Esperança radical e desencanto conservador na Independência da América Espanhola
Maria Ligia Coelho Prado1
RESUMO
Neste artigo analiso dois textos produzidos por José Bernardo Monteagudo, figura emblemática do movimento de independência na América do Sul, no qual expõe seus projetos políticos antes e depois de conquistada a emancipação. Se em 1809 era um "democrata fanático", em 1823 havia se transformado em convicto monarquista, justificando a exclusão dos indígenas do mundo da política.
Palavras-chave: independência da América Espanhola; José Bernardo Monteagudo; diálogos políticos.
A independência das colônias espanholas da América é tema consagrado desde o alvorecer das historiografias nacionais do século XIX, amplamente visitado e carregado de interpretações estabelecidas. Consensualmente, apenas se pode afirmar que a independência é vista como momento da quebra da dominação política exercida pela metrópole e do nascimento dos Estados Nacionais. Tema, ainda, atravessado por paixões político-ideológicas, tanto da parte daqueles que defendiam uma perspectiva oficialista e ufanista, que no século XIX elegeram os heróis que comporiam os panteões nacionais, como da parte de uma historiografia crítica, que em particular nos anos 1960 e 1970 entendeu a independência como um movimento destituído de significativa relevância, pois não teria propiciado a ruptura das grandes estruturas que continuariam a manter a dependência do continente.
Nas décadas de 1960 e 1970, também se delineava outro embate com relação às interpretações sobre o tema. De um lado, a crítica àqueles que conferiam às idéias um lugar e um papel centrais como desencadeadoras do movimento da independência. Em oposição, os que privilegiavam as determinações estruturais - econômicas e sociais - como a base para a compreensão do movimento. A primeira perspectiva, que via particularmente nas idéias francesas uma das principais "causas" da emancipação, já foi amplamente criticada. Pensando na produção mais recente, é possível notar que revisões historiográficas distanciaram-se de uma aproximação exclusivamente estrutural de análise do processo de independência. O historiador peruano Alberto Flores Galindo, num texto do final da década de 1980, aponta para uma abordagem interessante e apresenta como que uma síntese desses debates:
Deixando de lado os determinismos, sentimo-nos inclinados a pensar que no passado, assim como no presente, sempre há mais de uma alternativa e que os desenlaces são o resultado de combinações, sempre específicas, entre determinações estruturais e as vontades tanto individuais como coletivas. Na história estão em jogo as aspirações e os projetos dos homens. Os períodos de crise rompem os velhos ordenamentos, ampliam os horizontes, fazem possível a criatividade e nunca é mais real que então afirmar que os indivíduos constroem seu destino.2
Este artigo é tanto devedor desses debates historiográficos sobre a independência, quanto das discussões teóricas mais recentes no campo da história política e da história social das idéias. Nessa trilha, elegi trabalhar privilegiando os encontros entre cultura e política, com textos de José Bernardo Monteagudo, cuja trajetória foi, ao mesmo tempo, singular em suas particularidades, e também emblemática daquele turbulento período. Penso que os protagonistas do movimento de independência tiveram que tomar decisões e propor soluções com um campo aberto à sua frente, pleno de probabilidades e imponderáveis diversos. Construíram seus destinos, trabalharam com sua criatividade e inventividade e estiveram limitados por imposições estruturais próprias de seu tempo e espaço.
Com essas questões em mente, quero refletir sobre dois escritos de Monteagudo, pois creio que esses textos espelham, de forma exemplar, certas contradições do período, anunciando soluções para problemas políticos centrais para os Estados Nacionais que se organizavam. Refiro-me, em especial, à determinante questão da democracia que envolvia as relações de poder entre as elites chamadas, à época, de criollas, e o mundo indígena. Pretendo iniciar com a análise de um panfleto de Monteagudo, de 1809 quando este, principiava sua vida pública e que leva por título: Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Num segundo momento, estabeleço um contraponto com outro texto que Monteagudo escreveu em 1823, chamado: Memória sobre os princípios que segui na administração do Peru e acontecimentos posteriores à minha saída.3
Em primeiro lugar, ainda que muito brevemente, uma apresentação de Bernardo Monteagudo.4 Figura menor no panteão dos heróis da independência, seus poucos biógrafos - mesmo os mais simpáticos a ele, como Mariano de Vedia y Mitre - enfrentaram algumas dificuldades para construir sua imagem como grande herói impoluto, pois foi protagonista de alguns episódios obscuros ou pouco edificantes. Nosso personagem nasceu em Tucumán, em 1789, filho de um capitão de milícias espanhol que viera para a Colônia do Sacramento no início da década de 1780. Mas viveu boa parte de sua infância e juventude em Chuquisaca, hoje Sucre, na atual Bolívia.
