Figura presente no imaginário francês desde a época das cruzadas, o soberano que mais tarde foi elevado à condição de santo é o retrato de um cavaleiro valente e de um cruzado que não conheceu limites em sua missão. Mas o homem por trás do mito terá sido como ditam os relatos?
Por James Andrade
Sentado sob um frondoso carvalho no bosque de Vincennes, despojado de ricas vestimentas, sem ter ao seu redor uma ostentosa corte, falando diretamente ao povo, distribuindo justiça a qualquer solicitante, de forma tão imparcial e serena que ninguém duvida de que a autoridade que manifesta não emana deste mundo; tal poder só pode ter origem em Deus.Por James Andrade
Foi assim, como no singelo quadro pintado pelo biógrafo Jehans de Joinville, que a Cristandade medieval concebeu a figura emblemática do rei Luís IX da França. Um monarca que concretizou em si todo o ideário do que seria um soberano perfeito, de tão ilibada conduta que ainda em vida despertou, em meio a muitos, a certeza de que o Céu seria sua justa paga.
Cristão piedoso. Cavaleiro valente. Homem viril. Rei justo. Cruzado. Santo. Qualidades encontradas naquele que se tornou, no imaginário medieval, o tão procurado modelo do fiel servo de Deus. Não que tenha sido o único monarca a se tornar santo, afinal a Idade Média produziu vários outros. A devoção a santos foi característica, principalmente, no período entre os séculos XII e XIII que, com o surgimento das corporações de ofício e seus padroeiros, aumentou a demanda por canonizações caseiras. O que diferenciou São Luís é que o mito ao redor de sua pessoa começou a ser construído ainda durante a vigência do seu reinado, continuou após sua morte e se cristalizou com sua canonização.
Se houveram, nas dinastias seguintes de reis franceses (os "reis taumaturgos"), aqueles que podiam, com a simples imposição das mãos curar a alporca (escrófulas)(1) como Carlos V, ou aqueles de quem a própria sociedade emanava, como Luís XIV, o rei Sol, ou ainda a idéia de "reis imortais" que se perpetuavam na conservação de suas relíquias, todos estes aspectos da realeza francesa têm parte de sua justificativa na santidade de Luíz IX.
O mito cristalino de um "Santo Rei" atravessou os períodos conhecidos como Idade Média Central e Baixa Idade Média, e invadiu a Idade Moderna, influenciando, de forma inegável, toda a longa linhagem de reis franceses que o sucedeu, alcançando ainda nossos dias como o "exemplum" de perfeição do homem medieval. Porém, atrás do mito, existiu um homem de carne, osso e sangue que não conseguiu transcender os limites da própria humanidade, cometeu erros, injustiças e pecados.
Dos muitos aspectos relevantes presentes no estudo da vida de São Luís, um merece destaque, o de que a Perfeição é um conceito datado, fruto de sua época e, aos olhos do Tempo, imperfeito.
Atrás do mito, existiu um homem de carne, osso e sangue que não conseguiu transcender os limites da própria humanidade, cometeu erros, injustiças e pecados
História da França
A França atual origina-se no Reino Franco, que remonta às invasões bárbaras do séc. V, e as lutas contra Átila, o Huno (chamado de o Flagelo de Deus). Mesmo que o título Rei Francês só possa efetivamente ser usado a partir do Tratado de Verdum (843), alguns antecedentes são necessários.
O Reino Franco tem início com Clóvis I (466-511), que unificou o povo franco e em 496 converteu-se, juntamente com seu exército, ao Cristianismo. Sua conversão se deu sob a autoridade do bispo de Reims, chamado Rémy (440-533) (São Remígio) e, de acordo com a Igreja, foi devido à intervenção da esposa de Clóvis, Clotilde (474-545) (Santa Clotilde). Clóvis era filho de Childerico (437-482) e neto de Meroveu (420-457) (que lutou contra os hunos em 451, na Batalha dos Campos Catalaunos - Châlons-en-Champagne), daí sua dinastia ser chamada de Merovíngia.
Com o passar do tempo, os reis merovíngeos, pouco a pouco, vão delegando poderes cada vez maiores para os chamados Major Domus (Prefeito do Palácio) em detrimento do próprio poder pessoal. E eles, que a principio eram chamados de "Reis Cabeludos", acabaram conhecidos como roi fait néant (reis que não fazem nada).
Já em 687 um Major Domus chamado Pepino de Herstal concentrava o verdadeiro poder real em suas mãos, exercia o poder de um rei, mas não o era. Seu filho Carlos Martel (O Martelo) (688-741), que em 732 barrou o avanço mouro para além da Península Ibérica na Batalha de Poitiers, continuou sendo um Major Domus de prestígio. Em 751, um dos filhos de Carlos Martel tirou do poder o rei Childerico III (714-754) e sagrou-se rei com o nome de Pepino III (714-768), o breve (o epíteto "breve" queria dizer que era capaz de, em pouquíssimo tempo, cortar fora a cabeça de um touro).
