sábado, 13 de março de 2010

Arenista, graças a Deus

Arenista, graças a Deus
Cartas revelam como pensavam os brasileiros que apoiavam a Arena, partido que representava a ditadura no Congresso
Lucia Grinberg

“Revolucionário de 64, ingressei na Arena não apenas por ser o partido da revolução, mas sim porque sempre fui contra o comunismo, a anarquia e a corrupção, razão pela qual consenti que minha esposa saísse em companhia de minhas cunhadas na passeata que deu início à revolução de 64, ‘COM DEUS PÁTRIA E FAMÍLIA’”. A carta acima foi enviada ao Diretório Nacional da Arena, e faz parte de um acervo doado ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) depois que o partido foi extinto, em 1980, por decisão de seu último presidente, José Sarney.

A julgar pela má fama atual, a Arena era um partido de fantasmas. Hoje ninguém se orgulha de ter pertencido à legenda governista durante o período militar, mas naquele tempo a coisa era bem diferente. O partido não só conquistava muitos votos, como angariava filiados e simpatizantes em todo o país. Os sentimentos que uniam os arenistas eram a aversão ao comunismo e a certeza de que a Revolução fora um bem para o país.

Com a deposição de João Goulart (1918-1976), no começo de abril de 1964, muitos políticos e sindicalistas foram cassados, mas os partidos continuaram em atividade. Após as eleições para governador em 1965, nas quais venceram os candidatos do Partido Social Democrático (PSD) na Guanabara e em Minas Gerais, o governo determinou, por meio do Ato Institucional n°2 (AI-2), em 27 de outubro daquele ano, a extinção de todos os partidos políticos. No mês seguinte, o Ato Complementar n°4 estabeleceu as condições para a formação de novos partidos. Condições bem limitadoras, por sinal. Um partido só poderia ser organizado por membros do Congresso Nacional, em número não inferior a 120 deputados e 20 senadores. As novas legendas não poderiam usar quaisquer símbolos dos grupos extintos e nem mesmo a palavra “partido” em seus nomes.

A iniciativa do governo pretendia descaracterizar as organizações em atividade desde 1945. E conseguiu. Foram criadas apenas duas legendas, que funcionariam até 1979: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), a bancada governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a oposição à ditadura.

Enviadas tanto de capitais, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Goiânia, quanto de cidades menores de todas as regiões do país, e endereçadas ao Diretório Nacional do partido, as cartas arquivadas no CPDOC expressam a cultura política dos arenistas, suas esperanças na construção de um novo país e seu ódio aos adversários. Na maioria das mensagens, os remetentes se apresentam relatando um pouco de sua biografia política na direita brasileira. Procuram mostrar que não são iniciantes na militância, mas representantes legítimos dos partidos políticos extintos.

“Quem vos fala é um arenista de coração e de alma, que não quer vê-la derrubada, e que também é um udenista por tradição de família, e que ama também a nossa Gloriosa Revolução de 31 de março de 1964”, diz uma das cartas, referindo-se à União Democrática Nacional (UDN), fundada em 1945 e principal partido de oposição a Getulio Vargas. Ao lembrar esse passado comum, a intenção é buscar a cumplicidade das lideranças nacionais que vieram dos antigos partidos: “Venho à presença de Vossa Excelência, na qualidade de cidadão filiado à Arena desde a sua fundação e velho militante do extinto PSD...”, apresenta-se outro, este herdeiro do Partido Social Democrático, também fundado em 1945 e também extinto em 1965.

Com freqüência, os remetentes louvam seu passado anticomunista. Um relato vindo de Londrina narra com orgulho um conflito ocorrido em 1955: “no sábado, véspera de tais concentrações, era aniversário de Prestes, e na calada da noite hastearam uma enorme Bandeira Russa, bem no centro da cidade, no mastro do altar da Pátria, onde se hasteia o Pavilhão Sagrado. Ali mesmo queimei aquele Pano Vermelho nojento”. Em anos eleitorais, chegavam denúncias aos adversários do MDB. Um arenista de Guarulhos (SP) acusa o partido de oposição de “cabide de comunistas”; outro, de Cruz Alta (RS), envia uma “denúncia de infiltração comunista no MDB”.

Durante o longo processo de abertura, a partir de 1974, o governo passa a ser pressionado por dois lados, tanto pela oposição fortalecida com a vitória do MDB nas urnas quanto por militares contrários à democratização. Muitos arenistas apoiavam a continuidade da ditadura. O argumento mais comum era justamente o possível retorno da situação anterior a 1964. Havia o temor de que lideranças do extinto Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), como o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola (1922-2004) e o presidente deposto João Goulart, retornassem ao jogo eleitoral com grande capacidade de mobilização: “... ainda temos, infelizmente, nas sombras, os Jangos, os Brizolas, na espreita de novas derribadas”; “O revanchismo está na mira dos Brizolas, Arraes”. Outros defendiam abertamente a mais autoritária intervenção do regime: o AI-5, que em dezembro de 1968 fechou o Congresso e deu poderes excepcionais ao presidente da República. “Que o AI-5 não seja nunca abolido”. De Araçatuba (SP), em novembro de 1977, um correligionário escrevia: “Agora o Exército fez uma Revolução forçada pelo povo, e vai deixar tudo como estava? Ajude o presidente Geisel para que não cometa o crime de perder mais esta REVOLUÇÃO que o povo quis e apóia...”.

De acordo com os próprios militantes, o arenista era, “antes de tudo, revolucionário”, ou “revolucionário civil de março de 1964”. Para eles, o movimento de 1964 não foi uma realização exclusiva dos militares: as Forças Armadas teriam figurado como um instrumento da vontade do povo contra o comunismo.

