Santo guerreiro supera resistências e conquista devotos
FRANCISCO LUIZ NOEL
Provas de que ele teria vivido um dia em carne e osso são inexistentes, assim como relatos documentados de seus milagres, sem contar a façanha de ter abatido um dragão a golpes de lança, desferidos do alto de um cavalo branco. Nem a Igreja põe a mão no fogo quando o assunto é a vida terrena de São Jorge, mas os adeptos desse ícone da religiosidade popular no Brasil não dão a mínima para a reticência das autoridades eclesiásticas e a resistência dos incrédulos. Aos que só acreditam vendo, os devotos respondem com a fé nos poderes de proteção do santo guerreiro, cultuado com reverência fervorosa no dia de sua morte presumida – 23 de abril – e invocado ao longo do ano como poucas outras santidades do panteão católico.
Figura de envergadura nacional entre os brasileiros, São Jorge tem seu maior santuário nas terras cariocas, onde ofusca o prestígio do padroeiro do Rio de Janeiro, São Sebastião, festejado no feriado municipal de 20 de janeiro. Um e outro encarnam a condição de mártir, como militares convertidos ao dogma cristão e perseguidos pelo Império Romano. “Os dois eram cultuados em Portugal quando teve início a colonização do Brasil. O primeiro, evocado com grito de guerra no começo das batalhas campais; o segundo, contra a peste”, diz na Universidade Federal Fluminense (UFF) a historiadora Georgina Silva dos Santos, que estuda a religiosidade popular e tem tese de mestrado sobre a irmandade portuguesa de São Jorge nos tempos da Inquisição.
Na igreja carioca dedicada a São Jorge, matriz da paróquia do subúrbio de Quintino, o pároco Marcelino Modelski traça um paralelo entre os adeptos dos dois mártires. “Os devotos de São Sebastião têm uma característica: de modo mais expressivo, são católicos tradicionais, fiéis de preceito, de missa dominical, que têm na Igreja não apenas uma referência ocasional, mas uma vivência comunitária. É uma fé mais madura, mais esclarecida, que busca o santo não para pedir coisas, mas como inspiração para uma vida de santidade, de doação, de desprendimento, de serviço ao próximo, de amor a Cristo.” O pragmatismo marca os seguidores de São Jorge, que apelam por proteção e força frente às adversidades do dia a dia.
Sob o crivo da ortodoxia religiosa, as duas entidades detêm status distinto no Cânon do Vaticano, que contém uma longa lista de santos oficiais da Igreja. O respeito devocional ao Dia de São Jorge não é obrigatório para os fiéis desde maio de 1969, quando o papa Paulo VI passou a limpo o calendário litúrgico e tornou facultativo o culto de vários santos destituídos de provas documentais de que tenham existido – carência de que não partilha Sebastião, com vida comprovada na região da Itália, no século 3. “Não há dados históricos sobre a vida de São Jorge, mas, desde o início do cristianismo, a Igreja acolheu e respeitou o processo de transmissão da devoção”, salienta o pároco de Quintino.
Sempre figurado com elmo e lança de militar medieval, capa vermelha, cavalo branco e o dragão subjugado no chão, São Jorge ganhou fama por personificar valores como fé e coragem diante das forças associadas ao mal. Padroeiro de Portugal e Inglaterra, da espanhola Catalunha e do escotismo, o santo é personagem recorrente na cultura brasileira. Além de venerado em altares e terreiros, inspirou o cineasta Glauber Rocha em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ícone do Cinema Novo, e compositores como Jorge Benjor, Caetano Veloso e Djavan. Em São Paulo, é invocado como protetor pelos corintianos; no Rio, influencia até o ilegal jogo do bicho. Em 23 de abril, como é grande a jogatina no cavalo, o animal é “cotado” pelos bicheiros, que pagam prêmios menores nas apostas feitas no quadrúpede.