A coroação foi feita com total aval da Igreja; (2) o Papa Estevão II (Santo Estevão II) pessoalmente ungiu o novo rei. Esta aproximação da Igreja de Roma com o Reino Franco foi significativa, pois consolidou um movimento que já tinha se iniciado com a conversão de Clóvis. De Pepino III a Igreja de Roma recebeu os territórios centrais da região onde hoje é a Itália (os Estados Pontifícios), tomados dos Lombardos.
Com a morte de Pepino, o breve, em 768, o reino foi dividido entre seus dois filhos Carlos Magno (747-814) e Carlomano. Este morreu em 771, e seu irmão Carlos Magno, unificou o território. No Natal do ano 800, na Basílica de São Pedro, Carlos Magno foi coroado Imperador do Sacro Império Romano pelo Papa Leão III (São Leão III).
Carlos Magno(3) foi sucedido por seu filho Luís I, o piedoso (778-840). O primeiro de uma longa linhagem que terá 17 reis com o mesmo nome. Um nome que já surge fortemente envolvido com a Igreja.
Não que os outros reis tivessem pouco envolvimento, no caso de Luís I, com base nas críticas que recebeu à época, foi excessivo, sendo acusado até de ter entregue a administração nas mãos dos representantes eclesiásticos, praticamente um roi fait néant, que em 840 abdicou (ou foi forçado a) do trono, passando a morar em um convento, onde faleceu.
Com sua abdicação, seus três filhos, Carlos, o calvo; Luís, o germânico e Lotário iniciaram uma acirrada luta pelo poder que durou até 843, quando dividiram entre si o reino. A partilha foi ratificada pela Igreja no Tratado de Verdun.
Grosso modo, o território que coube a Carlos, o calvo (823-877), tornou-se a França que conhecemos e, até a Revolução Francesa, foi governada por 4 dinastias:
1) A Dinastia Carolíngia (843-987) que teve inicio com Carlos II, o calvo, e terminou com Luís V, o indolente, que reinou por menos de um ano e não deixou herdeiros.
2) A Dinastia Capetiana, ou Capetíngea (987-1328) que teve inicio com Hugo I, capeto; e terminou com Carlos IV, o belo. Ao assumir o trono, Hugo era o Abade e Conde de Orleães, um dos nobres mais ricos da região. A palavra "capeto" refere-se à capa usada pelos abades, daí o nome da dinastia.
3) A Dinastia de Valois (1328-1589), que teve inicio com Felipe VI, o afortunado, e terminou com Henrique III.
4) A Dinastia de Bourbon (1589-1792) que teve inicio com Henrique IV, o grande, e terminou com Luís XVII. Este último foi aprisionado pelos revoltosos da Revolução Francesa e morreu na prisão. Foi um rei de jure, não reinou de fato. Luís IX foi o nono da dinastia capetíngea e o vigésimo rei desde Luís I.
Nasce um príncipe
Aquele que seria, nas palavras do medievalista Le Goff, "O mais célebre dos santos leigos do século XIII" (4) , nasceu no dia de São Marcos, 25 de abril, no ano de 1214 no castelo de Poissy, distante cerca de 28 km de Paris, num dia de festas e procissões.
Retrato de Luís IX pintado por El Greco. Muitos oferecem uma imagem estilizada do soberano que está longe da verdadeira.
Seus pais foram o rei Luís VIII (1187-1226), o Leão, e a rainha Branca de Castela (1188-1252). Ele, filho do rei Filipe II, Augusto (1165-1223) e de Isabela de Hainaut. Ela, filha de Afonso VIII de Castela e Leonor Plantageneta. Ao se casaram, ambos tinham 12 anos de idade, e tiveram quatorze filhos.
Luís IX não o foi o primeiro filho, mas sim o sexto. Na sua frente na linha sucessória ao trono da França estava seu irmão mais velho Filipe (1209-1218), o terceiro rebento do casal. Os anteriores, Branca, a primogênita morreu com apenas um ano de vida e Inês nasceu morta. E antes de Luís IX, o casal real ainda teve João e Afonso, gêmeos natimortos.
O futuro, previamente traçado pelo nascimento, o levaria, cedo ou tarde, a integrar o corpo administrativo da Igreja, pois era comum à época a preparação dos não-primogênitos para o clero. Porém, quis o destino, ou a Divina Providência, como muitos veriam depois, que sua vida mudasse. Com apenas nove anos de vida e já comprometido, seu irmão mais velho faleceu, Luís tinha então quatro anos, e seria rei. Para tanto sua educação foi esmerada e, por certo, primou pela ênfase religiosa.