Estudou na Universidade de Córdoba e depois na importante Universidade de São Francisco Xavier em Chuquisaca, onde obteve o grau de doutor em Teologia. Logo em seguida, já graduado, foi nomeado Advogado da Real Audiência de Charcas e Defensor dos Pobres. Participou da precoce rebelião de Charcas pela independência, em 1809, que foi rapidamente reprimida. Nesse período defendia idéias republicanas e democráticas. Monteagudo foi preso e condenado à morte, mas conseguiu fugir. Daí por diante, vamos encontrá-lo em diversas partes da América. Participou da guerra pela independência na Argentina, atravessou os Andes, lutou no Chile e chegou ao Peru; esteve na América Central, numa missão especial. Foi à Europa e, nessa viagem, passou pelo Rio de Janeiro. Escreveu alguns textos políticos publicados em jornais e fundou, em 1812, em Buenos Aires, seu próprio e efêmero periódico, Mártir o Libre. Manteve contato próximo com quase todos os líderes da independência - desde Simón Bolívar, passando pelo venezuelano Francisco de Miranda (que encontrou em Londres), pelo guatemalteco José Cecilio del Valle, pelo chileno Bernardo OHiggins, até o argentino San Martin, com quem conviveu mais longamente e de quem foi secretário. Teve efetivo poder político em diversos momentos, como aquele em que decidiu o destino dos irmãos Carrera, líderes do movimento chileno que, por desentendimento com OHiggins, estavam exilados na Argentina. Foi Monteagudo, pretendendo maior aproximação política com OHiggins, quem determinou o fuzilamento dos irmãos, atitude de força criticada pelos próprios contemporâneos.
Como secretário de San Martin, instalou-se em Lima. Havia mudado suas concepções políticas e se transformado em monarquista convicto. No Peru, ocupou cargos políticos importantes, como o de Ministro da Guerra. Não se pode esquecer que Lima foi o bastião realista por excelência durante as lutas pela independência da América do Sul. Lá, as elites haviam permanecido ligadas ao antigo sistema colonial convencidas de que, a longo prazo, seu futuro dependia da solidez dos seus laços com a Espanha. O grande comércio limenho se sustentava pelos intercâmbios com a Península Ibérica e pelo controle sobre os espaços coloniais vizinhos - Quito e Valparaíso. Se o Peru foi um dos focos da resistência realista, isso não se deveu exclusivamente à personalidade do vice-rei Fernando de Abascal, como insiste a historiografia tradicional, mas à presença, em Lima, da aristocracia colonial mais numerosa de toda a América Hispânica. Além disso, a memória sobre a rebelião de 1780, liderada pelo cacique Tupac Amaru II (sobre a qual falaremos mais adiante), inibia qualquer possível adesão das elites a levantes armados.
As posições políticas de Monteagudo em defesa do regime monárquico e seu distanciamento das elites limenhas angariaram-lhe poderosos inimigos, a ponto de ter que se exilar novamente. Foi enviado à América Central, numa missão diplomática a mando de Bolívar. Voltou para a América do Sul, esteve em Guayaquil, depois em Quito, e finalmente voltou ao Peru, desta vez sob a proteção de Bolívar, que fazia os preparativos para a última fase da guerra pela independência na serra peruana e no Alto Peru. Assim, a trajetória de Monteagudo indicava a ausência de limites geopolíticos separando toda essa vasta região e mostrava como o movimento pela independência não cabia nas fronteiras que posteriormente se construíram.
No entanto, depois de escapar ileso de tantos perigos, Bernardo Monteagudo morria assassinado, com uma faca cravada no peito, às 7 horas da noite do dia 28 de janeiro de 1825, na Rua de Belém, em Lima. Tinha 35 anos de idade. Seu assassino confesso, o negro Candelario Espinosa, e seu cúmplice, o zambo Ramón Moreira, foram imediatamente presos.
Candelario assumiu a autoria do crime, porém foi torturado para confessar o nome do mandante, pois desde o início as autoridades trabalharam com a hipótese de crime político. A prova mais contundente seria o fato de os pertences valiosos de Monteagudo não terem sido roubados - um anel de ouro, um relógio de ouro com corrente, um alfinete de gravata de safira e diamantes e seis onças de ouro. Depois de torturado por vários dias, Espinosa acusou três homens que foram presos, sem que, entretanto, nada se provasse. Numa suposta audiência com Simón Bolívar, o negro teria finalmente confessado que José Faustino Sánchez Carrión, ardente republicano e inimigo contumaz de Monteagudo, havia sido o mandante do assassinato. Para dramatizar ainda mais esta história, Sánchez Carrión morria 40 dias depois de Monteagudo. As versões sobre sua morte variaram entre uma doença de causa natural e um envenenamento provocado por vingança política.
Fugindo das disputas sobre o crime ter sido ou não de caráter político, importa assinalar que as questões de ordem política, naqueles momentos, ocupavam lugar central na sociedade limenha. Desse modo, não se podia imaginar o assassinato de uma figura poderosa como Monteagudo sem que a idéia de conspiração ganhasse força. O biógrafo de Monteagudo, Mariano de Vedia y Mitre, carrega nas cores da conspiração afirmando, por exemplo, que logo após o assassinato "corriam pela sociedade limenha boatos de que Sánchez Carrión havia sido o mandante do crime". 5 A principal disputa entre Monteagudo e Sánchez Carrión passava pela definição do regime político que deveria ser adotado no Peru independente. O primeiro, monarquista, e o segundo, republicano. A questão das definições sobre o regime político pode parecer, a posteriori, problema menor. Entretanto, à época, nada estava definido e as disputas em torno da questão foram fundamentais e apaixonadas.
Mas voltemos à juventude de Monteagudo, quando este escreveu seu primeiro texto político de impacto: o Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Na forma de panfleto, circulou anonimamente, de mãos em mãos, nos meios universitários e políticos de Charcas, nos primeiros meses de 1809. Ainda que anônimo, rapidamente sua autoria foi atribuída a Monteagudo, pois como o texto era manuscrito, sua caligrafia acabou sendo reconhecida.
Este era um entre muitos panfletos que invadiram a Hispano América na primeira década do século XIX, espalhando as idéias iluministas e contribuindo com seus argumentos para justificar a ação daqueles que começavam a lutar pela independência das colônias na América. Estes textos "subversivos" produzidos pelos criollos nasceram do encontro entre as leituras vindas da Europa e a reflexão original pensada a partir da situação colonial.