Proteção e segurança
Padre Marcelino e a historiadora Georgina creditam à força de dois fatores a popularidade do santo guerreiro no Rio: o sincretismo entre o mundo católico e as religiões afro-brasileiras e o sentimento de insegurança reinante entre a população. “A associação entre São Jorge e os orixás africanos contribuiu e ainda contribui para torná-lo uma entidade popular, ultrapassando os limites impostos por classe social, gênero ou etnia”, diz a pesquisadora. Para os umbandistas cariocas, ele é Ogum, guerreiro valente e senhor do ferro, embora a tradição baiana vincule Jorge a Oxóssi, protetor das matas e ciclos lunares. Por isso, o santo passou a bater-se com o dragão na Lua, cenário que só aparece aos olhos dos devotos brasileiros.
O ardor devocional pelo guerreiro, como intermediário do socorro divino ou como entidade autossuficiente, cresce de forma proporcional ao medo da violência urbana. “O Rio vive uma guerra há décadas. O governo se omite, inexistem políticas públicas e a questão é tratada como problema de polícia, e não de garantia de direitos; em consequência, as pessoas buscam quem as defenda. Elas procuram um herói, um lutador, alguém capaz de conter a força do mal, da morte, da violência. São Jorge faz esse papel”, diz o padre, apontando uma identificação particular dos jovens com o santo combatente. “A imagem da vitória sobre o dragão é fortíssima. O devoto diz que é guerreiro como Jorge e faz tatuagens para mostrar isso. Na oração, reza que está vestido com as armas de Jorge, como se dissesse: ‘Sou lutador e vou vencer’.”
Não é por menos que a economia do estado do Rio de Janeiro para pela terceira vez neste 23 de abril, dia transformado em feriado pelo governador Sérgio Cabral Filho, que sancionou, em março de 2008, lei aprovada pela Assembleia Legislativa. Autor do projeto, o hoje deputado Jorge Babu conseguiu alçar a data a feriado municipal no Rio em 2001, quando era vereador. Fazendo eco a queixas surgidas no meio empresarial, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a decisão do governador. Aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) cabe, agora, decidir se o dia do santo guerreiro continuará sendo de descanso ou voltará a ser de trabalho para os fluminenses.
Muito antes de 23 de abril ser feriado, a afluência de fiéis à Igreja de São Jorge dava prova da pujança da devoção popular. Na festa de 2009, estima o pároco Marcelino Modelski, 100 mil pessoas passaram pelo templo de Quintino, na Rua Clarimundo de Melo. Para fazer frente ao vaivém das multidões na igreja e nas barraquinhas ao redor, a paróquia mobilizou 300 religiosos e leigos. As cerimônias foram abertas às 5 horas, com alvorada ao som de fogos de artifício, que espocaram também em muitos pontos da cidade. Nove missas foram celebradas na igreja, com destaque para a das 19 horas, assistida pelo prefeito Eduardo Paes, de blusa vermelha e branca – as cores do santo. Em seguida, a tradicional procissão saiu pelas ruas do bairro.
Flores, palmas e espadas-de-são-jorge sobressaem entre as oferendas comuns ao santo. “Na festa, temos uma equipe exclusiva para receber as flores, que são passadas diante da imagem, abençoadas e devolvidas, para ser levadas para as casas”, informa o padre. Há nove anos na paróquia, ele assinala que a graça mais solicitada ao santo é a proteção frente às dificuldades da existência cotidiana. Na data, devido à gigantesca quantidade de fiéis, a igreja não atende confissões e ministra a comunhão numa capela montada especialmente para a ocasião. A tradição inclui uma grande queima de velas – “um problema para a igreja e para os bombeiros”, preocupa-se o religioso. Todos os anos, mais de uma tonelada de velas alimenta o fogaréu.
Em volta da matriz, a festa alegra também os donos das barraquinhas. A fé em São Jorge movimenta um diversificado e multicolorido comércio de bens de cunho religioso, marcado pela informalidade. Nas barracas, os fiéis encontram de tudo um pouco com a imagem do santo, incansável na cena em que, do alto do cavalo, nocauteia o dragão peçonhento. A variedade inclui de imagens de gesso e outros materiais, em todos os tamanhos, a camisetas com a estampa do guerreiro, passando por escapulários, gravuras de parede e adesivos coloridos para vidros e carroceria de automóveis.
