segunda-feira, 29 de março de 2010

Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira


Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira


Marcos Napolitano
Universidade Federal do Paraná

Maria Clara Wasserman

Mestranda em História na UFPR



RESUMO
Este artigo, na linha de um ensaio bibliográfico, procura sistematizar o debate historiográfico e para-historiográfico que tem por objeto a discussão sobreas “origens da música popular brasileira”. Neste sentido, procuramos examinar, criticamente, as bases argumentativas e as principais conclusões de duas tendências básicas: a) a tendência historiográfica que trabalha com o paradigma das origens como um lugar , situado no tempo e no espaço, a ser determinado pela pesquisa histórica; b) a tendência, mais atuante a partir do meio acadêmico, que coloca sob suspeita a própria questão das origens, com um lugar determinável, procurando analisar historicamente a dinâmica social e ideológica que os discursos de origem podem revelar.
Palavras chave: Música Popular Brasileira; Historiografia; Samba.


A BUSCA DAS "ORIGENS" E DO "AUTÊNTICO"NA MÚSICA BRASILEIRA

Para analisar como a questão das origens - entendida como momento fundador que delimitaria um núcleo identitário perene - é pensada na música popular brasileira, podemos nos concentrar basicamente em duas grandes correntes historiográficas: a primeira diz respeito à discussão quanto à "busca das origens", ou seja, a raiz da "autêntica" música popular brasileira. A segunda corrente historiográfica procura criticar a própria questão da origem, sublinhando os diversos vetores formativos da musicalidade brasileira, sem necessariamente, buscar o mais autêntico.

Desde já, colocamo-nos nesta segunda perspectiva, na medida em que, para nós, deve-se problematizar o problema das origens, como objeto da reflexão historiográfica. Isto não significa fazer tábula rasa da vigorosa tradição musical que se constituiu sob o signo da música popular brasileira, mas tentar desenvolver um pensamento analítico que dê conta da pluralidade, da polifonia de sons que constituíram as bases sociológicas e estéticas da nossa música, sobretudo de matiz urbana. Ao longo deste artigo, tentaremos mapear e entender as referências e projetos que orientaram os autores que vem marcando o debate historiográfico em questão. Entendemos a categoria da autenticidade, não como um traço inerente ao objeto ou ao evento "original", mas uma reconstituição social, uma convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser pensada sob o signo da falsidade1. É sob este prisma que tentaremos pensar o problema das "origens" na historiografia da música popular brasileira.

O impulso para a produção historiográfica sobre a questão da música no Brasil, conforme Arnaldo Contier, intensificou-se com o debate no seio do modernismo, sobretudo nas obras de Mário de Andrade e Renato de Almeida, ao longo dos anos 20 e 302. Alguns eixos de problemas se entrecruzavam: a) o problema da brasilidade; b) o problema da identidade nacional; c) os procedimentos pelos quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo"(folclore); d) os projetos ligados aos modernismos musicais. Para Mário de Andrade, a preocupação em encontrar uma identidade musical e nacional para o Brasil vai remeter à fixação dos traços da música popular desde finais do século XVIII, quando já podiam ser notadas "certas formas e constâncias brasileiras" no lundu, na modinha, na sincopação3. Mais tarde, ao longo do século XIX, verificou-se a fixação das danças dramáticas, como os reisados, as cheganças, congos e outras manifestações folclóricas. Finalmente, em relação às primeiras décadas do século XX, Mário de Andrade afirmava que "a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora"4. Nessa altura, segundo Mário de Andrade, a modinha já se transformara em música popular, o maxixe e o samba haviam surgido, formaram-se conjuntos seresteiros, conjuntos de "chorões" e haviam se desenvolvido inúmeras danças rurais. A arte nacional estava então feita na "inconsciência do povo", sendo a arte popular a alma desta nacionalidade. Daí a necessidade das pesquisas folclóricas propostas, como um meio para entrar em contato com as bases da cultura popular. Esse procedimento indicava a necessidade de partir do primitivo (folclore), seguir uma linha evolutiva, acompanhando as vicissitudes do elemento "civilizado" (as técnicas adquiridas), mantendo porém um núcleo central que demarcava uma "alma nacional".

Neste ponto, cabe um breve parênteses. Em seu estudo sobre o modernismo e a música popular, Santuza Cambraia Naves argumenta que, para Mário de Andrade, o popular estaria valorizado na medida em que iria oferecer a matéria-prima para se esboçar os traços gerais da identidade brasileira5. Neste sentido, o folclore contribuiria para a manutenção da identidade nacional na medida em que exerceria uma pressão na direção do passado. A busca da tradição, cotejada com a perspectiva da modernidade, deveria construir um idioma musical próprio, irredutível ao culto folclorista per si.

Para o autor de Macunaíma, a pesquisa do material folclórico-musical deveria preparar, no plano da criação, a diluição do material popular no campo da expressão nacional, visando constituir as bases de elaboração de uma música pura, de formas renovadas. Em outras palavras, Mário de Andrade negava o exotismo, ufanismo, populismo e pastiches folclóricos, como procedimentos de criação a partir do popular. Não podemos afirmar que havia nesse autor um culto às origens, como momento a ser reatualizado pela criação musical, mas apenas a preocupação de estabelecer as bases de um material musical que trouxesse em si a fala da brasilidade profunda. Como é amplamente conhecido, a música urbana não se constituía no material privilegiado para o projeto marioandradiano, na medida em que nele a fala da brasilidade estaria mesclada a outras sonoridades, oriundas de outras nacionalidades. Além do mais, a música urbana, sobretudo aquela produzida no centro mais vigoroso de produção musical-popular - a cidade do Rio de Janeiro - rapidamente era canalizada para o consumo, na forma de música ligeira.



