quarta-feira, 10 de março de 2010

Camus: um grito de esperança silencioso

Camus: um grito de esperança silencioso
Com seu ensaio O Mito de Sísifo, que caminha entre a Filosofia e a Literatura, Camus tenta explicar o absurdo e o suicídio

Por Paulo Roberto Pedrozo Rocha

O Grito, de Edvard Munch (1893). Obra expressionista que evoca desespero existencial. Dor e angústia também são algumas das interpretações a respeito do quadro


Paulo Roberto Pedrozo Rocha é mestre e doutor em Filosofia pela USP. Atualmente cumpre estágio de pós-doutorado na PUC-SP e é professor dos cursos de graduação, Letras, Tradutor Intérprete e Ciências Sociais da Universidade Nove de Julho - Uninove

"Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia." Com essas palavras, o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) abre seu ensaio intitulado O Mito de Sísifo, quem sabe uma das obras mais significativas situada no tênue fio que separa a Filosofia da Literatura entre os europeus da metade do século passado.

O leitor da Filosofia irá recorrer em primeiro plano aos escritos dos iluministas franceses tais como Jean-Jacques Rousseau (embora este, tão frequentemente tratado como francês era, na verdade, suíço de nascimento) com o seu Júlia ou a Nova Heloísa ou até mesmo Voltaire (este sim um verdadeiro "Barão" francês) em contos como o Ingênuo, ou o clássico Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos que, escrito em 1782 retrata a antessala da Revolução Francesa, revelando de forma, ora divertida, ora irônica, um tratado de Filosofia Política no que se refere ao pensamento iluminista sobre as relações de classe e poder, temas tão caros aos filósofos de todos os tempos.

Camus é um romancista. Nesta condição, ele vive um dilema com a corrente existencialista tão em voga na metade do século XX. Para os existencialistas, dentre os quais se destaca Jean-Paul Sartre (1905-1980), a Literatura precisa ser engajada e não poderia mais ser vista como mera forma de entretenimento. Através dela era preciso dizer que o literato é antes de tudo um inconformado. Vale lembrar que boa parte dos existencialistas de então havia vivido a experiência da Segunda Guerra Mundial e no seu término estavam entre a indignação trazida pelos horrores da guerra e a esperança prefigurada pelo socialismo soviético1.

1 Para saber mais sobre esse assunto ver O que é Literatura, Jean-Paul Sartre, Ed. Ática, 1993.

Sísifo, por Max Klinger (1914). No mito grego, Sísifo é condenado a eternamente rolar uma pedra morro acima e buscá-la morro abaixo. Exemplo de paixão à vida, mesmo no absurdo da falta de sentido

Contudo, será num ensaio (e é importante lembrar que o ensaio é mais do que uma mera variação dos tratados filosóficos), e não em um romance que Camus irá elaborar o que poderíamos chamar de "DNA" do novo romance filosófico. O Mito de Sísifo se impõe como um instrumento de reflexão representando um gênero literário - o dos ensaios - consagrado na Literatura francesa desde Michel de Montaigne no século XVI.

O Mito de Sísifo é um livro de 1942. Nesta época, Camus já se distanciava gradativamente do existencialismo, corrente à qual, em sua opinião, ele nunca pertenceu. Para ele, não havia sentido exigir da Literatura uma posição sempre militante.

Esse comportamento sugeria a Camus uma espécie de mascaramento da realidade, pois ele via uma explícita intenção por parte dos pares do existencialismo em defender as atrocidades cometidas pelo regime soviético. Para Camus, a obrigatoriedade do engajamento implicaria, necessariamente, em um desvirtuar da tarefa principal da Literatura: revelar a alma humana.

Daí as primeiras impressões colhidas em O Mito de Sísifo: "Começar a pensar é começar a ser atormentado... matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos." Ao invés de uma confissão militante, se impõe uma decepção, um gesto que implica no desapontar-se com o mundo, o que poderia ser denominado noção do absurdo.

Ao propor a noção de absurdo, Camus passa quase que inexoravelmente a expor o tema de seu ensaio, que era "essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo." A princípio, os leitores de Camus poderiam supor que de sua escrita iria advir uma solução para a noção de absurdo. Ainda que esta solução fosse limite, ainda que constatasse que a vida não valeria a pena. Esta expectativa, na verdade, é frustrada.