Como bem mostra Elias Pino Iturrieta em sua pesquisa sobre a Venezuela, desde o final do século XVIII se ampliara o comércio ilegal de livros censurados que chegavam nos navios, misturados às mercadorias comuns, alimentando as imaginações dos descontentes com a situação colonial. A burocracia civil e religiosa espanhola manifestara reiteradamente sua preocupação com relação a esses "abusos", criticando ora a "negligência dos funcionários reais", ora os comerciantes que visavam apenas ao "torpe lucro". As autoridades coloniais denunciavam essa prática, perseguida com rigor, mas sem alcançar os efeitos esperados. Para elas, as colônias estavam "inundadas por uma variedade de gazetas, diários e suplementos repletos de absurdas proposições, muito parecidas com as idéias diabólicas que os revolucionários de Paris apregoavam". 6
Todavia, o documento de Monteagudo desperta, de imediato, grande interesse pela originalidade e pelo radicalismo da proposição. Em primeiro lugar, o autor, já em 1809, defendia claramente a separação entre as colônias e sua metrópole. Além disso, chama a atenção a criatividade do mesmo, pois se trata de um diálogo imaginário, no campo dos mortos, entre o último imperador inca e o rei espanhol vivo que, naquele momento, se encontrava prisioneiro de Napoleão em Bayone. Como questão aberta, fica a pergunta: teria Monteagudo, por acaso, lido os Diálogos dos mortos, de 1712, de Fenelon? 7
Creio que a forma de diálogo escolhida por Monteagudo está diretamente relacionada às finalidades do panfleto. De acordo com os costumes da época, o autor sabia que o texto não seria apenas lido individual e silenciosamente. Foi pensado também para ser ouvido por um grupo de pessoas atentas à leitura em voz alta. Como os historiadores do livro e da leitura já indicaram, a leitura individual e silenciosa ainda não era uma prática comum e habitual, nem na Europa nem na América, nesse período. Lia-se em voz alta a um grupo acostumado a "saber ouvir", potencialmente multiplicando os "efeitos perigosos" de um texto.8
Desde Platão, foi constante a utilização do diálogo. Os oradores - lembremos dos diálogos de Cícero - atentos às virtudes e vícios da elocução, se serviram do diálogo para alcançar maior eficácia diante do público. O estilo caracterizado por interrogações e respostas foi considerado superior ao contínuo, quando se desejava expressar o ímpeto da paixão. O leitor ou ouvinte era então levado a aceitar os argumentos não como uma imposição, mas como uma conseqüência lógica dos acontecimentos. Ao acompanhar a alternância de perguntas e respostas, se envolvia no processo. Essa técnica discursiva - a mesma empregada por Monteagudo - tendia a provocar a adesão dos espíritos às teses apresentadas e podia ser definida como um ato de persuasão. 9
Monteagudo, no diálogo, assume dois papéis, expondo seus argumentos por intermédio do personagem principal, o imperador inca Atahualpa. Tal decisão de conferir a Atahualpa a primazia no texto se configura como um ato de ousada rebeldia. As perguntas "adequadas" são feitas por Fernando VII, cujo lugar se confunde com o do público ouvinte/leitor, isto é, daquele que deve ser convencido da justeza das novas idéias, no caso, da necessidade da separação das colônias espanholas de sua metrópole.
A escolha da figura de Atahualpa estava carregada de simbolismo e se coadunava com os objetivos de Monteagudo que desejava denunciar a conquista espanhola. O aprisionamento do imperador e sua posterior execução a mando de Francisco Pizarro, em Cajamarca, foram posteriormente condenados por muitos cronistas, que viram nesse episódio um ato de traição no qual os conquistadores demonstraram sua ambição, crueldade e violência. Os espanhóis haviam chegado a Cajamarca, onde estava Atahualpa, sem encontrar resistência por parte dos indígenas. Instalaram-se numa espaçosa mansão oferecida pelos nativos. Mas logo o imperador se transformou em prisioneiro. Tentando conseguir sua liberdade, entregou aos espanhóis inúmeras riquezas. Finalmente, acusado injustamente de traição, foi condenado a ser queimado vivo. Perto da fogueira "converteu-se" ao cristianismo para beneficiar-se do "privilégio" da morte por estrangulamento.
E o que diz o Diálogo? O primeiro passo da montagem discursiva é inesperado: Atahualpa e Fernando VII aparecem como iguais. Os dois se declaram "descendentes de infinitos reis" que governavam seus súditos até que tiveram suas coroas usurpadas, e se transformaram em cativos de invasores. Se o espanhol foi obrigado a entregar o trono a Bonaparte, que lhe imputou "delitos falsos e fictícios", o mesmo aconteceu com Atahualpa, cujo cetro foi usurpado pelos espanhóis, apoiado também em mentiras. A partir dessa primeira constatação, dirigir-se-ão, um ao outro, como iguais. O Inca, ao mesmo tempo em que pede a Fernando que compare sua sorte à dele, emprega uma linguagem forte e agressiva, atacando a conquista e os "estúpidos espanhóis", cujo "coração avarento" só se voltou à "cobiça". Esses "usurpadores cruéis", que se "entronizaram na América contra a vontade dos povos", só espalharam a morte e o terror.