O PENSAMENTO FOLCLORISTA URBANO

Na verdade um dos primeiros impulsos para o debate sobre as origens da música urbana veio da obra de Francisco Guimarães (Vagalume), jornalista que publicou em 1933 o livro Na Roda do Samba 6. Na esteira da polêmica entre os sambistas, sobre a divisão rítmica "correta" que deveria caracterizar o samba - a oriunda do maxixe ou da marcha7 - Vagalume tentou estabelecer certos princípios básicos para definir não só o lugar social do samba, mas seus fundamentos estéticos. Esta empresa se tornava mais urgente, na medida em que o rádio e o incremento da indústria fonográfica criavam um caldeirão de sons e experiências musicais que ameaçava descaracterizar qualquer signo de "autenticidade" na música popular brasileira. O livro de Guimarães delimitava um lugar social para o samba que fosse, ao mesmo tempo, garantia de uma marca estética indelével: o "morro" surge como um território mítico, lugar da "roda" onde se praticava o "verdadeiro" samba. As afirmações de Francisco Guimarães tinham um alvo claro: a denúncia da indústria fonográfica, que estaria matando o samba autêntico, ao usar e abusar do rótulo. A imagem da "roda de samba" voltaria à cena musical em vários momentos da história da música brasileira, sempre utilizada como imagem crítica à industrialização e à individualização da criação e audição musicais. A "roda de samba" seria o lugar de uma fala musical coletiva, "pura", "espontânea", onde a criatividade daquele grupo social que estaria na origem do samba, era recolocada, quase como um rito de origem.

No mesmo ano, 1933, Orestes Barbosa, cronista e compositor, apresentava uma visão diferente à de Guimarães, afirmando que o samba era um patrimônio da cidade do Rio de Janeiro como um todo (e, no limite, a própria síntese da brasilidade)8. Numa linguagem triunfalista e nacionalista, ela afirmava que o "samba é carioca"9, embora tenha "nascido no morro"10. Cada região da cidade do Rio de Janeiro havia "temperado" as marcas desta origem, criando um idioma musical próprio. Este encontro, para Barbosa, era o fundamento do sucesso popular do samba. "No morro vive um lirismo exclusivo, uma filosofia estranha, como que olhando a claridade do urbanismo que, afinal, olha para cima, atraído pelas melodias, e sobre, então, para buscá-las e trazê-las aos salões"11. Concluindo que o samba era uma "síntese de inteligência", Orestes Barbosa (e neste ponto, surge mais uma diferença em relação a Francisco Guimarães) via no rádio um grande impulso para a afirmação deste novo gênero, entre tangos e foxes, os outros dois gêneros vigorosos da época12.

Estes dois autores, cujos livros seminais sintetizavam os debates em torno do lugar social do samba, representam uma sutil clivagem na corrente de pensamento que aceita a origem como um problema central na valorização sócio-cultural do gênero. Francisco Guimarães não só defendia o lugar social e as formas musicais que traziam uma marca de origem (a "roda") como via no processo de incorporação do samba por segmentos culturais mais amplos uma ameaça ao seu núcleo identitário básico, sem o qual perderia sua razão de ser. Orestes Barbosa, mesmo aceitando a origem sócio-geográfica do samba como um dado, afirmava que o processo de diluição em outros espaços sociais e culturais do Rio de Janeiro tinham efetivamente consagrado o samba, como gênero musical "nacional", por excelência. A grosso modo, estas duas posições irão marcar o debate em torno do samba pelas próximas décadas. Tendo em vista esta conjuntura mais ampla, o famoso debate musical entre Noel Rosa (branco, de classe média, morador da Vila Isabel) e Wilson Batista (negro, pobre, freqüentador da "marginalidade" boêmia da Lapa), ocorrido entre 1933 e 1935, em torno das "qualidades" do malandro e do lugar do samba "autêntico", deixa de ser expressão de vaidades e idiossincrasias pessoais. Torna-se altamente emblemático, ainda que desprovido de intencionalidade e articulações mais amplas, das tensões em torno do processo de redefinição cultural e estética daquele gênero.

Um ano antes do lançamento destes dois livros, em dezembro de 1932, o jovem radialista e músico Almirante (Henrique Foreis Domingues), "subia o morro" da Mangueira, numa visita que ganhou espaço nos jornais cariocas13. Almirante era parte de uma nova geração de artistas, rapidamente convertida à linguagem do samba, que era oriunda de uma classe média sediada no bairro de Vila Isabel. Junto com Noel Rosa, João de Barro, Henrique Britto, Álvaro Miranda Ribeiro, formava o Bando dos Tangarás, desde 1928. Em 1929, ao gravar Na Pavuna, o Bando dos Tangarás introduziu a batucada no samba gravado. Os instrumentos de percussão até então não faziam parte do samba gravado, até porque a captação dos instrumentos de percussão ficava muito prejudicada no sistema de gravação mecânica. Influenciado por Na Pavuna, Noel se converte de uma vez à linguagem do samba, compondo Eu vou pra Vila.

Portanto, como movimento inicial do debate acerca das origens, podemos notar a ebulição de um ambiente social e musical que rapidamente se transformava, dificultando o estabelecimento de tradições unívocas e lineares. Muitos elementos perturbavam esse cenário: a entrada de novos grupos sociais no universo do samba, como o grupo de Vila Isabel, a formação das Escolas de Samba, como lugares da tradição (a Deixa Falar surge em 1929), a mobilidade territorial das experiências musicais (como o eixo Estácio-Morro) e, sobretudo, o caldeirão de sonoridades catalisado pela expansão do rádio, pressionado e impressionado pelo potencial de crescimento de audiências que não faziam parte do grupo social que havia configurado, inicialmente, o mundo do samba. Todos estes elementos precisavam ser "disciplinados", colocados sob o prisma da tradição, sobretudo num momento em que o popular e o nacional eram as categorias de afirmação cultural e ideológica por excelência.