PARA A NOBREZA, A FRANCESA EM ESPECIAL, DEFENDER A FÉ SIGNIFICAVA DEFENDER A SI PRÓPRIA, UMA VEZ QUE ACREDITAVAM QUE O PODER QUE EXERCIAM PROVINHA DIRETAMENTE DE DEUS
Em um mundo como o medieval, em que tudo girou em torno do pensamento Cristão, tanto na sua forma, "institucionalizada" (Cristianismo) quanto na sua forma mais "laica" (Cristandade), é necessário que se atente para o peso que tal educação "enfática" exerceu sobre o infante Luís.
O futuro rei da França nasceu praticamente junto com um dos mais importantes concílios realizados pela Igreja Medieval. O Concílio Latrão IV, que foi convocado pelo Papa Inocêncio III, em uma bula de 1213 e se reuniu em 11 de novembro de 1215. Um claro esforço de se produzir uma reforma dentro da Igreja. Do muito que se formatou (ou reformatou) da vida religiosa dos cristãos, tanto laicos quanto seculares, tentando deixá-la menos superficial, destacamos neste concílio a decisão de combater, de maneira efetiva (leia-se violenta), a heresia cátara. Há nele indícios do que seria a Inquisição (legalizada pelo Papa Gregório IX na bula Excommunicamus, de 1231). O concílio também legislou sobre os judeus, que ficaram proibidos de se casaram com não-judeus, impedidos de assumir cargos públicos e suas roupas deviam trazer elementos que os identificassem.
Os Cátaros, também chamados de "homens azuis", eram adeptos de uma seita religiosa que se caracterizava por ser maniqueísta (dual), propondo a existência de dois deuses, um "Bom", outro "Mal". Mesmo se identificando como cristãos, foram declarados heréticos e violentamente perseguidos. Esta seita se desenvolveu com mais força no sul da atual França, em uma região chamada Albi, daí os cátaros serem conhecidos também por albigenses.
A questão é relevante para podermos tangenciar, mesmo que sutilmente, o imaginário da época, relacionando a importância da religião com a própria questão da vida social da época. A heresia ("escolha", em grego) não representava somente a negação de uma crença, também a negação da própria sociedade, e da rígida estrutura que a apoiava.
Em um mundo onde a distinção proposta por Maquiavel (1469-1527) de uma "ética política" desvinculada de uma "ética religiosa" ainda não existia, a política era concebida conforme nos diz Jean Bodin (1530-1596):
"(...) Nada havendo de maior sobre a terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e sendo por Ele estabelecidos como seus representantes..."
Portanto para a nobreza, a francesa em especial, defender a Fé significava defender a si própria, uma vez que acreditavam que o poder que exerciam provinha diretamente de Deus.
Seu pai, Luís VIII, ganhou o epíteto de "Leão" na luta contra os cátaros albigenses, um exemplo de defensor da Fé e militar valoroso. Sua mãe, Branca de Castela, repetia a quem quisesse ouvir que preferia ver o filho morto a vê-lo pecador. Foi neste ambiente, onde a religião se confundia com a própria vida, que o príncipe infante cresceu, esperando o momento em que se tornaria rei.
Salvo sua morte, a coroação era uma certeza, já que os reis da dinastia capetíngea tinham como costume anunciar os sucessores ainda em vida (prática instituída por Hugo I, capeto e seguida por praticamente toda dinastia).
O momento chegou no dia oito de novembro de 1226, com a morte de Luís VIII, vitimado por uma disenteria. De acordo com a vontade do antigo rei, expressa em testamento, a rainha Branca de Castela assumiu o trono como Regente.
De personalidade forte, defendeu com tenacidade os interesses do príncipe junto aos senhores feudais que se opunham à sucessão e, mesmo sem a presença da maioria destes, fez sagrar seu filho Luís IX, rei de França, na catedral de Reims. Conforme a tradição, a sagração foi realizada pelo bispo de Soissons, Jacques de Bazoches, em 30 de novembro de 1226.
Luís tinha então pouco mais de 12 anos de idade.
Nasce um Rei
O rei ideal Totalmente voltado para seu papel como soberano, Luís IX assistia sempre às missas, nunca deixou de ler a bíblia e não sorria às sextas-feiras, como retrata esta estátua do museu Nacional de Cartago, na Tunísia
"Por sua estatura ele ultrapassava todo mundo dos ombros para cima, a beleza de seu corpo tinha a harmonia de suas proporções, seu rosto plácido e sereno exteriormente tinha qualquer coisa de angélico, seu olhos de pomba emitiam raios graciosos, sua face era simultaneamente branca e brilhante..." Jacques Le Goff.
