domingo, 28 de março de 2010

Roma - EVERGETISMO


EVERGETISMO

Na menor cidade do Império, quer a população fale latim ou grego, quer fale mesmo celta ou siríaco, talvez a maioria dos edifícios públicos que os arqueólogos vasculham e os turistas visitam foi construída pelos notáveis locais com dinheiro do próprio bolso. Além disso, tais notáveis financiavam os espetáculos públicos que anualmente alegravam a cidade, desde que tivessem o suficiente, pois quem alcançava uma dignidade municipal devia pagar. Tal dignitário doava uma soma ao Tesouro da cidade, financiava os espetáculos do ano em que estava no cargo ou ainda empreendia a construção de um edifício. Caso estivesse em dificuldades financeiras, formulava por escrito a promessa pública de fazer isso um dia, pessoalmente ou por intermédio de seus herdeiros. E havia mais: independentemente de qualquer função pública, os notáveis ofereciam a seus concidadãos, de livre e espontânea vontade, edifícios, combates de gladiadores, banquetes ou festas; essa espécie de mecenato era ainda mais frequente que nos Estados Unidos de hoje, com a diferença de que seus objetos se referiam quase exclusivamente à ornamentação da cidade e a seus prazeres públicos. A grande maioria dos anfiteatros, essas enormes riquezas petrificadas, foi oferecida livremente por mecenas, que, assim, imprimiam à cidade sua marca definitiva.
Tais liberalidades deviam-se à generosidade privada? A uma obrigação pública? A ambas. A dose variava de indivíduo para indivíduo e só havia casos particulares. Pois as cidades pouco a pouco transformaram em dever a tendência dos ricos a generosidade ostentatória; obrigavam-nos a fazer sempre o que a preocupação com a posição os levava a fazer algumas vezes. Mostrando-se liberais, os notáveis confirmavam que pertenciam à classe governante, e os poetas satíricos caçoavam da pretensão dos novos-ricos, que se apressavam a oferecer espetáculos a seus concidadãos. As cidades adquiriram o hábito de um luxo público que passaram a exigir como um direito. A nomeação dos dignitários anuais fornecia a oportunidade; todo ano, em cada cidade desenrolavam-se pequenas comédias: era preciso encontrar novas fontes de financiamento. Cada membro do conselho declarava-se mais pobre que seus pares e dizia que em compensação Fulano de Tal era um homem feliz, próspero e tão magnânimo que seguramente aceitaria naquele ano uma dignidade que acarretava o dever de garantir à própria custa a água quente dos banhos públicos. O interessado protestava que já passara por isso. O mais teimoso ganhava. Se não se via saí- da, o governador da província interferia; ou a plebe da cidade, zelosa de sua água quente, intervinha pacificamente: aclamava a vítima designada, levava às nuvens sua generosidade espontânea e elegia-a dignitário erguendo as mãos ou por aclamações unânimes. A menos que, espontaneamente, pois também havia espontaneidade, um mecenas imprevisto se levantasse para declarar que desejava beneficiar a cidade; ela lhe agradecia fazendo o Conselho nomeá-lo alto dignitário local e conceder-lhe um título de honra excepcional, como "patrono da cidade", "pai da cidade" ou "benfeitor magnânimo e espontâneo", que ele inscreveria em sua lápide; ou então votando-lhe uma estátua, pela execução da qual ele espontaneamente pagava.
Por isso foi que os dignitários locais pouco a pouco deixaram de ser eleitos pelos cidadãos para ser designados pela oligarquia do Conselho, que os escolhia em seu próprio meio: o problema era mais a falta que o excesso de candidatos; consistindo a função mais em pagar do que em governar, deixava-se ao Conselho a decisão de imolar um de seus membros, e o melhor candidato era aquele que aceitasse pagar. A classe dos notáveis tinha, assim, a equívoca satisfação de dizer que a cidade lhe pertencia, pois era ela quem pagava; em troca podia repartir os impostos do Império em seu proveito, fazendo-os recair o máximo possível sobre o campesinato pobre. Cada cidade se dividia em dois campos: os notáveis que davam e a plebe que recebia; além das obrigações inerentes às dignidades anuais, só se podia ser uma estrela local promovendo, uma vez na vida, a construção de um edifício ou a realização de um banquete público. Assim se formou uma oligarquia dirigente. Será preciso dizer hereditária? É menos simples: as dignidades do pai criavam um dever moral para o filho, vítima designada das próximas prodigalidades, pois era o herdeiro. Entre os ricos do lugar, pensava-se primeiro em depenar aqueles cujo pai já alcançara as dignidades (patrobouloi), esperando que o filho quisesse imitar a generosidade paterna; na falta de candidatos bastante ricos entre os filhos de dignitários, o Conselho se conformava em aceitar em seu seio o representante de uma família de comerciantes para impeli-lo às custosas dignidades.
Os notáveis tinham interesse em se sujeitar a tal sistema apenas porque o costume o impunha; pois se rebelavam tão frequentemente quanto se prestavam a ele de bom grado. O poder central também hesitava. Ora, para mostrar-se popular, impunha aos notáveis uma obrigação formal de dar ao povo prazeres que "o distraíssem da tristeza"; ora fazia a política dos notáveis e tentava refrear as exigências da plebe; ora, por fim, fazia sua própria política e tentava proteger os ricos contra sua tendência às suntuosidades ostentatórias: não seria melhor oferecer à cidade um cais de porto em lugar de uma festa? Pois o povo recebia prazeres que o divertiam ou edifícios que lisonjeavam a vaidade do mecenas; somente nos anos de penúria a plebe pensava em pedir a seus dirigentes que lhe vendessem a preços módicos o trigo armazenado em seus celeiros. Ofereciam-se prazeres aos concidadãos por civismo e edifícios à cidade por ostentação; essas são as duas raízes do evergetismo, que confundem, elas também, o homem público e o homem privado.

História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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