Assim se constrói o grande tema do Diálogo, qual seja, o da ilegitimidade da conquista (chegando à crítica da bula de Alexandre VI, que dividiu as terras da América cedendo grande parte aos espanhóis) e da usurpação dos direitos dos americanos sobre essas terras. Atahualpa fecha seu argumento com a afirmação de que nem o juramento de "vassalagem que os americanos prestaram ao espanhol, nem a possessão de trezentos anos que foi conseguida [pelos espanhóis] na América são título suficiente para dominar essas terras". 10
Monteagudo investe Atahualpa de duas principais identidades. No texto, o imperador inca se refere ora a um "nós/americanos", ora a um "nós/indígenas". Quando assume a voz dos indígenas, critica a mita como uma instituição violenta e destruidora de vidas. Por culpa dos espanhóis, "sacrílegos transgressores dos sagrados e invioláveis direitos da vida e da liberdade do homem", os índios só sofreram infelicidades e calamidades.
Mas os criollos também apresentam suas reivindicações pela voz de Atahualpa. Ironicamente, afirma que a felicidade dos americanos está na "ignorância que os espanhóis fomentaram", no tratamento despótico a que os espanhóis mais grosseiros lhes submeteram, na privação do comércio e no impedimento das manufaturas.
O texto termina com a vitória dos argumentos de Atahualpa sobre Fernando. Este admite e "confessa" que se ainda fosse vivo, "moveria" ele mesmo os americanos à "liberdade e à independência". No ponto culminante do texto, Atahualpa avisa que se pudesse voltar ao Reino do Peru, conclamaria seus habitantes à luta com uma exortação, que termina assim: "... desapareça a penosa e funesta noite da usurpação e amanheça o claro e luminoso dia da liberdade. Quebrai os terríveis grilhões da escravidão e começai a desfrutar dos deliciosos encantos da independência". 11 Os dois se despedem, dirigindo-se cada um a seus pares - Fernando a seus iguais "mayores" e Atahualpa a Montezuma e outros reis da América - para levar as boas novas da independência e da liberdade.
O panfleto surpreende especialmente pela amálgama produzida por Monteagudo, isto é, pela apropriação de uma identidade incaica pelo discurso de um criollo. Entretanto, se olharmos para o passado do Peru ou do México, regiões com populações majoritariamente indígenas, com uma extraordinária riqueza cultural, defrontar-nos-emos com uma linhagem de outros textos, também escritos por criollos, que trabalharam essa aproximação.
O primeiro notável exemplo, do final do século XVII, é o de Carlos de Siguënza y Gongora, poeta, matemático e astrônomo, catedrático da Real e Pontifícia Universidade do México. Em seu Teatro de virtudes políticas que contituyen a un Príncipe, escreveu poemas para os arcos triunfais que enfeitaram as ruas da Cidade do México, quando da chegada do vice-rei, conde de Paredes e marquês de Laguna, em 1680. No texto, em que se acumulam citações de Homero, Platão, Catão, Plínio, Sêneca, assim como dos padres da Igreja, como Santo Agostinho ou São Ambrósio, o mexicano oferece ao vice-rei um teatro de virtudes atribuídas aos imperadores astecas para servir como um espelho ao espanhol. Os criollos podiam, dizia Sigüenza, compartilhar os valores cívicos com aqueles do antigo "Império Mexicano", porque, antes de tudo, todos haviam nascido em terra mexicana. As virtudes de cada um dos imperadores astecas foram escolhidas de acordo com a escala de valores da cultura espanhola: prudência, piedade, clemência, generosidade, coragem. Estabelecendo relações entre os dois mundos, vistos como continuidades, escreve, por exemplo, um soneto que termina assim:
Goza, príncipe excelso, esse eminente
compendio de virtudes soberanas,
pues las regias divisas de Occidente,
que a tanto rey sirvieron mexicano
de dilatados triunfos en la frente,
son abreviadas glorias de tu mano.12
Este texto extraordinário mostra que Sigüenza y Gongora, a despeito de fazer parte da burocracia colonial e de ter seu trabalho como poeta e catedrático reconhecido pelas autoridades espanholas na Nova Espanha, não ficou imune ao peso do passado asteca, criando uma identificação entre a aristocracia indígena e o mundo dos espanhóis/americanos.13
Um século depois, ainda no México, há outro texto de retumbante repercussão. Refiro-me ao livro monumental escrito pelo jesuíta mexicano exilado na Itália, Francisco Xavier Clavigero, Storia antica del Messico, impresso em 1780-1781. Esse livro estabeleceu um novo olhar sobre a cultura e a história dos antigos astecas. Como indica Anthony Pagden, Clavigero defende com mais argumentos e mais entusiasmo a perspectiva anunciada por Sigüenza y Gongora. Para Clavigero, a população criolla deveria olhar com orgulho para a cultura indígena, "as nossas antiguidades", e ver nela sua pré-história. Acusando os espanhóis de avareza e ambição, afirmava que os astecas nunca foram movidos pela necessidade de usurpar os Estados legitimamente possuídos por outras nações nem transportar de distantes países metais preciosos dos quais não precisavam. 14
Depreende-se daí uma hierarquia de valoração, na qual os antigos astecas eram colocados numa posição superior à dos rapaces espanhóis. O texto de Clavigero, rico em simbolismo político, atribuía, malgré lui, uma identidade cultural particular aos mexicanos, uma continuidade entre o mundo indígena e o espanhol que ultrapassava os limites impostos pela dominação colonial. A historiografia já apontou a relevância e a repercussão do texto de Clavigero sobre as lideranças criollas no período da independência.