A influência exercida por sua mãe, Branca de Castela, é muito relevante na vida de Luís IX. Foi ela, como Regente, que sufocou as revoltas encabeçadas por senhores feudais descontentes, criando uma certa unidade e fortalecendo o trono francês, o que permitiu que concluísse, de forma vitoriosa, a sangrenta luta contra os cátaros (Cruzada Albigense 1209-1229), garantindo o domínio da região de Albi, bem como lutou contra as pretensões inglesas em território francês. Sempre ao lado do filho, dividiu com este a administração do reino até que veio a falecer, em 1252. Nunca descuidando de sua formação como rei e como religioso, porém não permitiu que nenhuma faceta se sobrepujasse a outra, caso contrário, é certo que Luís IX seguiria o exemplo do primeiro Luís, indo morar em um convento.
Dito desta forma pode parecer que Luís IX era um fraco, conduzido pela mãe. Longe disso. Era um homem de convicções sólidas e Fé inquestionável. De hábitos simples e rígida disciplina religiosa que beirava o asceticismo monástico.
Usava cilício(5); comia frugalmente; jejuava com freqüência; só se vestia com pompa quando a ocasião exigia; assistia missas sempre que possível; nunca deixou de ler as Sagradas Escrituras; confessava-se costumeiramente e exigia ser disciplinado com açoites. E não sorria às sextas-feiras. Um monge, que também era um rei.
Influenciado só na questão de aceitar tanto a vida religiosa quanto os encargos reais como um todo regido pela Vontade Divina. Obrigações das quais nunca se omitiu. Lutou contra os ingleses quando tinha apenas 15 anos, forçando sua retirada do território francês, ocasião em que demonstrou grande bravura.
No dia do seu 20º aniversário, 25 de abril de 1234, atingiu a maioridade. Encerrava assim a Regência de sua mãe, que continuaria a ocupar uma sólida posição de poder. Casou-se na Catedral de Sens, em 27 de maio do mesmo ano com a jovem Margarida da Provença, na ocasião com 14 anos. A primogênita do Conde de Provença, Raimundo de Béranger IV e Beatriz de Sabóia.
Foi seu único matrimônio, ao qual permaneceu fiel por toda a vida. Desta união nasceram 11 filhos. Dos filhos e da esposa cobrava a mesma austeridade com a qual vivia, ouvia-lhes as orações, obrigava-os a assistirem às missas e incutia-lhes a necessidade de mortificação, chegando até mesmo a presenteá-los com cilícios.
A conduta estreita nos princípios da Sagrada Escritura, com sua visão pouco favorável às mulheres, foram uma constante na sua vida, porém nunca hesitou pegar em armas para defender sua posição de poder, tanto que armou um grande exército para combater o rei inglês Henrique III (1207-1272) que havia invadido o território francês, sendo expulso em 1242.
Internamente promoveu importantes reformas, deixando claro que foi um grande legislador e administrador sagaz. Assim que subiu ao trono, pôs em prática uma iniciativa administrativa dividida em duas partes. Primeiro, incumbiu representantes de fazerem um levantamento dos problemas mais significativos do reino, que nem sempre eram os mais imediatos, bem como apontar sugestões para a solução de tais problemas. Num segundo momento formou comissões para que implementassem as soluções propostas.
No mesmo período, editou normas que esclareciam os deveres e as responsabilidades dos funcionários governamentais. Consciencioso de sua condição de "representante de Deus", não mediu esforços para estender a todos a tão almejada salvação da alma. A relação ambígua entre monge e rei foi a tônica do seu reinado. Como não podia deixar de ser, conviveram decretos claramente à frente de seu tempo, bem como outros de exacerbada intolerância. Todos, porém, tinham como meta a Paz e a Justiça, obstinadamente buscadas por Luís IX, mesmo que o preço de ambas tivesse que ser pago em sangue.
A prostituição e o jogo foram proibidos. Juramentos incrédulos eram considerados crimes gravíssimos. E a blasfêmia severamente punida. Penas rígidas, que envolviam enforcamentos e condenações à fogueira. Sentenciou à morte réus condenados pela Inquisição. Atendendo ao que foi estipulado no Concílio Latrão IV, obrigou os judeus a usarem uma estrela amarela costurada na roupa.
Um decreto de 1260 proibiu a prática do "duelo judiciário" ficando a cargo de juizes a solução da disputa, que podia, após passar pelos trâmites, chegar a uma audiência com o próprio rei. Dos juizes exigiu juramento de idoneidade, proibindo que jogassem e que bebessem. Indicou juízes que examinavam a conduta de funcionários do reino, punindo as faltas severamente. Estabeleceu normas para o serviço de correio, que se tornou permanente.