Os autores preocupados com o problema da autenticidade do samba, não encontravam no pensamento musical de Mário de Andrade um apoio para estabelecer uma tradição reconhecível e legítima da música urbana. O esquadrinhamento do material musical-popular, tal como foi trabalhado por Mário, não contribuía significativamente para organizar uma "tradição" aceitável para a música popular urbana, na qual o samba passava a ser o eixo central. Paralelamente, a consolidação do samba como padrão de música brasileira, culminando na sua vertente cívico-nacionalista, cujo paradigma foi Aquarela do Brasil, só tornava mais complexo e urgente estabelecer um pensamento reflexivo sobre as origens desse gênero. A partir da linguagem sinfônica estabelecida por Aquarela...o samba se abria definitivamente para inúmeros entrecruzamentos sonoros e culturais, pressionado por audiências radiofônicas crescentes.

É precisamente esta lacuna no pensamento folclorista de Mário de Andrade que perturbou um conjunto de criadores musicais, radialistas e jornalistas cariocas. A partir do final dos anos 40, eles tomaram para si a tarefa de consolidar um pensamento historiográfico sistematizado em torno da música urbana. Nesse momento, nomes como Almirante (Henrique Foréis Domingues) e Lúcio Rangel ganharam destaque. Dialogando com as posições de Francisco Guimarães, mas imbuídos de um espírito "científico" de coleta e preservação, estes jornalistas e radialistas acabarão por demarcar o espaço de um inusitado "folclorismo urbano"14.

O caso de Almirante é exemplar. Em sua obra, No tempo de Noel Rosa15, o radialista e compositor procurou estabelecer as bases históricas da música urbana brasileira, por meio de antecedentes folclóricos. Ele foi um dos primeiros, se não o primeiro autor, a enfatizar a genialidade de Noel Rosa, figura central na seu panteão de "gênios" da música brasileira. Mas as preocupações de Almirante não estavam ligadas apenas em preservar a trajetória e a obra de Noel. Ele coletou, com um rigor enciclopédico, diga-se, uma ampla gama de sonoridades musicais do Brasil, numa espécie de "missão de pesquisas folclóricas", que tinha como base a sua atuação no rádio. Em seus programas, empenhava-se em pedir inúmeras contribuições aos ouvintes. "No ar, ele pedia material para um programa sobre cocos nordestinos. Recebia partituras dos ouvintes, que os maestros selecionavam, arranjavam e executavam ao vivo"16.

Almirante procurava estabelecer uma ligação entre as origens do samba urbano e o elemento rural, talvez como uma estratégia de autenticação do gênero. Num diálogo direto com Francisco Guimarães, afirmava que o samba não tinha nascido no morro. Para Almirante, o primeiro samba, Pelo Telefone, de Donga17, derivou de uma peça de costumes sertanejos denominada O Marroeiro, de Catulo da Paixão Cearense e Ignácio Rapôso. Por outro lado, na famosa "casa da Tia Ciata", os co-autores que freqüentavam o lugar, vindos do nordeste, acabaram por contribuir com temas regionais nessa composição coletiva. Portanto, nesta linha de argumentação, o samba, ainda que uma manifestação musical urbana, era o ponto culminante de várias sonoridades, enraizadas em regiões de povoamento antigo e bases culturais seculares.

Para Almirante, as diversas vertentes do samba tinham encontrado uma perfeita expressão, já totalmente urbana, com a obra de Noel. Neste sentido, o compositor da Vila Isabel era visto como um ponto de fusão entre a tradição e as novas possibilidades do samba, enquanto gênero plenamente reconhecível, dotado de linguagem própria. Após a morte de Noel, em 1937, e a crescente influência norte-americana na música brasileira, incrementada pela política da boa-vizinhança, Almirante iniciou um trabalho sistemático, mais empírico do que teórico, de reconfiguração de um passado musical. O próprio conceito de velha-guarda, disseminado por Almirante, sintetiza este projeto historiográfico para a música brasileira. Curiosamente, o conceito de "velha-guarda", efetivamente consagrado nos anos 50, fazia tabula rasa de muitas tendências formativas do samba. Neste conceito cabiam músicos do primeiro samba (Donga, Pixinguinha), nomes ligados às Escolas de Samba (Ismael Silva), e artistas diretamente relacionados com os primeiros programas musicais do rádio (Noel Rosa, João de Barro, Silvio Caldas). A tentativa de estabelecer uma tradição era concomitante a um cancioneiro que se consagrava na audiência popular, via rádio, marcado pela afirmação da crença na autenticidade de um gênero específico e de difícil estabelecimento, como era o samba.

Nos início dos anos 50, o panorama já era outro: a vertente mais popular da música brasileira era marcada pelas marchinhas de Carnaval. Os gêneros estrangeiros, como boleros mexicanos e tangos argentinos, ganhavam cada vez mais espaço nas rádios 18. Os concursos de reis e rainhas do rádio geravam uma ambiente de histeria coletiva, em torno dos fã-clubes. A música norte-americana também tomava conta das paradas de sucesso. As Big Bands, famosas nos anos 40, ainda estavam em evidência. Em algumas rádios, havia uma grande divulgação do jazz; pois esse gênero americano ganhava cada vez mais respeitabilidade entre alguns músicos cariocas, sobretudo aqueles que trabalhavam "na noite" da zona sul.

A percepção de que a música brasileira ocupava um espaço menor nos meios de comunicação, tornou-se uma fonte de preocupação para um conjunto de homens da imprensa, dado o temor pela internacionalização e perda de referenciais para a cultura nacional. A preocupação com o estabelecimento de uma linguagem nacional para a canção, tão forte na virada dos anos 30 para os anos 40, parecia desaparecer do cenário artístico, sobretudo das programações das rádios. Neste momento, o debate nascido ainda nos anos 30, sobre a necessidade de se estabelecer a raiz e a autenticidade do samba, como eixo principal da música brasileira, ganhou nova força, entre alguns homens de imprensa. A preocupação em redefinir a nacionalidade e a tradição das manifestações musicais do "povo brasileiro" reuniu intelectuais19 de vários setores e a música brasileira tornou-se objeto de um amplo debate. Esses personagens tinham em comum a preocupação em preservar a memória musical do Brasil (leia-se, do Rio de Janeiro, tomado como microcosmo da nação), sobretudo o material musical criado nas décadas de 20 e 3020. Nesse contexto, surgiu a Revista de Música Popular, um importante foco de pensamento, assumidamente folclorista, para pensar e preservar as origens e a identidade da música popular brasileira.