Matéria completa
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742003000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Maria Ligia Coelho Prado1
RESUMO
Neste artigo analiso dois textos produzidos por José Bernardo Monteagudo, figura emblemática do movimento de independência na América do Sul, no qual expõe seus projetos políticos antes e depois de conquistada a emancipação. Se em 1809 era um "democrata fanático", em 1823 havia se transformado em convicto monarquista, justificando a exclusão dos indígenas do mundo da política.
Palavras-chave: independência da América Espanhola; José Bernardo Monteagudo; diálogos políticos.
A independência das colônias espanholas da América é tema consagrado desde o alvorecer das historiografias nacionais do século XIX, amplamente visitado e carregado de interpretações estabelecidas. Consensualmente, apenas se pode afirmar que a independência é vista como momento da quebra da dominação política exercida pela metrópole e do nascimento dos Estados Nacionais. Tema, ainda, atravessado por paixões político-ideológicas, tanto da parte daqueles que defendiam uma perspectiva oficialista e ufanista, que no século XIX elegeram os heróis que comporiam os panteões nacionais, como da parte de uma historiografia crítica, que em particular nos anos 1960 e 1970 entendeu a independência como um movimento destituído de significativa relevância, pois não teria propiciado a ruptura das grandes estruturas que continuariam a manter a dependência do continente.
Nas décadas de 1960 e 1970, também se delineava outro embate com relação às interpretações sobre o tema. De um lado, a crítica àqueles que conferiam às idéias um lugar e um papel centrais como desencadeadoras do movimento da independência. Em oposição, os que privilegiavam as determinações estruturais - econômicas e sociais - como a base para a compreensão do movimento. A primeira perspectiva, que via particularmente nas idéias francesas uma das principais "causas" da emancipação, já foi amplamente criticada. Pensando na produção mais recente, é possível notar que revisões historiográficas distanciaram-se de uma aproximação exclusivamente estrutural de análise do processo de independência. O historiador peruano Alberto Flores Galindo, num texto do final da década de 1980, aponta para uma abordagem interessante e apresenta como que uma síntese desses debates:
Deixando de lado os determinismos, sentimo-nos inclinados a pensar que no passado, assim como no presente, sempre há mais de uma alternativa e que os desenlaces são o resultado de combinações, sempre específicas, entre determinações estruturais e as vontades tanto individuais como coletivas. Na história estão em jogo as aspirações e os projetos dos homens. Os períodos de crise rompem os velhos ordenamentos, ampliam os horizontes, fazem possível a criatividade e nunca é mais real que então afirmar que os indivíduos constroem seu destino.2
Este artigo é tanto devedor desses debates historiográficos sobre a independência, quanto das discussões teóricas mais recentes no campo da história política e da história social das idéias. Nessa trilha, elegi trabalhar privilegiando os encontros entre cultura e política, com textos de José Bernardo Monteagudo, cuja trajetória foi, ao mesmo tempo, singular em suas particularidades, e também emblemática daquele turbulento período. Penso que os protagonistas do movimento de independência tiveram que tomar decisões e propor soluções com um campo aberto à sua frente, pleno de probabilidades e imponderáveis diversos. Construíram seus destinos, trabalharam com sua criatividade e inventividade e estiveram limitados por imposições estruturais próprias de seu tempo e espaço.
Com essas questões em mente, quero refletir sobre dois escritos de Monteagudo, pois creio que esses textos espelham, de forma exemplar, certas contradições do período, anunciando soluções para problemas políticos centrais para os Estados Nacionais que se organizavam. Refiro-me, em especial, à determinante questão da democracia que envolvia as relações de poder entre as elites chamadas, à época, de criollas, e o mundo indígena. Pretendo iniciar com a análise de um panfleto de Monteagudo, de 1809 quando este, principiava sua vida pública e que leva por título: Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Num segundo momento, estabeleço um contraponto com outro texto que Monteagudo escreveu em 1823, chamado: Memória sobre os princípios que segui na administração do Peru e acontecimentos posteriores à minha saída.3
Em primeiro lugar, ainda que muito brevemente, uma apresentação de Bernardo Monteagudo.4 Figura menor no panteão dos heróis da independência, seus poucos biógrafos - mesmo os mais simpáticos a ele, como Mariano de Vedia y Mitre - enfrentaram algumas dificuldades para construir sua imagem como grande herói impoluto, pois foi protagonista de alguns episódios obscuros ou pouco edificantes. Nosso personagem nasceu em Tucumán, em 1789, filho de um capitão de milícias espanhol que viera para a Colônia do Sacramento no início da década de 1780. Mas viveu boa parte de sua infância e juventude em Chuquisaca, hoje Sucre, na atual Bolívia.
Estudou na Universidade de Córdoba e depois na importante Universidade de São Francisco Xavier em Chuquisaca, onde obteve o grau de doutor em Teologia. Logo em seguida, já graduado, foi nomeado Advogado da Real Audiência de Charcas e Defensor dos Pobres. Participou da precoce rebelião de Charcas pela independência, em 1809, que foi rapidamente reprimida. Nesse período defendia idéias republicanas e democráticas. Monteagudo foi preso e condenado à morte, mas conseguiu fugir. Daí por diante, vamos encontrá-lo em diversas partes da América. Participou da guerra pela independência na Argentina, atravessou os Andes, lutou no Chile e chegou ao Peru; esteve na América Central, numa missão especial. Foi à Europa e, nessa viagem, passou pelo Rio de Janeiro. Escreveu alguns textos políticos publicados em jornais e fundou, em 1812, em Buenos Aires, seu próprio e efêmero periódico, Mártir o Libre. Manteve contato próximo com quase todos os líderes da independência - desde Simón Bolívar, passando pelo venezuelano Francisco de Miranda (que encontrou em Londres), pelo guatemalteco José Cecilio del Valle, pelo chileno Bernardo OHiggins, até o argentino San Martin, com quem conviveu mais longamente e de quem foi secretário. Teve efetivo poder político em diversos momentos, como aquele em que decidiu o destino dos irmãos Carrera, líderes do movimento chileno que, por desentendimento com OHiggins, estavam exilados na Argentina. Foi Monteagudo, pretendendo maior aproximação política com OHiggins, quem determinou o fuzilamento dos irmãos, atitude de força criticada pelos próprios contemporâneos.