De São Joaquim do Monte (PE) chegam lembranças das disputas contra Miguel Arraes (1916-2005) e Francisco Julião (1915-1999) à frente das Ligas Camponesas: “As Forças Armadas brasileiras interpretaram o sentimento patriótico do nosso povo, realizando a revolução de março de 1964. No anonimato do interior, vozes corajosas ecoaram contra a subversão que tentava se implantar no seio da classe trabalhadora e estas vozes anônimas que testemunharam e combateram a infiltração de comunistas no campo...”. De Belo Horizonte, a lembrança das Marchas da Família com Deus pela Liberdade se assemelha à descrição de uma cruzada: “Veio a passeata Família com Deus! O terço em mãos confiantes, contra os ateus comunistas, em plena Belo Horizonte. As gloriosas Forças Armadas, unidas ao povo, deram um basta!”

O discurso político desses militantes revela, de um lado, a valorização da representação e da tradição partidária brasileira anterior ao AI-2. De outro, expõe certa diversidade de opiniões em relação às eleições diretas e ao pluralismo partidário. Alguns defendem a continuidade das eleições indiretas para a Presidência da República e para os governos estaduais; outros criticam o mesmo procedimento para as eleições ao Senado: “Sou apenas um simples brasileiro que deseja um Brasil próspero e tranqüilo, sem dever tantos bilhões, confiando nas suas próprias forças. Mas esta coisa de senador sem voto é um pecado muito grande”. O tema da pluralidade partidária era amplamente debatido por parlamentares da Arena e por militantes; a reforma era vista como necessária, mas sob certas condições. Um militante sugeria evitar “a criação do PL do Rio Grande do Sul e de outros como o PSD. A criação desses partidos enfraqueceria o partido da situação. O PTB estaria incluído na proibição. O Sr. Leonel Brizola não poderia criar o PTB, porém, poderia criar outra sigla, quem sabe Partido Socialista, porém não o Partido Socialista Brasileiro, que era uma antiga legenda”.

Algumas das cartas são datilografadas; outras mostram uma caligrafia bem desenhada de quem tem o hábito de escrever; umas apresentam letra irregular, revelando esforço enorme por parte de seus autores. Muitas foram redigidas em papéis com o timbre de diretórios municipais da Arena e de câmaras municipais, assim como de sindicatos, associações de moradores ou escritórios de advocacia.

Claro que entre elas há os tradicionais pedidos de emprego, de bolsas de estudo, de cartas de apresentação e de transferências no serviço público. Prefeitos solicitam os mais diversos donativos, como ambulâncias e auxílio para financiar a construção de pontes, calçamentos e quadras de esportes. Mas há também verdadeiros discursos políticos, reiterando o apoio à ditadura. Neles, os militantes apresentam opiniões e propostas, demonstrando seu desejo de participar do partido e colaborar com o governo: “É movido de inteira alegria e com o sentido voltado para a nossa Pátria...”, “Peço vênia para lhe apresentar algumas sugestões...”, “Leia toda esta carta. Leia mesmo”.

Os estudos acadêmicos que analisam a Arena sempre insistem na idéia de artificialidade do partido, seja pela sua limitada influência no governo, seja pela diversidade de origens partidárias de seus membros. No entanto, o partido reunia a nata dos políticos conservadores, lideranças egressas da UDN, do PSD, do Partido Social Progressista (PSP), do Partido Libertador (PL) e mesmo alguns nomes do PTB. Se, por um lado, a sigla era recente e inicialmente podia não ter identificação popular, por outro suas lideranças eram representantes de forças políticas enraizadas em cada estado ou município. A Arena pode ter sido inventada na ditadura, mas seus membros não o foram: eram políticos de longa data que atuaram com destaque entre os anos de 1945 e 1964.

Em tom de deboche, é sempre lembrada a frase do deputado federal Francelino Pereira, que considerava a Arena “o maior partido do Ocidente”. O comentário entrou para o folclore político nos anos 1970. Talvez Francelino estivesse certo, já que a Arena reuniu a maioria dos políticos em atividade quando foi fundada, em 1965. Após sua extinção, em 1979, a legenda deu origem aos dois maiores partidos conservadores do período democrático inaugurado em 1984: o Partido Democrático Social (PDS, atual Partido Progressista, PP) e, posteriormente, o Partido da Frente Liberal (PFL, atual Democratas, DEM).

Quando foram resgatadas pela imprensa nos anos 1990, as anedotas, porém, haviam se descolado completamente do processo histórico que as gerou. Hoje, nenhum partido político quer ser identificado publicamente com a Arena, pois a memória da organização é carregada de conteúdos negativos e significa estritamente adesismo e subordinação aos militares.

Em 1995, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma nota intitulada “Renegando as raízes”, afirmando que assessores do PFL procuravam evitar a divulgação do apelido de “Arenão”, dado ao projeto de renovação do partido. Para o jornalista Villas-Boas Corrêa, numa definição que se tornou antológica, “a Arena é a filha da UDN que caiu na zona”. Como se a União Democrática Nacional fosse um partido golpista, mas decente, e a Arena, uma agremiação que não fez jus ao duvidoso legado udenista de correção.

Na história de todas as organizações partidárias há disputas pela memória e pela herança de sua identidade. No caso da Arena, trata-se de um passado ao qual ninguém deseja se associar. Analisada em seu momento histórico, porém, a trajetória do “maior partido do Ocidente” ajuda a explicar o que de fato acontecia na sociedade brasileira da época.

Lucia Grinberg é professora do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes/Ucam e autora da tese “Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena)” (UFF, 2004).
Saiba Mais - Livros:

KINZO, Maria Dalva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). São Paulo: Vértice, 1988.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários:legitimidade, consenso e consentimento no século XX. 2 vols. Civilização Brasileira, 2008.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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