Essa Revista,, criada em 1954, consolidou e procurou dar conteúdo aos conceitos de época de ouro e velha guarda na música popular brasileira. Sob o comando de Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes, a Revista visava exatamente intervir no cenário musical, para eles marcado pela mercantilização crescente do rádio, e resgatar a "autêntica" tradição da música brasileira, que parecia perdida. Já no editorial do seu primeiro número, percebemos esse objetivo básico:

A Revista de música popular nasce com o propósito de construir. Aqui estamos com a firme intenção de exaltar essa maravilhosa música que é a popular brasileira. Estudando-a sob todos os seus variados aspectos, focalizamos seus grandes criadores e cremos estar fazendo um serviço meritório. Os melhores especialistas no assunto estarão presentes, desde este número inaugural, nas páginas que se seguem. Ao estamparmos na capa do nosso primeiro número a foto de Pixinguinha, saudamos nele, com símbolo, ao autêntico músico brasileiro, o criador e verdadeiro que nunca se deixou influenciar por modas efêmeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populário. Não nos limitaremos, a tratar apenas da música popular brasileira. Algumas páginas são dedicadas, em cada número, ao jazz, a grande criação dos negros norte-americanos, e para tanto convidamos um de nossos mais acatados especialistas no assunto, o crítico José Sanz (...) 21

A Revista teve 14 edições mensais, de setembro de 1954 a setembro de 1956. Sua estrutura básica consistia em seções fixas, baseadas numa perspectiva folclorista: artigos sobre a história da música popular (posteriormente surgiu uma outra seção, cujo tema era a história social da música popular carioca); levantamento de discos raros; coluna fixa de Nestor de Holanda criticando o aspecto comercial que o rádio vinha tomando; memórias musicais escritas por Fernando Lobo, com a denominação Música Dentro da Noite. Estes são raros, apresentando, numa perspectiva quase didática, os discos que "fizeram história" na música brasileira. Havia ainda uma seção de crônicas escritas por Pérsio de Moraes comentando as situações que inspiraram famosas canções brasileiras. Quase sempre, a Revista fechava seus números com uma seção sobre o jazz, que visava resgatar esse gênero como expressão folclórica "autêntica" do negro de New Orleans. O objetivo assumido da Revista de Música Popular era sistematizar um pensamento folclorista aplicado à música popular urbana, como uma espécie de resgate de gêneros e estilos incorporados pelo mercado radiofônico e fonográfico.

Na época, associada à presença da Revista ao trabalho dos folcloristas, foi lançada uma grande Antologia da Música Popular Brasileira, uma coleção de discos raros que seriam lançados em quantidade restrita (200 exemplares), apenas para os quotistas da iniciativa. Rangel justificou o lançamento, com base em preocupações nacionalistas. Vale a pena a longa citação:

O folclore musical e a música popular brasileira estão sofrendo o impacto de influências estranhas à medida que o progresso, - no caso, representado pelo rádio - penetra nas camadas mais pobres da população e nas regiões mais afastadas da civilização, que são a fonte de todo o nosso patrimônio musical. Breve, o pesquisador terá imensa dificuldade em destacar exatamente o que é música brasileira. Nos centros urbanos, principalmente, essa dificuldade j á se faz sentir. No Rio de Janeiro, por exemplo, rara é a música de compositor popular ou sambista, atualmente, que não está cevada de modismos e estilos pertencentes ao bolero, à rumba, à música popular americana e principalmente sob a influência estética do atonalismo, através do be-bop. Urge, portanto, tomar medidas no sentido de preservar a nossa música, seja pela regravação e popularização dos velhos discos hoje esgotados, seja pela gravação de novos compositores e sambistas que, considerados não comerciais, tem na sua música toda a pureza tradicional dos temas e formas brasileiras. Daí a idéia de se criar uma Antologia da Música Popular Brasileira, com o objetivo de proporcionar aos estudiosos e interessados o que há de mais genuíno e importante no terreno do folclore musical e da música popular.22.

A Revista catalisou um tipo de pensamento folclorista, sobretudo nos meios intelectuais cariocas, que gerou outros frutos, mesmo depois de seu fechamento, em 1956. Um exemplo é o I congresso Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro. A intenção desse congresso seria preservar as características do samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso. Na introdução do documento, redigido pelo folclorista Edison Carneiro, lê-se: O Congresso do Samba valeu por uma tomada de consciência: aceitamos a evolução normal do samba como expressão de alegrias e tristezas populares; desejamos criar condições para que essa evolução se processe com naturalidade, como reflexo real da nossa vida e dos nossos costumes; mas também reconhecemos os perigos que cercam essa evolução, tentando encontrar modos e maneiras de neutralizá-los. Não vibrou por um momento sequer a nota saudosista. Tivemos em mente assegurar ao samba o direito de continuar como expressão legítima do sentimento de nossa gente23.

Esse documento de 1962 representa um eco direto do pensamento folclorista, que foi trazido à tona na década de 50. Mas a partir de 1959, a presença perturbadora da Bossa Nova, um projeto de renovação estética e modernização que, ao mesmo tempo, reivindicava o seu lugar na tradição do samba, acabou por reacender o debate e torná-lo mais complexo.

O próprio Lúcio Rangel, diretor da Revista, lançou um livro nos anos 60 que dava continuidade ao seu trabalho de busca das origens. A obra Sambistas e chorões24, novamente fazia menção à lacuna do pensamento musical de Mário de Andrade, em relação à música urbana. Para Rangel, como outros folcloristas "clássicos",

Mário preferiu o estudo a partir de pequenos núcleos da população "(...) ao grande samba, cantado e dançado por milhões de brasileiros, embora influenciado por modas internacionais, como tinha que ser. Preferiu os caboclinhos de João Pessoa ou do Rio Grande do Norte, o boi-bumbá, do Amazonas e as congadas da Vila Lindóia"25.