Exemplo de fé
Ao longo dos séculos, o apelo protetor de São Jorge relegou a segundo plano o exame racional de suas peripécias, a exemplo do que ocorre com outros santos e figuras lendárias, como o rei Artur, que a história não comprova ter vivido na Grã-Bretanha do século 6. “Nos domínios da fé popular, importa mais a eficácia simbólica do que propriamente a veracidade das informações”, explica a historiadora Georgina. “Ao prestar culto, o fiel pretende saturar-se da força extraordinária do santo para lidar com a realidade, injusta e opressora. A superação de um problema engendra uma relação de gratidão que se perpetua no tempo e reforça essa dependência.”
Nas pesquisas sobre a construção da imagem de São Jorge no imaginário popular, Georgina rastreou duas versões sobre a origem do santo. Segundo a mais antiga, que consta de um fragmento de texto em grego, ele foi torturado ao recusar-se a cultuar divindades pagãs. Por manter-se fiel a Jesus, recebeu marteladas na cabeça, calçou sapatos cheios de pregos, foi cortado a golpes de gládio (espada curta das legiões romanas) e bicado por aves de rapina. Sua sobrevivência ao martírio foi obra de Deus, que o fez ressuscitar três vezes. Numa das voltas à vida, o santo curou um boi, sarou o filho de uma viúva, ressuscitou 400 pagãos e arrematou o milagre batizando todos eles.
No século 4, assinala a historiadora, as narrativas sobre São Jorge foram rechaçadas pelo Concílio de Niceia, que as considerou destoantes das Escrituras. Nem por isso os seguidores abandonaram o santo, venerando-o em regiões costeiras do mar Mediterrâneo e no norte da Europa. No ano 916, nova versão sobre Jorge reforçou sua legenda, adicionando detalhes mais verossímeis à vida do mártir. Segundo esse relato, ele foi homem rico na Capadócia, na atual Turquia, integrou o exército romano e negou-se a curvar-se aos deuses pagãos. Preso por ordem do imperador Diocleciano, doou os bens aos pobres e amargou suplícios cruéis, sempre operando milagres. Depois de converter a imperatriz ao cristianismo, foi condenado à decapitação.
Dragão em cena
O dragão entrou na lenda numa narrativa popular registrada no século 13 pelo arcebispo Jacopo de Varazze, de Gênova. Na coletânea de histórias Legenda Áurea, assinala a pesquisadora da UFF, Jacopo relata que o monstro flagelava a cidade de Lida e saciava a fome com animais entregues pelos moradores. Extintos os rebanhos, as oferendas passaram a ser humanas, por sorteio. Quando teve a filha sorteada, o rei não conseguiu quem a substituísse e foi obrigado a cedê-la ao martírio. Jorge passava pelo lugar e, vendo a jovem aos prantos à espera do dragão voraz, matou-o a golpes de lança. Modesto, dispensou a mão da moça, oferecida pelo pai, e fez dois pedidos ao rei: a propagação da fé cristã e o socorro aos pobres.
Como guardião da fé e defensor de povos e territórios, São Jorge foi invocado por espanhóis e portugueses na resistência às invasões árabes e, do século 11 ao 15, na reconquista da península Ibérica. Em Portugal, no século 12, uma igreja foi dedicada a ele pelo fundador do reino, Afonso Henriques. Com a ascensão ao poder da dinastia dos Avis, o santo foi alçado a patrono do país em formação e deu nome ao paço real – o Castelo de São Jorge, em Lisboa. Na fase dos Descobrimentos, na virada do século 15 para o 16, a figura do guerreiro em luta com o dragão era lembrada pelos portugueses nas aventuras nos mares e lugares em que aportavam, dando nome a uma ilha nos Açores, fortificações na costa africana e, no Brasil, à freguesia de São Jorge dos Ilhéus, em terras que hoje pertencem ao estado da Bahia.