Do ponto de vista econômico foi decididamente inovador: em agosto de 1266, introduziu um novo sistema monetário, baseado na moeda de prata de Tours (gros tournois), em substituição à antiga moeda carolíngia, extremamente desvalorizada, e também cunhou moedas de ouro, chamadas "escudo".
A estabilidade interna, com os nobres sob controle, e externa, com a ameaça inglesa contida, junto com as inovações administrativas, bem como a sensação de uma justiça rápida e eficaz, criaram condições favoráveis para que, durante o reinado de Luís IX, o território francês experimentasse um surto de crescimento econômico. Em paralelo, também houve um fomento da vida cultural.
Paris se encheu de escolas, tornando-se um pólo de estudantes. Neste período, Roberto de Sorbon, capelão real, inaugurou o Colégio Sorbonne (hoje uma prestigiada universidade). Do secretariado do rei saiu um militar francês que se tornou o papa Clemente IV. Também fazia parte do quadro administrativo Étienne Boileau, responsável pela organização das "Corporações de Ofício" de Paris.
Sempre preocupado com a situação dos menos afortunados, criou em 1260 o Hospício de Quinze-Vingts e vários outros Hôtel-Dieu (6).
Como administrador Luís IX tinha a visão voltada para o futuro, porém seu coração pertencia à religião.
A flor da realeza
Esta moeda do reinado de São Luís mostra a flor-de-lís, uma figura heraldica ligada a monarquia francesa. Assim como a águia napoleônica, permaneceu como símbolo do país.
Nasce um Cruzado
Relicário de Luís IX, do final do século XIII, no Museu da Basílica de São Domingos em Bologna, Itália
Uma das principais características da cristandade medieval foi a veneração de Relíquias. O termo vem do latim reliquia e refere-se, primordialmente, à parte do corpo de um santo, ou de qualquer objeto que a ele pertenceu ou mesmo que tenha tocado em seu cadáver. Houve, no período medieval, uma verdadeira proliferação destes objetos, sempre relacionados com o sagrado e tidos como capazes de produzir milagres. Sua importância foi tamanha que, ao se projetar a construção de uma capela ou convento, pensava-se também na relíquia que tal construção abrigaria.
Relíquias como cabeças das 11 mil virgens de santa Úrsula, massacradas pelos hunos em Colônia (tanto os teutônicos quanto os templários possuíam uma destas cabeças), o braço de são Bartolomeu ou uma das mãos (a direita) de são João Batista podem parecer macabras quando analisadas sob a ótica contemporânea, porém faziam parte do imaginário medieval. E a exposição de relíquias sempre atraia multidões.
Luís IX não foi indiferente a este tipo de veneração. Quando em 1238 Balduíno de Courtenay, basileus de Constantinopla, usou a Coroa de Espinhos(7) como garantia de um empréstimo junto aos bancos de Veneza, o rei francês se apressou em resgatar a dívida e levar a relíquia para a França. Para guardá-la mandou edificar, no centro de paris, a igreja relicário d'A Santa Capela(8), uma pequena jóia da arquitetura gótica que, curiosamente, custou menos de um terço do valor pago pela relíquia. O rei era muito consciencioso nos gastos consigo mesmo e com a família e a vultuosa quantia gasta na Coroa de Espinhos ilustra bem aquilo que sempre dizia: "Para Deus, tudo".
Com a chegada da coroa, ficou proibido, na corte, o uso de quaisquer objetos na cabeça às sextas-feiras, em respeito ao dia em que Cristo foi coroado com os espinhos. No mês de agosto de 1244, Jerusalém, que havia sido duramente conquistada em 1241 pelos esforços de Frederico II (Paz de Áscalon), foi tomada pelos turcos que, em outubro do mesmo ano, massacraram um exército composto de cavaleiros templários, hospitalários e teutônicos em La Forbie.
Sensível como era com as coisas da religião, estes eventos tocaram fundo naquele que era visto por todos como um "santo rei". Em dezembro de 1244, aparentemente contra a vontade de toda a corte e antecipando-se ao Papa Inocêncio IV, Luís IX anunciou que retomaria Jerusalém do controle dos turcos. Estava iniciada a Sétima Cruzada.