Como secretário de San Martin, instalou-se em Lima. Havia mudado suas concepções políticas e se transformado em monarquista convicto. No Peru, ocupou cargos políticos importantes, como o de Ministro da Guerra. Não se pode esquecer que Lima foi o bastião realista por excelência durante as lutas pela independência da América do Sul. Lá, as elites haviam permanecido ligadas ao antigo sistema colonial convencidas de que, a longo prazo, seu futuro dependia da solidez dos seus laços com a Espanha. O grande comércio limenho se sustentava pelos intercâmbios com a Península Ibérica e pelo controle sobre os espaços coloniais vizinhos - Quito e Valparaíso. Se o Peru foi um dos focos da resistência realista, isso não se deveu exclusivamente à personalidade do vice-rei Fernando de Abascal, como insiste a historiografia tradicional, mas à presença, em Lima, da aristocracia colonial mais numerosa de toda a América Hispânica. Além disso, a memória sobre a rebelião de 1780, liderada pelo cacique Tupac Amaru II (sobre a qual falaremos mais adiante), inibia qualquer possível adesão das elites a levantes armados.
As posições políticas de Monteagudo em defesa do regime monárquico e seu distanciamento das elites limenhas angariaram-lhe poderosos inimigos, a ponto de ter que se exilar novamente. Foi enviado à América Central, numa missão diplomática a mando de Bolívar. Voltou para a América do Sul, esteve em Guayaquil, depois em Quito, e finalmente voltou ao Peru, desta vez sob a proteção de Bolívar, que fazia os preparativos para a última fase da guerra pela independência na serra peruana e no Alto Peru. Assim, a trajetória de Monteagudo indicava a ausência de limites geopolíticos separando toda essa vasta região e mostrava como o movimento pela independência não cabia nas fronteiras que posteriormente se construíram.
No entanto, depois de escapar ileso de tantos perigos, Bernardo Monteagudo morria assassinado, com uma faca cravada no peito, às 7 horas da noite do dia 28 de janeiro de 1825, na Rua de Belém, em Lima. Tinha 35 anos de idade. Seu assassino confesso, o negro Candelario Espinosa, e seu cúmplice, o zambo Ramón Moreira, foram imediatamente presos.
Candelario assumiu a autoria do crime, porém foi torturado para confessar o nome do mandante, pois desde o início as autoridades trabalharam com a hipótese de crime político. A prova mais contundente seria o fato de os pertences valiosos de Monteagudo não terem sido roubados - um anel de ouro, um relógio de ouro com corrente, um alfinete de gravata de safira e diamantes e seis onças de ouro. Depois de torturado por vários dias, Espinosa acusou três homens que foram presos, sem que, entretanto, nada se provasse. Numa suposta audiência com Simón Bolívar, o negro teria finalmente confessado que José Faustino Sánchez Carrión, ardente republicano e inimigo contumaz de Monteagudo, havia sido o mandante do assassinato. Para dramatizar ainda mais esta história, Sánchez Carrión morria 40 dias depois de Monteagudo. As versões sobre sua morte variaram entre uma doença de causa natural e um envenenamento provocado por vingança política.
Fugindo das disputas sobre o crime ter sido ou não de caráter político, importa assinalar que as questões de ordem política, naqueles momentos, ocupavam lugar central na sociedade limenha. Desse modo, não se podia imaginar o assassinato de uma figura poderosa como Monteagudo sem que a idéia de conspiração ganhasse força. O biógrafo de Monteagudo, Mariano de Vedia y Mitre, carrega nas cores da conspiração afirmando, por exemplo, que logo após o assassinato "corriam pela sociedade limenha boatos de que Sánchez Carrión havia sido o mandante do crime". 5 A principal disputa entre Monteagudo e Sánchez Carrión passava pela definição do regime político que deveria ser adotado no Peru independente. O primeiro, monarquista, e o segundo, republicano. A questão das definições sobre o regime político pode parecer, a posteriori, problema menor. Entretanto, à época, nada estava definido e as disputas em torno da questão foram fundamentais e apaixonadas.
Mas voltemos à juventude de Monteagudo, quando este escreveu seu primeiro texto político de impacto: o Diálogo entre Atahualpa e Fernando VII nos Campos Elíseos. Na forma de panfleto, circulou anonimamente, de mãos em mãos, nos meios universitários e políticos de Charcas, nos primeiros meses de 1809. Ainda que anônimo, rapidamente sua autoria foi atribuída a Monteagudo, pois como o texto era manuscrito, sua caligrafia acabou sendo reconhecida.
Este era um entre muitos panfletos que invadiram a Hispano América na primeira década do século XIX, espalhando as idéias iluministas e contribuindo com seus argumentos para justificar a ação daqueles que começavam a lutar pela independência das colônias na América. Estes textos "subversivos" produzidos pelos criollos nasceram do encontro entre as leituras vindas da Europa e a reflexão original pensada a partir da situação colonial.