A popularidade de São Jorge entre os lusitanos difundiu-se com a incorporação de sua imagem às celebrações do Corpo de Deus, no fim do século 14, destaca Georgina. A festa de Corpus Christi era a mais concorrida de Portugal, reunindo o povo, autoridades da Igreja e do Estado, contando às vezes com a participação do rei. No Brasil, relata a pesquisadora, o santo guerreiro é venerado desde os primórdios da colonização portuguesa, no século 16. “A primeira notícia é trazida indiretamente pelo padre Manuel da Nóbrega, que afirma ter realizado na Bahia uma procissão do Corpo de Deus, segundo os moldes portugueses. Portanto, a dar crédito à voz do jesuíta, São Jorge saiu no cortejo de 1549”, observa Georgina.
A historiadora explica que o culto ao santo tomou impulso no Brasil depois que a família real portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. Sob dom João VI, Pedro I e Pedro II, a procissão de Corpus Christi ganhou pompa, trasladando ao Brasil a presença de São Jorge nas celebrações. Em sua pesquisa, Georgina reconstituiu o espetáculo de devoção que caracterizava a data: “A aparição do santo no cortejo era o clímax da festa. Vestido como um general, sobre um garboso cavalo, o mártir era saudado com canhonaços. A única figura a rivalizar com ele era o próprio imperador. O aparato cênico da festa decerto contribui para destacá-lo entre os santos do panteão católico”.
Da Capadócia ao Corinthians
No esporte das multidões, a invocação ao santo guerreiro é uma das armas dos corintianos para vencer o dragão nos gramados. Com sede no Parque São Jorge, situado no bairro paulistano do Tatuapé, o Corinthians mantém uma capela dedicada ao santo, representado no altar por uma vistosa imagem comprada na Turquia pela ex-presidente do clube Marlene Matheus, esposa do lendário ex-presidente Vicente Matheus, morto em 1997. Talhada à mão em madeira, a figura do santo foi benzida pelo papa João Paulo II em 1990, junto com camisas do time levadas ao Vaticano por Marlene e uma sobrinha, após gestões eclesiais de dois corintianos – o então cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o monsenhor Arnaldo Beltrami, capelão do clube, falecido em 2001.
A capela foi erguida em 1969, perto de uma bica de água em que umbandistas – entre eles, Pai Nilson, famoso no Corinthians – realizavam rituais com pedidos a Ogum. “Eu via que o culto a São Jorge era forte na umbanda e queria para os católicos uma imagem feita no lugar em que ele nasceu, abençoada pelo papa”, conta Marlene Matheus. A devota lamenta que, nas procissões feitas no clube em 23 de abril, a imagem usada seja menor, de gesso, comprada no comércio local. Em 2008, levada pelos fiéis à capela depois de missa no salão da sede, a figura caiu do andor e espatifou-se. A comoção foi grande, como se já não fosse pouco o Corinthians ter ficado de fora do Campeonato Brasileiro de Futebol daquele ano, rebaixado à segunda divisão.
Marlene Matheus chegou ao papa, em 1990, graças à intermediação do cardeal Arns, que levou a questão a auxiliares de João Paulo II, como o brasileiro dom Geraldo Majella Agnelo, atual cardeal arcebispo de Salvador. Duas décadas antes, Arns havia saído em defesa de São Jorge quando o guerreiro corria riscos na reforma de Paulo VI. No livro Corintiano, Graças a Deus, de 2004, ele conta que escreveu um bilhete ao pontífice: “Santo Padre, nosso povo não está entendendo direito a questão. São Jorge é muito popular no Brasil, sobretudo entre a imensa torcida do Corinthians, o clube de futebol mais popular de São Paulo”. Demonstrando atenção ao tema, o pontífice respondeu também num bilhete, conservado pelo religioso brasileiro: “Não podemos prejudicar nem a Inglaterra nem o Corinthians”.
Entre os paulistanos, contudo, São Jorge não tem o prestígio adquirido no Rio de Janeiro e é bem menos lembrado que Santo Expedito e São Judas Tadeu. Santo das causas urgentes, Expedito, que também foi militar romano, é venerado em 19 de abril e atrai mais de 100 mil pessoas à tradicional festa na igreja do Jaçanã; Judas Tadeu, apóstolo de Jesus e santo dos desesperados, também arrasta multidões a seu santuário, no Jabaquara, a cada 28 de outubro. No Rio, depois de São Jorge, outro santo bem cotado, além do padroeiro e de Judas Tadeu, é Francisco de Assis, protetor dos animais, lembrado em 4 de outubro. Em alta conta entre os fiéis também estão os santos juninos – Antônio, religioso português do século 12, festejado no dia 13, e os apóstolos João e Pedro, nos dias 24 e 29 –, reverenciados de norte a sul do país.