O REI ERA MUITO CONSCIENCIOSO NOS GASTOS CONSIGO MESMO E COM A FAMÍLIA E A VULTUOSA QUANTIA GASTA NA COROA DE ESPINHOS ILUSTRA BEM AQUILO QUE SEMPRE DIZIA: "PARA DEUS, TUDO"
Os motivos sugeridos para esta tomada de decisão são muitos e insondáveis, passam por uma promessa feita para a cura de uma enfermidade que quase o vitimou (provavelmente a mesma que matou seu pai, a disenteria). E que pese a figura exemplar de seu avô Filipe II, herói da Batalha de Bouvines, que recebeu a alcunha de "Augusto" (venerável) e lutou ao lado do inglês Ricardo Coração de Leão(9) na tomada de São João d'Acre, na Terceira Cruzada.
Retomar Jerusalém seria uma maneira de render homenagem ao ilustre antepassado, que chegou a conhecer; quando Filipe II morreu (14 de julho de 1223) Luís tinha quase nove anos. Também era uma oportunidade ímpar para enterrar de vez o fracasso de Luís VII na Segunda Cruzada, que abandonou o cerco à cidade de Damasco sem nada conseguir, manchando em definitivo a reputação de "guerreiros invencíveis", obtida pelos francos.
Após a proclamação da cruzada no Concílio de Lyon (1245) Luís IX, à frente de um exército de mais de 30 mil soldados e cem embarcações, partiu, em 25 de agosto de 1248, para a Sétima Cruzada.
Apesar do exército razoável que montou, o efetivo podia ter sido bem maior, aquele que teria sido seu maior aliado foi impedido de acompanhá-lo, pois no mesmo concílio o Papa Inocêncio IV excomungou (novamente) o Imperador Frederico II do Sacro Império Romano Germânico, ato não aprovado (mas também não questionado) pelo rei francês, mostrando que os interesses de Luís IX e os da Igreja Romana nem sempre caminharam na mesma direção.
A CRUZADA DEIXOU CLARO QUE O REI FRANCÊS NÃO PLANEJAVA SUAS CAMPANHAS MILITARES COM O MESMO BRILHANTISMO DEMONSTRADO NA ADMINISTRAÇÃO DO REINO.
Sua estratégia consistia em conquistar fortificações no Egito e dali iniciar a retomada da Terra Santa. Aportou na Ilha de Chipre, onde foi impedido de continuar devido ao inverno na região. Na ilha, boa parte do exército cruzado foi contaminado pela Peste, um em cada dez soldados morreu. Retomando a cruzada conquistou, em junho de 1249, a cidade portuária de Damiette, no Egito.
Em novembro partiu em direção ao Cairo, no sul. Na Batalha de Mansurá, em fevereiro de 1250, conseguiu uma vitória sofrida, perdendo boa parte do seu já combalido exército. Acossado pela Peste, que continuou a provocar pesadas baixas, e surpreendido pelas cheias do rio Nilo, tentou retornar a Damiette, mas não conseguiu. Em abril do mesmo ano foi preso juntamente com boa parte da sua corte pelos turcos mamelucos (muçulmanos sejúlcidas) do Egito. A cruzada deixou claro que o rei francês não planejava suas campanhas militares com o mesmo brilhantismo demonstrado na administração do reino.
Luís IX e sua corte foram libertados após pagamento de pesado resgate, bem como a restituição da cidade de Damiette aos muçulmanos, porém não retornou à Europa, permanecendo no Oriente, onde, valendo-se de acordos e diplomacia, pôde fortalecer muitas posições cristãs nas regiões da Síria e Palestina. Neste período nasceu seu sexto filho, João Tristão ou João de Damiette (1250-1270). Durante todo esse tempo, mais de cinco anos, sua mãe reinou em seu lugar. Branca de Castela morreu no dia 27 de novembro de 1252, no castelo de Melun.
No dia 24 de abril de 1254, Luís IX retornou à sua terra natal. E nunca mais foi o mesmo. A perda daquela que fora uma presença tão constante em sua vida, a ponto de ter sido conhecido como o "rei-menino", gerou um vazio que jamais foi preenchido, e que foi agravado depois com a morte de seu terceiro filho e primogênito varão, Luís (1244-1260).
O período que passou entre os muçulmanos lhe rendeu, junto à Cristandade Ocidental, a fama (muitas vezes mítica) de sábio mediador e juiz justíssimo, com uma aura de justiça que emanava de sua pessoa que só fez crescer, fazendo dele uma espécie de "Juiz Universal", verdadeiro agente da "Vontade Divina", para quem os monarcas se voltavam em busca de soluções diplomáticas para os mais diversos casos envolvendo políticas internacionais. Em muitos casos Luís IX teve mais autoridade (moral) do que os Papas. Foi revestido desta autoridade que convocou, em 1258, Henrique III com o intuito de conseguir uma paz duradoura entre os dois reinos.