Como bem mostra Elias Pino Iturrieta em sua pesquisa sobre a Venezuela, desde o final do século XVIII se ampliara o comércio ilegal de livros censurados que chegavam nos navios, misturados às mercadorias comuns, alimentando as imaginações dos descontentes com a situação colonial. A burocracia civil e religiosa espanhola manifestara reiteradamente sua preocupação com relação a esses "abusos", criticando ora a "negligência dos funcionários reais", ora os comerciantes que visavam apenas ao "torpe lucro". As autoridades coloniais denunciavam essa prática, perseguida com rigor, mas sem alcançar os efeitos esperados. Para elas, as colônias estavam "inundadas por uma variedade de gazetas, diários e suplementos repletos de absurdas proposições, muito parecidas com as idéias diabólicas que os revolucionários de Paris apregoavam". 6
Todavia, o documento de Monteagudo desperta, de imediato, grande interesse pela originalidade e pelo radicalismo da proposição. Em primeiro lugar, o autor, já em 1809, defendia claramente a separação entre as colônias e sua metrópole. Além disso, chama a atenção a criatividade do mesmo, pois se trata de um diálogo imaginário, no campo dos mortos, entre o último imperador inca e o rei espanhol vivo que, naquele momento, se encontrava prisioneiro de Napoleão em Bayone. Como questão aberta, fica a pergunta: teria Monteagudo, por acaso, lido os Diálogos dos mortos, de 1712, de Fenelon? 7
Creio que a forma de diálogo escolhida por Monteagudo está diretamente relacionada às finalidades do panfleto. De acordo com os costumes da época, o autor sabia que o texto não seria apenas lido individual e silenciosamente. Foi pensado também para ser ouvido por um grupo de pessoas atentas à leitura em voz alta. Como os historiadores do livro e da leitura já indicaram, a leitura individual e silenciosa ainda não era uma prática comum e habitual, nem na Europa nem na América, nesse período. Lia-se em voz alta a um grupo acostumado a "saber ouvir", potencialmente multiplicando os "efeitos perigosos" de um texto.8
Desde Platão, foi constante a utilização do diálogo. Os oradores - lembremos dos diálogos de Cícero - atentos às virtudes e vícios da elocução, se serviram do diálogo para alcançar maior eficácia diante do público. O estilo caracterizado por interrogações e respostas foi considerado superior ao contínuo, quando se desejava expressar o ímpeto da paixão. O leitor ou ouvinte era então levado a aceitar os argumentos não como uma imposição, mas como uma conseqüência lógica dos acontecimentos. Ao acompanhar a alternância de perguntas e respostas, se envolvia no processo. Essa técnica discursiva - a mesma empregada por Monteagudo - tendia a provocar a adesão dos espíritos às teses apresentadas e podia ser definida como um ato de persuasão. 9
Monteagudo, no diálogo, assume dois papéis, expondo seus argumentos por intermédio do personagem principal, o imperador inca Atahualpa. Tal decisão de conferir a Atahualpa a primazia no texto se configura como um ato de ousada rebeldia. As perguntas "adequadas" são feitas por Fernando VII, cujo lugar se confunde com o do público ouvinte/leitor, isto é, daquele que deve ser convencido da justeza das novas idéias, no caso, da necessidade da separação das colônias espanholas de sua metrópole.
A escolha da figura de Atahualpa estava carregada de simbolismo e se coadunava com os objetivos de Monteagudo que desejava denunciar a conquista espanhola. O aprisionamento do imperador e sua posterior execução a mando de Francisco Pizarro, em Cajamarca, foram posteriormente condenados por muitos cronistas, que viram nesse episódio um ato de traição no qual os conquistadores demonstraram sua ambição, crueldade e violência. Os espanhóis haviam chegado a Cajamarca, onde estava Atahualpa, sem encontrar resistência por parte dos indígenas. Instalaram-se numa espaçosa mansão oferecida pelos nativos. Mas logo o imperador se transformou em prisioneiro. Tentando conseguir sua liberdade, entregou aos espanhóis inúmeras riquezas. Finalmente, acusado injustamente de traição, foi condenado a ser queimado vivo. Perto da fogueira "converteu-se" ao cristianismo para beneficiar-se do "privilégio" da morte por estrangulamento.
E o que diz o Diálogo? O primeiro passo da montagem discursiva é inesperado: Atahualpa e Fernando VII aparecem como iguais. Os dois se declaram "descendentes de infinitos reis" que governavam seus súditos até que tiveram suas coroas usurpadas, e se transformaram em cativos de invasores. Se o espanhol foi obrigado a entregar o trono a Bonaparte, que lhe imputou "delitos falsos e fictícios", o mesmo aconteceu com Atahualpa, cujo cetro foi usurpado pelos espanhóis, apoiado também em mentiras. A partir dessa primeira constatação, dirigir-se-ão, um ao outro, como iguais. O Inca, ao mesmo tempo em que pede a Fernando que compare sua sorte à dele, emprega uma linguagem forte e agressiva, atacando a conquista e os "estúpidos espanhóis", cujo "coração avarento" só se voltou à "cobiça". Esses "usurpadores cruéis", que se "entronizaram na América contra a vontade dos povos", só espalharam a morte e o terror.