Revista Problemas Brasileiros
Figura de envergadura nacional entre os brasileiros, São Jorge tem seu maior santuário nas terras cariocas, onde ofusca o prestígio do padroeiro do Rio de Janeiro, São Sebastião, festejado no feriado municipal de 20 de janeiro. Um e outro encarnam a condição de mártir, como militares convertidos ao dogma cristão e perseguidos pelo Império Romano. “Os dois eram cultuados em Portugal quando teve início a colonização do Brasil. O primeiro, evocado com grito de guerra no começo das batalhas campais; o segundo, contra a peste”, diz na Universidade Federal Fluminense (UFF) a historiadora Georgina Silva dos Santos, que estuda a religiosidade popular e tem tese de mestrado sobre a irmandade portuguesa de São Jorge nos tempos da Inquisição.
Na igreja carioca dedicada a São Jorge, matriz da paróquia do subúrbio de Quintino, o pároco Marcelino Modelski traça um paralelo entre os adeptos dos dois mártires. “Os devotos de São Sebastião têm uma característica: de modo mais expressivo, são católicos tradicionais, fiéis de preceito, de missa dominical, que têm na Igreja não apenas uma referência ocasional, mas uma vivência comunitária. É uma fé mais madura, mais esclarecida, que busca o santo não para pedir coisas, mas como inspiração para uma vida de santidade, de doação, de desprendimento, de serviço ao próximo, de amor a Cristo.” O pragmatismo marca os seguidores de São Jorge, que apelam por proteção e força frente às adversidades do dia a dia.
Sob o crivo da ortodoxia religiosa, as duas entidades detêm status distinto no Cânon do Vaticano, que contém uma longa lista de santos oficiais da Igreja. O respeito devocional ao Dia de São Jorge não é obrigatório para os fiéis desde maio de 1969, quando o papa Paulo VI passou a limpo o calendário litúrgico e tornou facultativo o culto de vários santos destituídos de provas documentais de que tenham existido – carência de que não partilha Sebastião, com vida comprovada na região da Itália, no século 3. “Não há dados históricos sobre a vida de São Jorge, mas, desde o início do cristianismo, a Igreja acolheu e respeitou o processo de transmissão da devoção”, salienta o pároco de Quintino.
Sempre figurado com elmo e lança de militar medieval, capa vermelha, cavalo branco e o dragão subjugado no chão, São Jorge ganhou fama por personificar valores como fé e coragem diante das forças associadas ao mal. Padroeiro de Portugal e Inglaterra, da espanhola Catalunha e do escotismo, o santo é personagem recorrente na cultura brasileira. Além de venerado em altares e terreiros, inspirou o cineasta Glauber Rocha em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ícone do Cinema Novo, e compositores como Jorge Benjor, Caetano Veloso e Djavan. Em São Paulo, é invocado como protetor pelos corintianos; no Rio, influencia até o ilegal jogo do bicho. Em 23 de abril, como é grande a jogatina no cavalo, o animal é “cotado” pelos bicheiros, que pagam prêmios menores nas apostas feitas no quadrúpede.
Proteção e segurança
Padre Marcelino e a historiadora Georgina creditam à força de dois fatores a popularidade do santo guerreiro no Rio: o sincretismo entre o mundo católico e as religiões afro-brasileiras e o sentimento de insegurança reinante entre a população. “A associação entre São Jorge e os orixás africanos contribuiu e ainda contribui para torná-lo uma entidade popular, ultrapassando os limites impostos por classe social, gênero ou etnia”, diz a pesquisadora. Para os umbandistas cariocas, ele é Ogum, guerreiro valente e senhor do ferro, embora a tradição baiana vincule Jorge a Oxóssi, protetor das matas e ciclos lunares. Por isso, o santo passou a bater-se com o dragão na Lua, cenário que só aparece aos olhos dos devotos brasileiros.