O prefácio de Brasílio Itiberê, por sua vez, denunciava a influência da música estrangeira no "nosso folclore", numa clara alusão à turma da BN:

(...) ela foi ferida de morte na sua parte orgânica mais preciosa, atingida na cerne, na medula - isto é - no ritmo. Desaparece o ímpeto dinamogênico do sincopado e, privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou, tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos (...) Há, entretanto, um fato que me consola: é pensar que o folclore é coisa eterna e imperecível. A prova está na vitalidade criadora de alguns remanescentes da velha guarda, a exemplo desse bravo Pixinguinha (...)"26.

Ary Vasconcelos é outro nome ligado ao pensamento folclorista em torno da música popular. Depois de um longo tempo sem estudos significativos acerca da música popular brasileira, Ary lançou um livro que tentava preservar, de maneira mais sistematizada, uma determinada tradição, corroborando a idéia de um passado original e grandioso, que ele localizava nos anos 30, e que chamou de "época de ouro"27. Um dos aspectos centrais em seu livro é a divisão da história da música urbana em quatro fases: fase primitiva (1889-1927); fase de ouro (1927-1946); fase moderna (1946-1958) - fase contemporânea (1958 em diante). Nota-se nessa divisão a preocupação em demonstrar a influência crescente da música estrangeira, como a música americana e o bolero, que também iriam contribuir para que o samba "original" fosse chamado de antiquado, na "época moderna" da música brasileira. Os dois culpados por essa perda de raízes seriam a indústria cultural e as influências estrangeiras que "sepultaram a expressão mais pura da alma nacional"28. A "fase de ouro", para o autor, foi a época em que o compositor se profissionalizou. Ainda assim, para Vasconcelos, as músicas eram compostas mais "por amor do que por dinheiro" e quase nada rendia senão o prazer de expressar-se esteticamente.

Como contraponto, a "fase moderna" já seria marcada pelos movimentos das sociedades arrecadadoras e a música passou a ser um negócio como qualquer outro. Surgiu então uma nova casta musical que desalojou a antiga, pois a grande força não viria mais da arte enquanto expressão estética, mas sim do dinheiro. Além deste aspecto, a influência da música americana e do bolero tinha feito com que o samba tradicional parecesse antiquado e "quadrado". Pode-se verificar nesse posicionamento do autor a necessidade da preservação da memória musical mais pura, anti-comercial, cujo momento estaria na fase de ouro. O livro foi lançado em meios às polêmicas que cercavam a consagração da Bossa Nova, e tinha um claro objetivo de elogiar uma outra vertente da música popular brasileira, ainda que não desqualificasse completamente essa nova experiência musical.

Os trabalhos escritos e a vigorosa atuação pública (na imprensa e no rádio) de Almirante, Lúcio Rangel e Ary Vasconcelos marcaram uma fase importante na historiografia da música popular brasileira. Não se pode dizer que os chamados "folcloristas da cidade" tinham um projeto ideológico claro e orgânico. Mas interferiram nos meios de comunicação de massa para fazer com que suas idéias tivessem uma circulação mais ampla. Concordamos com a afirmação de que a principal vitória desse grupo foi o reconhecimento do samba como manifestação nacional e autêntica, consagrado através dos meios de comunicação29. Estabelecer uma tradição era interferir na formação da audiência, na medida em que o gênero samba estava plenamente constituído e possuía um público próprio. Na virada dos anos 40 para os anos 50, tratava-se de afirmar um gênero específico, que deveria trazer uma marca de origem - o samba - contra outros gêneros reconhecíveis que interferiam na audiência nacional - como o jazz, o bolero e a rumba. Mas no final dos anos 50, a Bossa Nova iria abalar toda a estrutura de criação e audição, baseada nos gêneros estabelecidos, na medida em que procurava uma renovação dentro da tradição do samba. Neste momento, o apelo à tradição ganhava um novo impulso. Tratava-se de recolocar a "evolução" da tradição em consonância com as marcas de origem.

JOSÉ RAMOS TINHORÃO: A CRÍTICA DA "MODERNA MPB"

Herdeiro, em parte, do pensamento folclorista que analisamos, José Ramos Tinhorão ocupa um lugar destacado na historiografia da música brasileira, não só pela sua grande produção bibliográfica 30, como também pela sua verve polemista. Tinhorão ganhou fama (e desafetos) ao se pautar por um projeto historiográfico que buscava delimitar (radicalmente, diga-se) as marcas de origem da música brasileira, num momento em que a Bossa Nova apontava mais para uma ruptura, ainda que buscando inspiração no "morro" (como ocorreu na sua vertente nacionalista, com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou em Orlando Silva e nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto).

A idéia básica, quase um leit-motif que perpassa toda a obra de Tinhorão, está em definir um tipo de nacionalismo com base num pensamento folclorista que enfatiza a ligação direta entre "autenticidade" cultural e base social (grupos de "negros e pobres"). Sob essa ótica, há uma preocupação em separar o que é popular e o que é folclórico: a música folclórica seria aquela de autor desconhecido, transmitida oralmente de geração em geração; a música popular, ao contrário, seria a composta por autores conhecidos e divulgada por meios gráficos (ou seja, através da gravação e venda de discos, partituras, fitas, filmes etc), cujo lugar social são as cidades industrializadas. Enquanto as criações populares (individuais) se mantiveram organicamente ligadas ao universo "folclórico" (coletivo), tal como é definido por Tinhorão, a música brasileira manteve um núcleo de autenticidade, sendo efetivamente "popular e brasileira". Na medida em que as canções passaram a ser direcionadas para o rádio, a partir dos anos 30, e, nos anos 60, para a TV, ela foi dissociando-se da sua base social "originária". Nesta linha de argumentação, a Bossa Nova representava o momento máximo da ruptura com as origens, logo, com a autenticidade.

