sexta-feira, 12 de março de 2010

De que são feitos os líderes?


De que são feitos os líderes?
Rádio, jornal, televisão, propaganda... estratégias de construção da imagem pública se renovam e revelam os bastidores da disputa política.
Lorenzo Aldé

“Não aceito perguntas de jornalistas”, decretou Gregório Fortunato, cercado por eles, nos dias que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas. Chefe da guarda presidencial, era acusado de ser o mandante do atentado ao jornalista Carlos Lacerda, que acabou vitimando o major Rubem Vaz, naquele agosto de 1954.

Em vez de calar a imprensa, o tiro atiçara de vez a virulenta campanha que moviam contra o presidente. “É preciso destruir os destroços ainda ameaçadores da oligarquia Vargas. Esses destroços, meus amigos, são como restos que ficam depois da bomba atômica. Eles ainda têm irradiação e podem contaminar e esterilizar a nação”, vociferou Lacerda no dia 23 de agosto, ao microfone da rádio Globo, seu principal palanque além do jornal Tribuna da Imprensa.

No dia seguinte, consumado o ato extremo de Getulio, uma multidão enfurecida saiu às ruas do Rio de Janeiro para apedrejar redações de jornais e emissoras de rádio. Apenas um jornal circularia no dia seguinte: a Última Hora, de Samuel Wainer, criado com o único objetivo de defender o governo contra os ataques da oposição. E alvo, durante meses, das mais variadas acusações e de uma persecutória CPI.

Poucas vezes se viu, na história nacional, um momento em que jornalistas e veículos de comunicação de massa estivessem tão diretamente envolvidos com as reviravoltas políticas do país. Hoje, do alto de quase 25 anos de nova vivência democrática, tal comportamento da mídia parece um despropósito inaceitável, e já superado. Será?

“O PT deixou o Brasil mais burro?”, estampou na capa a revista Veja em janeiro de 2005. Meses depois, já com o escândalo do mensalão dominando o noticiário, a mesma revista lançaria seguidas edições atacando frontalmente o presidente Lula, a ponto de sugerir seu impeachment. Se a Veja agia como a Tribuna da Imprensa, do outro lado do front a revista Caros Amigos, tal qual uma Última Hora, assumia em sua capa a defesa do governo: “A crise é uma invenção da mídia”, sentenciava a socióloga Marilena Chauí.

Estamos assistindo à ressurreição de uma imprensa partidarizada e aguerrida? Para a cientista política Alessandra Aldé, do Iuperj, existem indícios disso. Seria um fenômeno recente, aditivado por uma nova arena pública: a Internet. A tecnologia abre espaço para que jornalistas políticos abandonem uma pretensa neutralidade, expressando abertamente suas convicções em sites e blogs pessoais. O acirramento do debate acaba influenciando a grande imprensa.

Nos últimos anos, a pesquisadora conheceu de perto os bastidores da mídia e da política, ao realizar a pesquisa para o documentário “Arquitetos do poder”, que dirige ao lado do cineasta Vicente Ferraz. O filme, a ser lançado nos próximos meses pelo Iuperj e UrcaFilmes, utiliza cenas de campanhas eleitorais e entrevistas com seus mentores para expor as artimanhas da construção da imagem pública de nossos principais políticos.

Exemplo emblemático de interferência da mídia em uma eleição foi o de Fernando Collor de Mello. Não apenas pelo notório favorecimento que obteve na edição do debate contra Lula às vésperas do segundo turno, exibida no Jornal Nacional, da TV Globo. Toda sua meteórica trajetória, em menos de um ano, foi um grande golpe de marketing. Desconhecido e recém-empossado governador da desimportante Alagoas, da noite para o dia Collor ganhou capa de revista (a Veja, já então) e virou tema de Globo Repórter, incensado na pele de um personagem heróico (hoje risível): “o caçador de marajás”.

“Era a aposta do possível, não era a aposta do ideal”, comenta, no filme, Ronald de Carvalho, na época editor de política da TV Globo. Explica-se: nas primeiras eleições diretas para presidente em três décadas, “os políticos tradicionais eram algo desprezível naquele momento”. Maiores eram as chances dos candidatos de esquerda, especialmente um certo gaúcho herdeiro de Vargas: Leonel de Moura Brizola. Mas imagine que reações causavam, nos donos do poder (e dos meios de comunicação), discursos desse tipo: “Eu vou chegar lá de serrote. Eu vou serrar uma perna desse modelo econômico. Este modelo está podre. Não pode continuar. Exatamente como ocorria nos últimos anos da monarquia”, bradou o candidato do PDT, em um debate. Correndo por fora, um não menos assustador líder sindical. “Vai acabar a moleza de banqueiro ganhar dinheiro às custas da miséria do nosso povo”, prometia Lula.

A campanha do PT, comandada por Paulo de Tarso, pôs na boca do povo um empolgante hino — “Lula-lá, brilha uma estrela” — e arrebanhou artistas famosíssimos para cantá-lo na TV. Os efeitos especiais de Collor não ficavam atrás: nos primórdios da computação gráfica, um trem em movimento estacionava na logomarca verde-e-amarela. Nas urnas, Lula bateu Brizola por pouco, e no segundo turno deu Collor, com uma forcinha da imprensa. Estava inaugurada uma nova era do marketing político brasileiro.