O ardor devocional pelo guerreiro, como intermediário do socorro divino ou como entidade autossuficiente, cresce de forma proporcional ao medo da violência urbana. “O Rio vive uma guerra há décadas. O governo se omite, inexistem políticas públicas e a questão é tratada como problema de polícia, e não de garantia de direitos; em consequência, as pessoas buscam quem as defenda. Elas procuram um herói, um lutador, alguém capaz de conter a força do mal, da morte, da violência. São Jorge faz esse papel”, diz o padre, apontando uma identificação particular dos jovens com o santo combatente. “A imagem da vitória sobre o dragão é fortíssima. O devoto diz que é guerreiro como Jorge e faz tatuagens para mostrar isso. Na oração, reza que está vestido com as armas de Jorge, como se dissesse: ‘Sou lutador e vou vencer’.”
Não é por menos que a economia do estado do Rio de Janeiro para pela terceira vez neste 23 de abril, dia transformado em feriado pelo governador Sérgio Cabral Filho, que sancionou, em março de 2008, lei aprovada pela Assembleia Legislativa. Autor do projeto, o hoje deputado Jorge Babu conseguiu alçar a data a feriado municipal no Rio em 2001, quando era vereador. Fazendo eco a queixas surgidas no meio empresarial, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a decisão do governador. Aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) cabe, agora, decidir se o dia do santo guerreiro continuará sendo de descanso ou voltará a ser de trabalho para os fluminenses.
Muito antes de 23 de abril ser feriado, a afluência de fiéis à Igreja de São Jorge dava prova da pujança da devoção popular. Na festa de 2009, estima o pároco Marcelino Modelski, 100 mil pessoas passaram pelo templo de Quintino, na Rua Clarimundo de Melo. Para fazer frente ao vaivém das multidões na igreja e nas barraquinhas ao redor, a paróquia mobilizou 300 religiosos e leigos. As cerimônias foram abertas às 5 horas, com alvorada ao som de fogos de artifício, que espocaram também em muitos pontos da cidade. Nove missas foram celebradas na igreja, com destaque para a das 19 horas, assistida pelo prefeito Eduardo Paes, de blusa vermelha e branca – as cores do santo. Em seguida, a tradicional procissão saiu pelas ruas do bairro.
Flores, palmas e espadas-de-são-jorge sobressaem entre as oferendas comuns ao santo. “Na festa, temos uma equipe exclusiva para receber as flores, que são passadas diante da imagem, abençoadas e devolvidas, para ser levadas para as casas”, informa o padre. Há nove anos na paróquia, ele assinala que a graça mais solicitada ao santo é a proteção frente às dificuldades da existência cotidiana. Na data, devido à gigantesca quantidade de fiéis, a igreja não atende confissões e ministra a comunhão numa capela montada especialmente para a ocasião. A tradição inclui uma grande queima de velas – “um problema para a igreja e para os bombeiros”, preocupa-se o religioso. Todos os anos, mais de uma tonelada de velas alimenta o fogaréu.
Em volta da matriz, a festa alegra também os donos das barraquinhas. A fé em São Jorge movimenta um diversificado e multicolorido comércio de bens de cunho religioso, marcado pela informalidade. Nas barracas, os fiéis encontram de tudo um pouco com a imagem do santo, incansável na cena em que, do alto do cavalo, nocauteia o dragão peçonhento. A variedade inclui de imagens de gesso e outros materiais, em todos os tamanhos, a camisetas com a estampa do guerreiro, passando por escapulários, gravuras de parede e adesivos coloridos para vidros e carroceria de automóveis.
Exemplo de fé
Ao longo dos séculos, o apelo protetor de São Jorge relegou a segundo plano o exame racional de suas peripécias, a exemplo do que ocorre com outros santos e figuras lendárias, como o rei Artur, que a história não comprova ter vivido na Grã-Bretanha do século 6. “Nos domínios da fé popular, importa mais a eficácia simbólica do que propriamente a veracidade das informações”, explica a historiadora Georgina. “Ao prestar culto, o fiel pretende saturar-se da força extraordinária do santo para lidar com a realidade, injusta e opressora. A superação de um problema engendra uma relação de gratidão que se perpetua no tempo e reforça essa dependência.”