Em seus livros iniciais, abertamente polemistas31, Tinhorão construiu verdadeiros manifestos contra a hegemonia da Bossa Nova e da "Moderna" MPB (hegemonia consolidada em torno dos programas de televisão) na nova audiência musical das grandes cidades brasileiras. Suas afirmações eram claras:

No caso especial do Brasil, a realidade desse mecanismo de dominação cultural [o mercado internacionalizado ] gerou uma intervenção contínua no processo evolutivo da música urbana, tornando-se mais forte à medida que a classe média se foi apropriando dos gêneros criados pelas camadas populares das cidades que se nutria do material folclórico estruturado após quatro séculos de vida rural32.

Nesse raciocínio, um outro grupo social ("classe média branca e internacionalizada") se apropriou dos materiais originais da música brasileira, diluindo-os em estruturas e ornamentos ditados pela indústria cultural internacionalizada, cuja matriz se encontraria fora do espaço do "nacional-popular". Tinhorão defende a tese da expropriação da música popular pela classe média, cuja conseqüência inevitável foi a perda de referenciais de origem. Historicamente, Tinhorão destaca dois momentos cruciais, onde este processo de expropriação está bem marcado: o surgimento do grupo de Vila Isabel, nos anos 30, e a Bossa Nova, no final dos anos 50. Este último movimento, mais do que se apropriar do material musical popular, deformou-o num nível tão elevado, que o teria diluído no jazz. Essa é a sombria conclusão de Tinhorão, na contracorrente da euforia gerada pela renovação da música brasileira, nos anos 60, entre artistas e intelectuais de esquerda. Diz ele:

O amoldamento progressivo da chamada música do meio do ano ao gosto internacional, desde o samba-canção abolerado da década de 40, tinha conseguido descaracterizar por tal forma o que ainda existia de ligação com as fontes de tradição popular brasileira, que a música urbana, ao nível da classe média ia entrar numa nova fase: a de procurar no chamados 'sons universais' propostos pela indústria do disco, a fim de obter o alargamento do mercado em nome da cultura de massa"33.

A partir dos anos 70, os livros de José Ramos Tinhorão procuraram incorporar uma periodização marcada pela longa duração e por um aporte documental extenso. Mas o tema da expropriação cultural continuou sendo o eixo da sua argumentação, dando um tom de denúncia à sua obra, direcionada contra os rumos da chamada MPB (com maiúsculas), tida por ele como um produto da classe média internacionalizada e voltada para os interesses das grandes gravadoras multinacionais. Nesse sentido, sua obra foi a ponta de lança de um pensamento ancorado no folclorismo urbano, cujo eixo era a atuação de homens da imprensa (sediados sobretudo na imprensa carioca) e agitadores culturais.

O tema da expropriação cultural gerou outros trabalhos. Entre eles destacamos o pequeno livro de Muniz Sodré 34, publicado nos anos 60 e reeditado recentemente. Sodré trabalhou com a categoria da expropriação, mas a explicava do ponto de vista mais estrutural, como lógica de um processo produtivo que deu à classe média poder econômico para influenciar a indústria fonográfica. Apesar deste processo de expropriação, Sodré resgatou a importância do núcleo da sincopação, como elemento musical-cultural que garante uma identidade do samba, mesmo após décadas de mudanças impostas pela indústria fonográfica. Neste sentido, o samba, mais do que um gênero puro, seria um gênero-síntese, processo dinâmico de fusão de elementos negros, baseado na síncopa, que funcionaria como um princípio estruturador básico 35.

Muniz Sodré destaca a importância do negro na formação do samba e seus vínculos religiosos, que se mantém como marca de origem. O samba é visto então como um movimento de continuidade e afirmação dos valores culturais negros, uma cultura não oficial e alternativa, que seria uma forma de resistência cultural ao modo de produção dominante da sociedade carioca do início do século XX. Sodré chama a comercialização do samba na década de 20, após o sucesso de Pelo Telefone, de "diáspora africana no Rio de Janeiro"36. Uma diáspora que manteve elementos de origem, embora não mais concentrados num lugar social específico.

Trabalhando ainda com o conceito de expropriação cultural do negro, aplicada ao universo específico das Escolas de Samba e dos desfiles de carnaval, a socióloga Ana Maria Rodrigues defende a tese de que o "branqueamento" e "usurpação" das festividades afro-brasileiras representou mais uma estratégia ideológica de afirmação da "democracia racial brasileira"37. A autora chega a uma conclusão diferente de Sodré, pois enfatiza que a estratégia da "sociedade branca dominante" foi eficaz e enfraqueceu o caráter étnico das associações carnavalescas dos negros (e no limite, do próprio samba, como gênero musical), impedindo que elas se tornassem elementos de construção de uma consciência negra. Mesmo assim, Ana Maria Rodrigues reconhecia que, apesar de tudo, as Escolas de Samba "sobrevivem ainda como celeiro de padrões culturais negros e [ ao mesmo tempo ] revelam estes mesmos padrões alterados e transformados em produtos culturais acabados"38. O que importa, para o nosso ensaio, é destacar que apesar de afirmar que não pretende "estabelecer a propriedade atual do samba ou querer que exista um fechamento de tais festas"39, Ana Maria chega a falar em uma "virgindade" das primeiras manifestações carnavalescas dos negros, tendo o samba ocupado um lugar central na "pureza" destas festividades40. A imagem da origem sócio-espacial do samba, tão forte em nossa literatura sobre o tema, é incorporada in totum pela autora: "É nas favelas que o samba tem oportunidade de evoluir, de se fortificar, em razão das características geográficas das favelas e suas formas peculiares de edificações, dificultando, automaticamente, a chegada de estranhos"41.

Se o tema da pureza étnica/social da origem do samba, de uma forma ou de outra (mais aberto aos contatos culturais ou não), permanecem fortes, sobretudo numa dada memória social de matriz nacionalista, parece-nos que, ao longo dos anos 80, ela começou a perder vigor nas análises propriamente acadêmicas sobre o tema. Em relação à questão específica da "pureza" das identidades negras em torno das práticas musicais do início do século, os trabalhos de Roberto Moura42 e Mônica Pimenta Velloso43 mostram como os espaços geridos pelas "tias baianas", nas casas, nos terreiros ou nos bairros, eram o epicentro de relações culturais e sociais muito complexas, por onde circulavam diversos grupos e identidades. Nestes territórios de encontro, em que pese todo o peso da discriminação racial e social, é que se constituiu um idioma musical igualmente complexo e entrecruzado. Elementos brancos e negros, práticas de resistência e de clientelismo, sonoridades africanas e européias, enfim, elementos díspares encontravam nestes espaços um território comum, ainda que efetivamente sintetizados sob o tempero de uma cultura afro-brasileira e negra.