A tão almejada paz foi alcançada através de intensas negociações que envolveram concessões e trocas de territórios, bem como acordos de sucessão. É comum, ao se avaliar os pormenores do acordo, presumir que houve ganho substantivo pelo lado inglês, principalmente se a análise tiver um viés econômico, porém, no mundo medieval, a medida de importância era baseada em outros parâmetros. Concluído o acordo, o rei inglês Henrique III, despojado de seus emblemas reais, prestou juramento de vassalagem a Luís IX. À época, foi uma retumbante vitória da coroa francesa, que se tornou suserana da coroa inglesa.
Convém lembrar que o rei inglês havia se tornado seu cunhado ao se casar com Leonor, irmã mais nova de sua esposa Margarida. Este pacto só foi quebrado em meio às querelas por território e sucessão que levaram à Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que durou mais de cem anos. A relativa calma interna permitiu que o rei francês voltasse novamente seus olhos para aquela que almejava livre do jugo muçulmano, a Terra Santa.
A situação no Oriente, ao contrário, não estava nada calma. Templários hostilizavam Hospitalários, que se indispunham contra Teutônicos, que não concordavam com ninguém. As ordens militares-religiosas estavam desunidas. Os muçulmanos, que, salvo a época de Saladino (1138-1193), nunca foram muito unidos, agora lutavam contra um terrível inimigo, as hordas mongóis de Gêngis Khan. Na África os muçulmanos sejúlcidas, unidos em torno do sultão Baibars e sua dinastia, avançavam sobre as cidades cristãs, expulsando os latinos da região. O principado de Antioquia foi conquistado em 1268.Foi neste panorama que Luís IX lançou a Oitava Cruzada. O ano era 1270.
Quando regressou dos estados latinos do Oriente da primeira vez, o rei francês deixou para trás um contingente de soldados, a soldo pagos diretamente pelo tesouro real, para auxiliar na defesa destas posições cristãs, as mesmas que agora se encontravam ameaçadas. O envio de tropas era, portanto, quase inevitável, ainda mais com a pressão exercita pelo rei da Sicília para que Luís IX o ajudasse na consolidação de seu poder na região.
Em julho as tropas deixaram o território francês e logo foram assoladas por uma tempestade, e mesmo assim continuaram. A intenção era chegar ao Egito, porém, devido à insistência de Carlos d'Anjou (1227-1285), rei de Nápolis e irmão de Luís IX, que havia, contra a vontade de seu irmão, aceitado a coroa da Sicília, a frota aportou em Túnis, na Tunísia. Ali encontraram, novamente, outro complicador da situação do Oriente: a Peste.
Durante o curto cerco à cidade o exército cruzado foi varrido pela doença. O rei também caiu doente e viu morrer seu filho, João de Damiette, em 3 de agosto. No dia 25 de agosto de 1270 morreu Luís IX de França, quatro meses após completar 56 anos.
Uma brevíssima cronologia das Cruzadas...
1095 (26 de novembro) O Papa Urbano II lança o seu apelo à Cruzada no Concílio de Clermont.
1096 (abril) Cruzada Popular de Pedro, o Eremita, e Gautier-sans-Avoir. (outubro) Tropas do sultão de Nicéia, Kilij Arslan, aniquilam os cruzados na região da Anatólia.
1096 - 1099 (tomada de Jerusalém) Primeira Cruzada ou Cruzada dos Barões. Henrique IV, Imperador germânico e Filipe I, rei franco, por estarem excomungados, não participam da Cruzada.
1145 (14 de dezembro) O Papa Eugênio III convoca uma nova Cruzada.
1147 - 1149 Segunda Cruzada. Rei Luís VII de França e Conrado III, Imperador germânico.
1188 - O Papa Gregório VIII manifesta o desejo de uma Cruzada.
1189 - 1192 Terceira Cruzada. Frederico Barba-Roxa, imperador germânico, Filipe Augusto de França, e Ricardo Coração de Leão, rei inglês.
1198 - O Papa Inocêncio III proclama a Quarta Cruzada.
1202 - 1204 Quarta Cruzada. Não contou com a participação de nenhum rei, somente barões.
1212 - Cruzada das Crianças.
1215 (11 de novembro) Inocêncio III volta a pedir uma cruzada no sermão de inauguração do Concílio Latrão IV.
1217 - 1222 Quinta Cruzada. João de Brienne, rei de Jerusalém e André II, rei da Húngria.
1227 - 1229 Sexta Cruzada. Empreendida pelo Imperador Frederico II do Sacro Império Romano Germânico em meio à acirrada disputa com o Papa Gregório IX, que o havia excomungado em 28 de setembro de 1227.
1245 (Julho) O Papa Inocêncio IV proclama uma cruzada no Concílio de Lyon.
1248 - 1250 Sétima Cruzada. Luís IX da França.