Nas pesquisas sobre a construção da imagem de São Jorge no imaginário popular, Georgina rastreou duas versões sobre a origem do santo. Segundo a mais antiga, que consta de um fragmento de texto em grego, ele foi torturado ao recusar-se a cultuar divindades pagãs. Por manter-se fiel a Jesus, recebeu marteladas na cabeça, calçou sapatos cheios de pregos, foi cortado a golpes de gládio (espada curta das legiões romanas) e bicado por aves de rapina. Sua sobrevivência ao martírio foi obra de Deus, que o fez ressuscitar três vezes. Numa das voltas à vida, o santo curou um boi, sarou o filho de uma viúva, ressuscitou 400 pagãos e arrematou o milagre batizando todos eles.
No século 4, assinala a historiadora, as narrativas sobre São Jorge foram rechaçadas pelo Concílio de Niceia, que as considerou destoantes das Escrituras. Nem por isso os seguidores abandonaram o santo, venerando-o em regiões costeiras do mar Mediterrâneo e no norte da Europa. No ano 916, nova versão sobre Jorge reforçou sua legenda, adicionando detalhes mais verossímeis à vida do mártir. Segundo esse relato, ele foi homem rico na Capadócia, na atual Turquia, integrou o exército romano e negou-se a curvar-se aos deuses pagãos. Preso por ordem do imperador Diocleciano, doou os bens aos pobres e amargou suplícios cruéis, sempre operando milagres. Depois de converter a imperatriz ao cristianismo, foi condenado à decapitação.
Dragão em cena
O dragão entrou na lenda numa narrativa popular registrada no século 13 pelo arcebispo Jacopo de Varazze, de Gênova. Na coletânea de histórias Legenda Áurea, assinala a pesquisadora da UFF, Jacopo relata que o monstro flagelava a cidade de Lida e saciava a fome com animais entregues pelos moradores. Extintos os rebanhos, as oferendas passaram a ser humanas, por sorteio. Quando teve a filha sorteada, o rei não conseguiu quem a substituísse e foi obrigado a cedê-la ao martírio. Jorge passava pelo lugar e, vendo a jovem aos prantos à espera do dragão voraz, matou-o a golpes de lança. Modesto, dispensou a mão da moça, oferecida pelo pai, e fez dois pedidos ao rei: a propagação da fé cristã e o socorro aos pobres.
Como guardião da fé e defensor de povos e territórios, São Jorge foi invocado por espanhóis e portugueses na resistência às invasões árabes e, do século 11 ao 15, na reconquista da península Ibérica. Em Portugal, no século 12, uma igreja foi dedicada a ele pelo fundador do reino, Afonso Henriques. Com a ascensão ao poder da dinastia dos Avis, o santo foi alçado a patrono do país em formação e deu nome ao paço real – o Castelo de São Jorge, em Lisboa. Na fase dos Descobrimentos, na virada do século 15 para o 16, a figura do guerreiro em luta com o dragão era lembrada pelos portugueses nas aventuras nos mares e lugares em que aportavam, dando nome a uma ilha nos Açores, fortificações na costa africana e, no Brasil, à freguesia de São Jorge dos Ilhéus, em terras que hoje pertencem ao estado da Bahia.
A popularidade de São Jorge entre os lusitanos difundiu-se com a incorporação de sua imagem às celebrações do Corpo de Deus, no fim do século 14, destaca Georgina. A festa de Corpus Christi era a mais concorrida de Portugal, reunindo o povo, autoridades da Igreja e do Estado, contando às vezes com a participação do rei. No Brasil, relata a pesquisadora, o santo guerreiro é venerado desde os primórdios da colonização portuguesa, no século 16. “A primeira notícia é trazida indiretamente pelo padre Manuel da Nóbrega, que afirma ter realizado na Bahia uma procissão do Corpo de Deus, segundo os moldes portugueses. Portanto, a dar crédito à voz do jesuíta, São Jorge saiu no cortejo de 1549”, observa Georgina.
