A fome em ação
Desde 1877, as grandes secas levam multidões de cearenses a invadir e saquear cidades em busca de comida
Frederico de Castro Neves
São muitas as formas de luta e resistência das populações mais pobres para sobreviver com dignidade. No espaço conhecido como “semi-árido brasileiro”, que corresponde a uma boa parte dos estados da Região Nordeste, e especialmente no Ceará, grupos de camponeses manifestam coletivamente sua insatisfação e revolta em momentos de escassez absoluta de alimentos e trabalho devido à seca.
Desde a grande seca de 1877, essas multidões de retirantes invadem cidades, ameaçam populações e saqueiam mercados, armazéns, lojas de alimentos e instituições públicas em busca da superação da fome. Essas ações são o resultado da desigualdade que impera nas áreas rurais, onde os latifúndios contrastam com a pequena propriedade familiar e a agricultura de subsistência. A ira dos camponeses volta-se contra aqueles que se mostram indiferentes à sua penúria e ainda desenvolvem práticas comerciais abomináveis num contexto de escassez e fome – o monopólio, a venda por atacado para outras localidades e o livre aumento de preços, entre outras.
Ao longo da História, ocorreram diversos tipos de motins no Ceará. Há os ataques diretos aos mercados públicos, como em 1958, quando cerca de quatro mil retirantes entraram no mercado de Jaguaribe e levaram todos os alimentos que encontraram, espalhando pânico entre a população. Outro alvo são os meios de transporte de gêneros. Em 1932, em Orós, quase 400 camponeses atacaram um trem de mantimentos e levaram toda a carga de carne-seca. Os camponeses também promovem pressões sobre as obras públicas, invadem prefeituras e saqueiam alimentos estocados. Em alguns episódios, surgem tentativas de negociação com comerciantes ou autoridades. Em 1983, por exemplo, ao tomarem conhecimento da chegada dos retirantes à cidade, os comerciantes de Cascavel fecharam suas portas e resolveram doar alimentos às famílias.
Em geral, esses ataques não resultam em ferimentos nem são rechaçados pela polícia. Mas já houve exceções. Entre junho e agosto de 1889, Messejana foi alvo de várias ações de grupos que tinham de 400 a 600 pessoas, resultando em “contusões e ferimentos” generalizados. A polícia reagiu violentamente e os retirantes, mesmo depois de presos, eram “espaldeirados brutalmente”, segundo o jornal Libertador. A violência contra os retirantes tornou-se cada vez mais rara ao longo do século XX, embora os assassinatos de líderes políticos camponeses não tenham diminuído.
As ações das multidões de retirantes são esporádicas. Mesmo repetindo-se a cada período de estiagem, não obedecem a uma organização permanente, com direção e lideranças identificáveis. Com a repetição das secas, as informações circulam entre os camponeses e os motins se fortalecem como opção de atitude a ser tomada em tempos de escassez.
Frederico de Castro Neves é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará e autor do livro A Multidão e a História: saques e outras ações de massas no Ceará (Relume Dumará, 2000).
Saiba Mais - Bibliografia:
BARREIRA, César. Trilhas e Atalhos do Poder: conflitos sociais no sertão. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992.
MEDEIROS FILHO, João e SOUZA, Itamar de. Os Degredados Filhos da Seca. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. História das Secas (Século XX). Fortaleza: Ed. Batista Fontenele, 1953.
Saiba Mais - Filme:
“Os Fuzis”, de Ruy Guerra (1964).
Revista de História da Biblioteca Nacional
Desde 1877, as grandes secas levam multidões de cearenses a invadir e saquear cidades em busca de comida
Frederico de Castro Neves
São muitas as formas de luta e resistência das populações mais pobres para sobreviver com dignidade. No espaço conhecido como “semi-árido brasileiro”, que corresponde a uma boa parte dos estados da Região Nordeste, e especialmente no Ceará, grupos de camponeses manifestam coletivamente sua insatisfação e revolta em momentos de escassez absoluta de alimentos e trabalho devido à seca.
Desde a grande seca de 1877, essas multidões de retirantes invadem cidades, ameaçam populações e saqueiam mercados, armazéns, lojas de alimentos e instituições públicas em busca da superação da fome. Essas ações são o resultado da desigualdade que impera nas áreas rurais, onde os latifúndios contrastam com a pequena propriedade familiar e a agricultura de subsistência. A ira dos camponeses volta-se contra aqueles que se mostram indiferentes à sua penúria e ainda desenvolvem práticas comerciais abomináveis num contexto de escassez e fome – o monopólio, a venda por atacado para outras localidades e o livre aumento de preços, entre outras.
Ao longo da História, ocorreram diversos tipos de motins no Ceará. Há os ataques diretos aos mercados públicos, como em 1958, quando cerca de quatro mil retirantes entraram no mercado de Jaguaribe e levaram todos os alimentos que encontraram, espalhando pânico entre a população. Outro alvo são os meios de transporte de gêneros. Em 1932, em Orós, quase 400 camponeses atacaram um trem de mantimentos e levaram toda a carga de carne-seca. Os camponeses também promovem pressões sobre as obras públicas, invadem prefeituras e saqueiam alimentos estocados. Em alguns episódios, surgem tentativas de negociação com comerciantes ou autoridades. Em 1983, por exemplo, ao tomarem conhecimento da chegada dos retirantes à cidade, os comerciantes de Cascavel fecharam suas portas e resolveram doar alimentos às famílias.
Em geral, esses ataques não resultam em ferimentos nem são rechaçados pela polícia. Mas já houve exceções. Entre junho e agosto de 1889, Messejana foi alvo de várias ações de grupos que tinham de 400 a 600 pessoas, resultando em “contusões e ferimentos” generalizados. A polícia reagiu violentamente e os retirantes, mesmo depois de presos, eram “espaldeirados brutalmente”, segundo o jornal Libertador. A violência contra os retirantes tornou-se cada vez mais rara ao longo do século XX, embora os assassinatos de líderes políticos camponeses não tenham diminuído.
As ações das multidões de retirantes são esporádicas. Mesmo repetindo-se a cada período de estiagem, não obedecem a uma organização permanente, com direção e lideranças identificáveis. Com a repetição das secas, as informações circulam entre os camponeses e os motins se fortalecem como opção de atitude a ser tomada em tempos de escassez.
Frederico de Castro Neves é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará e autor do livro A Multidão e a História: saques e outras ações de massas no Ceará (Relume Dumará, 2000).
Saiba Mais - Bibliografia:
BARREIRA, César. Trilhas e Atalhos do Poder: conflitos sociais no sertão. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992.
MEDEIROS FILHO, João e SOUZA, Itamar de. Os Degredados Filhos da Seca. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983.
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. História das Secas (Século XX). Fortaleza: Ed. Batista Fontenele, 1953.
Saiba Mais - Filme:
“Os Fuzis”, de Ruy Guerra (1964).
Revista de História da Biblioteca Nacional
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