1270 Oitava Cruzada. Luís IX de França e Ricardo, rei inglês.
1274 O Papa Gregório X tenta organizar uma nova cruzada no Concílio de Lyon II, mas sua morte, em 1276, decretou o fim
Nasce um Santo
"(...) tenha, filho meu, um coração condolente para com os necessitados, os infelizes e os aflitos, auxilia-os o quanto puderes (...) empenha-te para que tua família e teus súditos sejam protegidos pela Justiça e pela Paz..."
Luís IX em carta testamento a seu filho e sucessor Filipe III de França, o Bravo.
Do muito que se fala sobre a santidade de Luís IX ter sido um evento ímpar, no que tange a outros monarcas santificados. Teria sido devido ao tratamento dado ao corpo do rei imediatamente após sua morte. Era santo em vida; na morte, foi com naturalidade que se preparou, antecipadamente, os elementos de sua veneração. Começou ainda na Tunísia, com a produção de suas relíquias.
Suas entranhas foram retiradas e enviadas para seu irmão Carlos d'Anjou, que as expôs para visitação na Abadia de Montréal, na Sicília. Seus ossos foram separados da carne por fervura em um tanque. Suas carnes, meras e desprezíveis, ficaram na África. Sua ossada, em cortejo, foi levada por seu quarto filho e sucessor, Filipe (1245-1285), para Paris. Por onde passou, o povo se ajoelhou e rezou, muitos seguiram em procissão até a Catedral de Notre-Dame, onde foram prestadas homenagens solenes. Seu túmulo está na Capela de Saint-Denis. Continuou com a divulgação das condições de sua morte.
Agonizou no longínquo Oriente, distante dos entes queridos, em meio à guerra contra inimigos impiedosos (demonizados no imaginário da época), defendendo a Santa Madre Igreja que tanto amou. Assistiu à morte de um filho adorado. Teve o corpo marcado por chagas, mitigado por dores terríveis, porém, morreu plácido. Em paz. Envolto em luz. Morte digna de um santo.
Todos estes elementos fizeram parte das narrativas que se espalharam pela Europa medieval, crescendo em detalhes cada vez que era contada. Serviram de "exemplum" para inúmeros sermões. A ênfase, como não podia deixar de ser, sempre foi o sofrimento, algo indispensável na vida de um santo. Sendo concluída com sua canonização.
Após minucioso processo, que mais tarde foi utilizado por Guilherme de Sainth-Pathus como fonte para elaborar sua biografia, Luís IX foi canonizado em 1297, pelo Papa Bonifácio VIII, sendo conhecido desde então como São Luís.
JAMES ANDRADE é historiador e pesquisador de história antiga e medieval. É autor do livro Getsemami a Verdade Oculta (Giz Editorial 2008)
1 Espécie de tuberculose ganglionar linfática.
2 Aqui nos referimos como "Papa" por mera comodidade, mas é, porém, um anacronismo uma vez que, mesmo existindo e epíteto papa (pai) para designar o bispo da Igreja de Roma, a figura institucional - política - do Papa, aquele que tem o poder sobre a Igreja Católica como um todo, só será definitivamente criada no Concílio de Trento (1545-1546). Até então o papa de Roma era "só" um bispo muito influente.
3 Carlos Magno foi canonizado em 1165, a pedido do imperador Frederico I, sendo venerado, por francos e germanos, durante boa parte da Idade Média.
4 "Santos Leigos" são aqueles, homens e mulheres, que alcançaram a condição santificada sem pertencer a nenhuma instituição religiosa, são santos oriundos do mundo laico.
5 Túnica ou cinto ou cordão, que podia ser de crina, de lã ás- pera, às vezes com farpas de madeira, que, por penitência, usava-se diretamente sobre a pele.
6 Hôtel-Dieu (hotel de Deus): hospital, também chamado de Maison-Dieu (casa de Deus).
7 E os soldados, tecendo uma coroa de espinhos, lha puseram sobre a cabeça, e lhe vestiram roupa de púrpura. (João. 19:2).
8 A Coroa de Espinhos permaneceu n'A Santa Capela até a Revolução Francesa, quando, por temor da gana destruidora de ícones (tanto religiosos quanto laicos) dos revoltosos, foi transferida para a Catedral de Notre-Dame, onde está até hoje.
9 É sabido que a amizade de ambos, cultivada na mocidade, terminou em conflitos por posses de terras.
Revista Leituras da História
Um comentário:
Parabéns pelo blog. Excelente. Já me tornei seguidor. Também tenho um simples blog de história. Ficarei honrado com a sua visita, e mais ainda se puder divulgar o meu blog.
http://historiaedebate.blogspot.com/
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