REVISÕES HISTORIOGRÁFICAS SOBRE A QUESTÃO DAS ORIGENS

Se os autores ligados à imprensa, sobretudo à imprensa carioca, produziram várias obras, nas quais o problema central é determinar o lugar da origem e as formas evolutivas da música que conseguem recolocar a identidade sócio-musical brasileira, as revisões historiográficas recentes têm procurado criticar a própria categoria "origem", como eixo de um projeto historiográfico para a música popular brasileira. A produção ensaística ligada ao meio acadêmico, que se iniciou nos anos 70 e se consolidou nos anos 80, procurou enfatizar os novos padrões e identidades que os gêneros musicais urbanos tomaram, na medida em que foram configurando-se como músicas para consumo, voltadas para o mercado urbano. Nesse viés, o eixo central de análise não era mais a busca das origens, mas a crítica das origens. Entre as reflexões acadêmicas marcadas por este viés, produzidas a partir dos anos 80, destacamos alguns autores: José Miguel Wisnik, Jorge Caldeira e Hermano Vianna44.

José Miguel Wisnik, no texto intitulado "Getúlio da Paixão Cearense"45, procurou traçar um painel das clivagens que a música urbana brasileira sofreu, nas primeiras três décadas do século. Sua preocupação básica é esboçar uma reflexão sociológica e estética que não caia nas armadilhas da busca das origens, como uma positividade previamente dada. Wisnik evita trabalhar com espaços sociais polarizados - "morro" versus "cidade" ou "terreiro" versus "sala de concerto" - preferindo matizá-los, incorporando vários outros espaços intermediários, por onde se vivenciavam as experiências musicais. O modelo interpretativo de Wisnik destaca o jogo social ora de reconhecimento, ora de exclusão entre sambistas e elites. O jogo social obrigava a um conjunto de passagens entre estes espaços sociais, aos quais Wisnik chamou de "biombos". Estes "biombos", no sentido de territórios culturais de passagem46, permitiam o entrecruzamento de sinais culturais dos dois lados. Nos anos 30, quando do momento da reformulação da identidade nacional, esse jogo adquiriu ares de política cultural, permitindo um pacto sócio-cultural que garantia a eficácia de uma dupla estratégia: a autenticidade "nacional-popular" para o mundo político/intelectual e o prestígio do sambista pelo reconhecimento das elites. Mas Wisnik destaca um elemento que perturbava ambas as estratégias: o mercado.

Portanto, este autor colocou o problema das origens e da autenticidade sob suspeita, situando-o num jogo social que será reconfigurado pelo pacto populista pós-30. Este pacto, se não resolvia o problema da incorporação do "cidadão precário", sujeito do samba, ao menos criava um simulacro de identidade, que permitia ao popular ser incorporado pelo projeto nacional. Não como os intelectuais nacionalistas gostariam (e nesse sentido o projeto marioandradiano ficou inconcluso) mas como as indisciplinadas forças do mercado demandaram. O Estado Novo, ao mesmo tempo em que abrigava projetos de pedagogia cívico-nacionalista, cujo equacionamento do problema das origens e da autenticidade era crucial, ao mesmo tempo estimulava as forças do mercado que, no limite, inviabilizavam a manutenção de uma tradição purista, unívoca e linear. A tensão entre os dois projetos explica porque o samba será o gênero-matriz da identidade musical brasileira, mesmo quando misturado a outros elementos. O samba era o ponto de encontro das audiências, e seu reconhecimento pelos intelectuais do Estado Novo, que passaram a defender sua "domesticação", representa o reconhecimento das forças do mercado sobre os projetos estético-ideológicos da elite. O samba abria "o espectro de repertório da Rádio Nacional em cujas ondas o imaginário do país viajava"47.

Na medida em que o samba era aceito como padrão de música brasileira por excelência, a busca das origens tornava-se uma estratégia de delimitação do espaço da própria cultura nacional, em meio às forças centrípetas do mercado. Em sua dissertação de mestrado Jorge Caldeira48 analisa a trajetória da consagração do samba, para o qual concorreram novos hábitos de composição, produção, circulação e escuta musical. Para Caldeira, uma das marcas de origem do samba, é justamente a estratégia assumida por Donga, ao gravar Pelo Telefone, de levar o samba para fora dos espaços sociais que lhe deram origem (os círculos restritos de músicos negros e populares). Como eixo analítico para criticar o pensamento historiográfico marcado pelo culto às origens, Caldeira propõe uma série de análises entrecruzadas, problematizando os pólos que demarcam os debates: pólo coletivo (casa da Tia Ciata) versus pólo individual (Donga, Pelo Telefone) e pólo negativo (artificial / comercial / massa) versus pólo positivo (autêntico / cultural / étnico).

Para Caldeira, se é possível falar em "evolução" do samba, deve-se levar em conta o processo amplo que está em jogo: "(...) não é apenas a criação de uma forma musical, mas também um fenômeno social que envolve, ao mesmo tempo, a individualização da figura do autor, a circulação da obra criada, num meio social amplo, por meios mecânicos"49.

O maior paroxismo que o autor destacou é o fato, inusitado, de que o samba gravado (por meios elétricos) aproximou-se do som da "roda": vozes mais naturais, percussão (feita por ritmistas negros), aumento do coro. Essa afirmação pode ser vista como uma proposta de revisão radical da dicotomia estabelecida nos anos 30, por Francisco Guimarães, entre a "roda" e o disco, sendo este último o pólo negativo e desagregador da "autenticidade" do samba. Síntese da era do rádio e do samba gravado, Noel Rosa surge como uma figura emblemática. Para Caldeira, Noel encarna o compositor voltado para as massas anônimas, e o que estava em jogo na sua obra não era o problema da autenticidade, mas da formulação de novas soluções estéticas, voltadas para audiências mais amplas.