Nova era sim, mas de uma longa história. “Marketing é uma expressão recente, mas lida com uma combinação relativamente antiga, de construção de imagem pública. Não foi Vargas quem inventou, nem Hitler, nem Goebbels. O que há são redefinições que têm a ver com uma série de fatores, inclusive com os meios através dos quais se atinge o público”, explica o cientista político João Trajano Sento-Sé, da UERJ. No tempo de Getúlio, o novo meio foi principalmente o rádio, e o novo público a massa de trabalhadores urbanos que se formava com a industrialização do país. A menção a Hitler e seu chefe de propaganda Goebbels não é gratuita. Vargas usou das mesmas armas modernas de propaganda para engrandecer sua imagem. O Estado Novo produzia todo tipo de material enaltecendo o “Pai dos Pobres” — de cartões postais a cinejornais.

Mesmo deposto em 1945, Getulio não saiu de cena com a chegada da democracia. Ainda naquele ano seu apoio foi fundamental para eleger Eurico Gaspar Dutra. E apenas cinco anos depois ele se transformava em candidato, mais uma vez contribuindo para modernizar a relação entre política e comunicação. “A chave do sucesso de Vargas nas eleições de 1950 está na propaganda”, afirma Débora Kfuri, mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio e autora da dissertação Getúlio Vargas volta ao Catete: a estratégia de propaganda varguista nas eleições de 1950 (2007).

Sob coordenação de João Neves da Fontoura (1887-1963), ministro das Relações Exteriores do governo Dutra, foi criado um “Comitê de Campanha pró-Getúlio Vargas” — com sede no Rio mas dividido em esferas regionais, municipais e distritais. O objetivo era adequar a apresentação do candidato às demandas locais. “João Neves solicitou que personalidades locais realizassem uma pesquisa de interesses dos eleitores de cada região e a confecção prévia dos discursos, que depois seriam enviados a Vargas para a redação final”. Tudo planejado, Getulio saiu em excursão pelo Brasil. Em pouco mais de 50 dias percorreu todos os Estados, conquistando multidões com sua atenção a expectativas locais: café para São Paulo, açúcar para Recife, seringais em Marabá, além dos temas nacionais.

Um Departamento de Propaganda confeccionava santinhos, cartazes, faixas, músicas e vídeos. Curioso é que muitos santinhos “nasciam de idéias dos próprios eleitores, que mandavam charges, orações e poemas para Vargas. Os melhores eram selecionados e distribuídos por todo o país. O presidente tinha sempre aparência simpática, em trajes típicos de um gaúcho comum: bombachas em tecido listrado, botas, camisa xadrez e lenço amarrado no pescoço”.

Quarenta anos depois, muitos métodos pioneiros de Vargas ainda eram bastante usados. A novidade, agora, era o meio. Na onipresente TV, as chamadas “campanhas eletrônicas” ganharam uma dimensão nunca vista. A imprensa, por sua vez, talvez traumatizada pelo trágico fim do governo Collor, passou a adotar postura mais sóbria, jurando-se democrática e apartidária. Como se mais de 60% das concessões de rádio e TV não estivessem nas mãos de políticos de carteirinha. O fato é que, diante da aparente assepsia da mídia, mais do que nunca o diferencial das eleições seriam os “marqueteiros profissionais”. Todo o arsenal da propaganda que o dinheiro pode comprar passa a construir candidatos-personagens (ou candidatos-produtos) cada vez mais vendáveis (ou votáveis). Chegam a usar pesquisas de opinião diárias e monitorar os debates na TV com grupos de discussão tão instantâneos que instruem mudanças no desempenho dos candidatos ao vivo, entre um bloco e outro da transmissão (quando assessores lhes vêm falar ao ouvido).

“Como colocar um intelectual empedernido paulistão, como ele, com cara de povo?”, era o que se perguntava o publicitário Nizan Guanaes, responsável pela campanha de Fernando Henrique Cardoso em 1994. A solução era econômica: o herói foi o preço do pãozinho, mais barato na mesa do povo — o fim da inflação era cabo eleitoral irresistível, e o “Pai do Plano Real” acabou eleito.

Duda Mendonça rapidamente se tornou o grande nome do marketing político nacional. Após ter colaborado com a eleição de Paulo Maluf para a prefeitura de São Paulo em 1993, entraria de vez para a história ao urdir a campanha que levou — depois de três tentativas frustradas — aquele sindicalista raivoso de 1989 à consagração nacional, treze anos depois. Um novo Lula havia nascido: “Lulinha paz-e-amor”.

Por mais que o criador afirme não ter interferido tanto assim na criatura — “O Lula foi o Lula na campanha” —, alguns se assustam com esse processo de construção publicitária da imagem dos políticos. Mas o temor do “político artificial” diminui se considerarmos que também o olhar do espectador-eleitor se aprimora com o andar da democracia. Aprende-se a enxergar que o jogo político é muito mais complexo do que aquelas caras sorridentes da TV.

Líderes não se fazem só de imagem. “Lula é um grande articulador. Ainda é prematuro concluir isso, mas me parece ser capaz de ombrear com Getulio como líder de massas. A diferença é que, ao contrário de Vargas, ele cresce num contexto de democracia”, analisa João Trajano.

Pois foi justamente em torno do maior líder pós-Vargas que, mais uma vez, a imprensa encampou a radicalização da disputa política. Em parte pelos espinhos da relação de Lula com a mídia. “Não aceito perguntas de jornalistas” poderia ser frase dita por ele no primeiro governo, em que mal dava entrevistas. Teve que melhorar esse aspecto a partir de 2006. Depois de rompida também a aura angelical do PT — como se toda esquerda, por ser esquerda, fosse incorruptível — o resultado desse caldeirão de imprensa, poder e sociedade parece apontar para um amadurecimento coletivo.

Estamos, enfim, aprendendo a jogar?

Revista de História da Biblioteca Nacional

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