Assim se constrói o grande tema do Diálogo, qual seja, o da ilegitimidade da conquista (chegando à crítica da bula de Alexandre VI, que dividiu as terras da América cedendo grande parte aos espanhóis) e da usurpação dos direitos dos americanos sobre essas terras. Atahualpa fecha seu argumento com a afirmação de que nem o juramento de "vassalagem que os americanos prestaram ao espanhol, nem a possessão de trezentos anos que foi conseguida [pelos espanhóis] na América são título suficiente para dominar essas terras". 10
Monteagudo investe Atahualpa de duas principais identidades. No texto, o imperador inca se refere ora a um "nós/americanos", ora a um "nós/indígenas". Quando assume a voz dos indígenas, critica a mita como uma instituição violenta e destruidora de vidas. Por culpa dos espanhóis, "sacrílegos transgressores dos sagrados e invioláveis direitos da vida e da liberdade do homem", os índios só sofreram infelicidades e calamidades.
Mas os criollos também apresentam suas reivindicações pela voz de Atahualpa. Ironicamente, afirma que a felicidade dos americanos está na "ignorância que os espanhóis fomentaram", no tratamento despótico a que os espanhóis mais grosseiros lhes submeteram, na privação do comércio e no impedimento das manufaturas.
O texto termina com a vitória dos argumentos de Atahualpa sobre Fernando. Este admite e "confessa" que se ainda fosse vivo, "moveria" ele mesmo os americanos à "liberdade e à independência". No ponto culminante do texto, Atahualpa avisa que se pudesse voltar ao Reino do Peru, conclamaria seus habitantes à luta com uma exortação, que termina assim: "... desapareça a penosa e funesta noite da usurpação e amanheça o claro e luminoso dia da liberdade. Quebrai os terríveis grilhões da escravidão e começai a desfrutar dos deliciosos encantos da independência". 11 Os dois se despedem, dirigindo-se cada um a seus pares - Fernando a seus iguais "mayores" e Atahualpa a Montezuma e outros reis da América - para levar as boas novas da independência e da liberdade.
O panfleto surpreende especialmente pela amálgama produzida por Monteagudo, isto é, pela apropriação de uma identidade incaica pelo discurso de um criollo. Entretanto, se olharmos para o passado do Peru ou do México, regiões com populações majoritariamente indígenas, com uma extraordinária riqueza cultural, defrontar-nos-emos com uma linhagem de outros textos, também escritos por criollos, que trabalharam essa aproximação.
O primeiro notável exemplo, do final do século XVII, é o de Carlos de Siguënza y Gongora, poeta, matemático e astrônomo, catedrático da Real e Pontifícia Universidade do México. Em seu Teatro de virtudes políticas que contituyen a un Príncipe, escreveu poemas para os arcos triunfais que enfeitaram as ruas da Cidade do México, quando da chegada do vice-rei, conde de Paredes e marquês de Laguna, em 1680. No texto, em que se acumulam citações de Homero, Platão, Catão, Plínio, Sêneca, assim como dos padres da Igreja, como Santo Agostinho ou São Ambrósio, o mexicano oferece ao vice-rei um teatro de virtudes atribuídas aos imperadores astecas para servir como um espelho ao espanhol. Os criollos podiam, dizia Sigüenza, compartilhar os valores cívicos com aqueles do antigo "Império Mexicano", porque, antes de tudo, todos haviam nascido em terra mexicana. As virtudes de cada um dos imperadores astecas foram escolhidas de acordo com a escala de valores da cultura espanhola: prudência, piedade, clemência, generosidade, coragem. Estabelecendo relações entre os dois mundos, vistos como continuidades, escreve, por exemplo, um soneto que termina assim:
Goza, príncipe excelso, esse eminente
compendio de virtudes soberanas,
pues las regias divisas de Occidente,
que a tanto rey sirvieron mexicano
de dilatados triunfos en la frente,
son abreviadas glorias de tu mano.12
Este texto extraordinário mostra que Sigüenza y Gongora, a despeito de fazer parte da burocracia colonial e de ter seu trabalho como poeta e catedrático reconhecido pelas autoridades espanholas na Nova Espanha, não ficou imune ao peso do passado asteca, criando uma identificação entre a aristocracia indígena e o mundo dos espanhóis/americanos.13
Um século depois, ainda no México, há outro texto de retumbante repercussão. Refiro-me ao livro monumental escrito pelo jesuíta mexicano exilado na Itália, Francisco Xavier Clavigero, Storia antica del Messico, impresso em 1780-1781. Esse livro estabeleceu um novo olhar sobre a cultura e a história dos antigos astecas. Como indica Anthony Pagden, Clavigero defende com mais argumentos e mais entusiasmo a perspectiva anunciada por Sigüenza y Gongora. Para Clavigero, a população criolla deveria olhar com orgulho para a cultura indígena, "as nossas antiguidades", e ver nela sua pré-história. Acusando os espanhóis de avareza e ambição, afirmava que os astecas nunca foram movidos pela necessidade de usurpar os Estados legitimamente possuídos por outras nações nem transportar de distantes países metais preciosos dos quais não precisavam. 14
Depreende-se daí uma hierarquia de valoração, na qual os antigos astecas eram colocados numa posição superior à dos rapaces espanhóis. O texto de Clavigero, rico em simbolismo político, atribuía, malgré lui, uma identidade cultural particular aos mexicanos, uma continuidade entre o mundo indígena e o espanhol que ultrapassava os limites impostos pela dominação colonial. A historiografia já apontou a relevância e a repercussão do texto de Clavigero sobre as lideranças criollas no período da independência.
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Revista História - UNESP
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