A historiadora explica que o culto ao santo tomou impulso no Brasil depois que a família real portuguesa desembarcou no Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. Sob dom João VI, Pedro I e Pedro II, a procissão de Corpus Christi ganhou pompa, trasladando ao Brasil a presença de São Jorge nas celebrações. Em sua pesquisa, Georgina reconstituiu o espetáculo de devoção que caracterizava a data: “A aparição do santo no cortejo era o clímax da festa. Vestido como um general, sobre um garboso cavalo, o mártir era saudado com canhonaços. A única figura a rivalizar com ele era o próprio imperador. O aparato cênico da festa decerto contribui para destacá-lo entre os santos do panteão católico”.
Da Capadócia ao Corinthians
No esporte das multidões, a invocação ao santo guerreiro é uma das armas dos corintianos para vencer o dragão nos gramados. Com sede no Parque São Jorge, situado no bairro paulistano do Tatuapé, o Corinthians mantém uma capela dedicada ao santo, representado no altar por uma vistosa imagem comprada na Turquia pela ex-presidente do clube Marlene Matheus, esposa do lendário ex-presidente Vicente Matheus, morto em 1997. Talhada à mão em madeira, a figura do santo foi benzida pelo papa João Paulo II em 1990, junto com camisas do time levadas ao Vaticano por Marlene e uma sobrinha, após gestões eclesiais de dois corintianos – o então cardeal arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o monsenhor Arnaldo Beltrami, capelão do clube, falecido em 2001.
A capela foi erguida em 1969, perto de uma bica de água em que umbandistas – entre eles, Pai Nilson, famoso no Corinthians – realizavam rituais com pedidos a Ogum. “Eu via que o culto a São Jorge era forte na umbanda e queria para os católicos uma imagem feita no lugar em que ele nasceu, abençoada pelo papa”, conta Marlene Matheus. A devota lamenta que, nas procissões feitas no clube em 23 de abril, a imagem usada seja menor, de gesso, comprada no comércio local. Em 2008, levada pelos fiéis à capela depois de missa no salão da sede, a figura caiu do andor e espatifou-se. A comoção foi grande, como se já não fosse pouco o Corinthians ter ficado de fora do Campeonato Brasileiro de Futebol daquele ano, rebaixado à segunda divisão.
Marlene Matheus chegou ao papa, em 1990, graças à intermediação do cardeal Arns, que levou a questão a auxiliares de João Paulo II, como o brasileiro dom Geraldo Majella Agnelo, atual cardeal arcebispo de Salvador. Duas décadas antes, Arns havia saído em defesa de São Jorge quando o guerreiro corria riscos na reforma de Paulo VI. No livro Corintiano, Graças a Deus, de 2004, ele conta que escreveu um bilhete ao pontífice: “Santo Padre, nosso povo não está entendendo direito a questão. São Jorge é muito popular no Brasil, sobretudo entre a imensa torcida do Corinthians, o clube de futebol mais popular de São Paulo”. Demonstrando atenção ao tema, o pontífice respondeu também num bilhete, conservado pelo religioso brasileiro: “Não podemos prejudicar nem a Inglaterra nem o Corinthians”.
Entre os paulistanos, contudo, São Jorge não tem o prestígio adquirido no Rio de Janeiro e é bem menos lembrado que Santo Expedito e São Judas Tadeu. Santo das causas urgentes, Expedito, que também foi militar romano, é venerado em 19 de abril e atrai mais de 100 mil pessoas à tradicional festa na igreja do Jaçanã; Judas Tadeu, apóstolo de Jesus e santo dos desesperados, também arrasta multidões a seu santuário, no Jabaquara, a cada 28 de outubro. No Rio, depois de São Jorge, outro santo bem cotado, além do padroeiro e de Judas Tadeu, é Francisco de Assis, protetor dos animais, lembrado em 4 de outubro. Em alta conta entre os fiéis também estão os santos juninos – Antônio, religioso português do século 12, festejado no dia 13, e os apóstolos João e Pedro, nos dias 24 e 29 –, reverenciados de norte a sul do país.
Revista Problemas Brasileiros
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