do vestuário de ambos os personagens. A coroa de Herodes Cruz possui uma forma que nos lembra as coroas dos condes, porém, no desenho, o acabamento da coroa é composto por pequenas seringas que, nesse contexto, representam o emblema do poder. À direita, seu assistente segura uma vassoura e um boné da brigada sanitária. Vale ressaltar que a identidade dos personagens apresenta-se de forma equívoca na composição dos seus nomes: Herodes Cruz e Herodiades Higiene, que representa a morte. A tensão referente à questão da identidade é resolvida pela frase final que nos remete ao contexto intencional da caricatura; vemos, então, a crueldade do dr. Oswaldo Cruz: "Se fosse a cabeça de João Batista, seria mais histórica." O desejo de se tornar um personagem histórico exprime claramente a vaidade de Herodes Cruz. O tom apologético do discurso do dr. Oswaldo Cruz, concebido como o guia de uma missão histórica, confirma a expressão do personagem. E o leitor descobre que a cena antiga é a representação de um instante da atualidade.
A caricatura segue a linha das fisiologias, oferecendo ao público um verdadeiro catálogo político ilustrado (Preiss-Basset, 1993, p. 67). A correspondência estabelecida entre Nero e o dr. Oswaldo Cruz inspira uma série de desenhos.

A lanceta

Na Inglaterra, Lancet é o título de um periódico médico de grande reputação. Lanceta é o instrumento técnico utilizado para a imunização contra a varíola. O estudo etimológico dessa palavra nos fornece pistas dos possíveis caminhos de acesso à metáfora da vacinação. Lanceta é uma palavra de origem latina, tradução precisa de lanceola e diminutivo de lancea. Conseqüentemente, as palavras lance ou pique, em francês, designam a palavra lancea. Ora, tanto a lança quanto o pique são armas utilizadas para as lutas. Ao manipular a lanceta, perfura-se o tecido, varando a epiderme, como as armas o fazem.
O termo lanceta foi criado no século XII para denominar um pequeno instrumento de cirurgia, de lâmina lisa e afiada, utilizado para as sangrias e pequenas incisões. A lanceta tem a forma de um canivete12 e sua lâmina pontiaguda serve tanto para perfurar a vesícula e recolher a linfa (líquido extraído da pústula vacinal) quanto para introduzi-la no tecido segundo as técnicas da variolização ou de vacinação.13 A partir do século XVIII, a lanceta consagra-se como o instrumento de imunização contra a varíola, vindo a ser, posteriormente, substituída pela pluma de vacina.
Pesquisando o repertório infantil de canções brasileiras do século XIX, encontramos um exemplo, ainda hoje cantado por nossas crianças, dessa força simbólica da lanceta na sua relação com a varíola: "Onde mora a condessa, língua de França, dor de lanceta?"
Em 1904, a palavra lanceta aparece nas legendas dos desenhos humorísticos dos cariocas, designando a imagem da pluma de vacina. Os caricaturistas aproveitam-se de um dos principais preceitos da caricatura — o de prolongamento do traço — para metamorfosear a pluma em lança. Segundo Melot (1975), o prazer da caricatura — técnica de degradação — ganha força pela liberação de uma agressão.
Um bom exemplo é a caricatura Vacina obrigatória, publicada no jornal O Malho em 13 de abril de 1904 e reproduzida em Falcão (op. cit., p. lxxiii).

Fig. 8 — Votada a lei, teremos vacina a muque. As lancetas ofensivas ganharão um cabo, para servirem de armas defensivas. A bolacha e a linfa andarão a três por dois. Quem resistir, verá estrelas ao meio-dia, excelentes astrônomos os cafajestes de esmeralda..

Retomando o contexto deste artigo, perguntamo-nos: de que maneira a historiografia pode fossilizar a caricatura? Nossa hipótese é que a historiografia, ao reproduzir o sentido do acontecimento da vacinação antivariólica, tal como é apresentado por seus defensores, perde a tensão que engendra o humor. Se o caricaturista, de um lado, multiplica os pontos de vista do leitor, por outro, ele assume um olhar relativista. Diferentemente, os médicos preocupam-se tão-somente em edificar o monumento da medicina científica; fixam a imagem de uma origem que desemboca na medicina atual.
Vejamos como a classe médica, que procura legitimar uma concepção geral de saúde e doença, comenta o julgamento que subjaz ao fenômeno cômico.

A caricatura sem humor

No relatório inglês sobre a vacinação antivariólica, o dr. John Simon — médico inglês que foi um dos fundadores da Sociedade Epidemiológica e primeiro oficial da Saúde da cidade de Londres, participante também da Comissão Real de Vacinação em 1889-90 — faz alguns comentários sobre o pano de fundo da caricatura de James Gillray.14 Cinqüenta e quatro anos depois da edição de A vacina ou os maravilhosos efeitos da nova inoculação esta caricatura inspira o seguinte relato:

E, para aqueles que ignoram a experiência de Gloucestershire, nada de bom poderia surgir de tal fonte a não ser uma estranha suposição. O medo era maior do que a esperança. O que se poderia esperar de um ‘humor bestial’, a não ser o risco de novas e terríveis doenças? Quem poderia supor os limites de suas ‘conseqüências’, físicas ou morais? Que segurança temos contra chifres nascendo nos vacinados? (Comitê Geral de Saúde, 1857, p. xvii)

E John Simon sentencia: "os que não se remetem à origem, quer dizer, ao espetacular lançamento da vacinação antivariólica feito por Jenner, não têm direito à palavra. Aqueles que não escutam a história são pessoas degradadas, cegas pelas superstições."


Fig. 9 — Caricatura de James Gillray.


Alguns efeitos da caricatura

Em nossa tese (Lopes, 1997, cap. IV), interpretamos o trabalho desenvolvido pelos antivacinadores como um movimento importante de formação da opinião pública para a qual a ilustração exerce um papel fundamental.
Os médicos expressam desconforto quando abordam as caricaturas sobre a vacinação. O Royal College of Physicians (Colégio Real de Medicina) identifica na circulação das caricaturas a causa da dificuldade para a universalização da prática da vacina:

Uma outra causa é a caricatura contra a vacinação, na qual esta é apresentada como fonte causadora de uma variedade de novas e terríveis doenças, de aparência monstruosa e aterrorizante.

Algumas dessas representações foram impressas de forma a alarmar os pais e desencadear a apreensão das pessoas desinformadas. As publicações com estas representações tiveram grande circulação e, embora tenham surgido da total ignorância ou de concepções deliberadamente inexatas, contribuíram para aumentar a desconfiança de muitas pessoas em relação ao processo de vacinação, especialmente entre as classes menos favorecidas. Entretanto, não se pode atribuir a isso nenhum efeito permanente em relação ao retardamento do progresso da vacinação, pois, à medida que o público analisá-la friamente e sem surpresa, o medo cairá no esquecimento (Câmara dos Comuns, 8.7.1807, op. cit., pp. 6-9)

Os médicos ocupam-se em desmentir o conteúdo da caricatura ao mesmo tempo que desqualificam seus leitores. Como aceitar que essa linguagem seja mais eficiente junto ao público do que a dos próprios médicos?

Notas e Bibliografia

Revista FIOCRUZ