Sinhô e Noel Rosa são protagonistas importantes na análise de Caldeira, como herdeiros da tradição de individualização da autoria, iniciada por Donga, de um tipo de música que até então era um fenômeno coletivo (roda de samba). Sendo assim, a trajetória nascente do samba seria marcada por um ato de ruptura e não de continuidade. São esses nomes que, ao longo dos anos 20 e 30, iriam completar o ciclo de formação do samba como padrão de música urbana brasileira. Mas enquanto em Sinhô ainda predominava a criação do samba por encomendas e o objetivo era agradar um público qualificado (inserido nas malhas da sociedade do favor que a malandragem ensejava), em Noel a canção já era popular, ou seja, produzida para um público anônimo, amplo e impessoal: as massas urbanas. Enfim, para o autor, é na trajetória roda-disco, pensada a partir de tensões e descontinuidades, que deve ser situada a questão da "origem" de canção urbana brasileira, baseada no samba como gênero-matriz. Esta posição afasta o autor das tendências que buscam enfatizar uma identidade constituída de uma vez por todas, como marca de uma origem, e que vai se perdendo na "ida ao mercado".

Em seu livro publicado em meados do anos 90, Hermano Vianna50 destaca que o samba não nasceu "autêntico", mas foi "autenticado" ao longo dos anos 20 e 30. Dentro desses aspectos, a tese central desse trabalho está no processo de "invenção de uma tradição"51 do samba como expressão social de raiz. Este processo foi um dos parâmetros fundamentais da mediação cultural pela qual o samba passou de música "marginal" a música "brasileira". Outro problema central investigado por Vianna, a partir dos encontros sócio-culturais e ideológicos, é a clivagem que a questão da mestiçagem sofreu nos anos 20 e 30: "da raiz dos males do Brasil à definidora do caráter nacional."52 Esse é um mistério do qual o samba é locus fundamental, pois muda o parâmetro pelo qual se pensa a nacionalidade.

O autor rejeita as teses que localizam o samba como patrimônio cultural negro, expropriado pelos brancos e transformado em artigo de consumo. Vianna tenta demonstrar que boa parte das elites intelectuais, ainda que sob o signo do exótico, sempre foram atentas aos sons das ruas, como por exemplo o choro e a modinha. Seu livro trabalha a idéia de que mitos, como o da autenticidade do samba de raiz, da resistência cultural que ele teria desempenhado, são invenções históricas de forte caráter ideológico. É a invenção da tradição que, a partir de práticas sociais do presente, se ancora com tal força no passado, que muitas vezes essas práticas passam a ser vistas como um processo herdado "naturalmente", sem a mediação de interesses e ideologias que buscam a legitimação histórica. Aliás, o maior ou menor grau de "naturalização" e diluição dos rituais inventados no fundo dos tempos, é o termômetro da eficácia (ou não) do processo de "invenção da tradição".

Vianna também demonstra que a fluidez do processo social do Rio de Janeiro sempre propiciou encontros de diversos segmentos sociais, burlando fronteiras morais, culturais e econômicas. São esses encontros, sistematizados como procedimento cultural, que acabariam servindo de cimento a uma nova idéia de nação. O autor sugere que a incorporação da cultura popular feita pelo Estado Novo getulista, não foi simplesmente uma expropriação cultural e sim a formulação ideológica de uma tendência histórica ancorada na experiência de vários segmentos sociais: o Estado Novo teria se aproveitado de uma prática cultural propícia à diluição de fronteiras e conflitos, utilizando o samba como laboratório cultural na construção de uma cultura nacional.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os autores arrolados, situados em dois eixos analíticos opostos, mas desenvolvendo sua argumentação em diversas direções, parecem extrair conclusões diferentes de um mesmo conjunto de referências musicais. Neste sentido, poderíamos nos colocar uma questão básica: qual o lugar das experiências e obras musicais em todo este debate? Como o signo musical se presta a tamanho leque de argumentações e contra-argumentações, gerando conclusões tão diferentes? Estas questões nos levam ao problema metodológico central de uma história social da música renovada: a capacidade de trabalhar as fontes musicais em toda sua polifonia de sons, explorando os diversos tempos históricos que as obras, neste caso as obras musicais, são portadoras. Arnaldo Contier nos lembra que:

Os sentidos enigmáticos e polissêmicos dos signos musicais favorecem os mais diversos tipos de escutas ou interpretações - verbalizadas ou não - de um público ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A partir destas concepções, a execução de uma mesma peça musical pode provocar múltiplas "escutas" (conflitantes ou não) nos decodificadores de sua mensagem (...) de acordo com uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do tempo histórico 53.

Os trabalhos historiográficos produzidos a partir de meados dos anos 80 parecem estar tentando encarar o desafio de "favorecer a escuta simultânea e sincrônica das fontes musicais"54 sem reduzir a história da música (brasileira) a um mero apêndice da história da sociedade ou da história das idéias. Mas essa tarefa não é simples de ser realizada. Na nossa opinião, os programas de pós-graduação em História (e talvez de Ciências Humanas em geral) ainda estão longe da sistematização crítica do debate (o que implicaria em diálogos constantes entre as instituições e especialistas), bem como do mapeamento metódico de todo potencial documental, que nos permita consolidar um efetivo domínio historiográfico em torno da música popular brasileira. Sem esquecer a necessidade, imposta pela própria natureza do objeto, de estimular as trocas interdisciplinares.

Quando conseguirmos vencer o isolamento disciplinar e o diletantismo que muitas vezes marcaram as reflexões sobre a história da música no Brasil, a historiografia talvez consiga fazer jus à rica polifonia de sons e idéias que constituíram fantásticas experiências musicais na sociedade brasileira, ao longo do século XX.

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Revista Brasileira de História

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