ABSURDO: TEMÁTICA RECORRENTE ENTRE OS FILÓSOFOS

Albert camus não foi o primeiro a refletir sobre o absurdo. outros filósofos também lidam com esse tema. ele está presente nas teorias de Soren Kierkegaard, Léon Schestow, Karl Jaspers, Martin Heidegger, edmund Husserl e, mais próximos a camus, de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Para Heidegger, por exemplo, o existir é o absurdo e a Filosofia deve fazer o homem se dar conta disso. absurdo porque o "ser", lançado no tempo, e que nunca "é", depara-se com o "nada", e vive a angústia.

Mas Heidegger defende que essa percepção faz o homem se deparar com sua finitude e valorizar seus potenciais. Já Sartre, filósofo existencialista, associa o absurdo à "náusea" de estar vivo. a "náusea" adviria do fato de o homem não poder ser senão o "não-ser" e, "não-sendo", nunca poder se deparar com o nada. Karl Jaspers segue outra linha. ele acredita que a certeza existencial passa pela fé. ele defende uma fé filosófica. Só ela faria o homem entender o absurdo da vida.

Tem-se a noção de absurdo quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, põe em questão o ato de viver

Édipo, personagem da tragédia de Sófocles, é um exemplo de que o homem é limitado, precisa viver até o fim para julgar seu destino, já que o sentimento do absurdo pode nascer da felicidade

É preciso mais uma vez lembrar o contexto no qual Camus estava inserido. Este contexto histórico ansiava por respostas. Camus fazia questão de não tê-las e desfazer dos pretensos senhores da razão. Camus conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre durante a Segunda Guerra Mundial, fato este que iria marcar seu pensamento e a relação de sua obra com a Filosofia.

O início desta amizade entre Camus e Sartre só não é mais importante do que o seu final. Divididos pela diferença no posicionamento político de sua época e porque viam na Arte - de um modo geral -, e na Literatura - de uma maneira particular - finalidades diversas, os amigos se separaram em um dos poucos casos em que o fim de uma amizade ocupou as páginas dos jornais seculares. Contudo, Camus não oferece respostas.

O próprio fim da amizade forçou as pessoas a escolher entre o rígido realismo dialético de Sartre e a recusa quase niilista proposta por Camus. O pano de fundo era a adesão ou não ao comunismo do tipo soviético como resposta aos anseios e à sensação de vazio trazidos pela Segunda Guerra.

No realismo sartreano, havia uma saída: a prevalência dos operários, ainda que intelectualizados. Em Camus, um ponto de interrogação preenchia os espaços ocupados pela certeza comunista. Neste sentido, Camus assinalava: "...o método aqui definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e apresentar o ambiente."


"Há dentro de nós a exigência absoluta de sermos eternos e a certeza de o não sermos. O absurdo é a centelha do contato destes dois opostos" VERGÍLIO FERREIRA

NOÇÃO DE ABSUDO

No entanto, uma questão se impõe: o que é exatamente esta noção de absurdo tão instigante na natureza humana e tão incômoda para Camus? Primeiro é preciso uma distinção fundamental. O sentimento do absurdo não é o mesmo que a noção de absurdo. Isso porquê, em toda parte, experimentamos o sentimento do absurdo. Uma simples revolta com as condições do cotidiano, uma tristeza repentina, causada pelo reencontro de alguém que muito nos marcou no passado e agora está ausente. Enfim, o sentimento do absurdo pertence, por assim dizer, ao vulgo.

Há pontos em que Filosofia e Literatura se esbarram. Camus faz isso, assim como Choderlos de Laclos, que no romance Ligações Perigosas retrata a antessala da Revolução Francesa sob a ótica iluminista das relações de classe e poder

Já a noção de absurdo é um passo a mais. Sua definição ontológica - para usar uma terminação aristotélica evocada por Camus em O Mito de Sísifo - se propõe pelas consequências advindas da sensação do absurdo. É quando o homem, confrontado pelo non-sense da própria existência, coloca em questão se o ato de viver é digno de sua natureza.

A partir daí, Camus acentua o caráter cáustico de sua análise. Para ele, "se fosse preciso escrever a única história significativa do pensamento humano, deveria ser a de seus arrependimentos sucessivos e de suas impotências" (Camus, 2004:32). Surge, enfim, o romancista trágico - uso o termo trágico no registro da tragédia como gênero literário e não pela comum adjetivação a que estamos habituados - capaz de ver a nulidade dos esforços humanos tentando dar sentido a uma existência que em si, por definição, é desprovida dos sentidos.

Afinal, Sísifo está sempre na base da montanha, sua alegria consiste nisso. Se a obra de Camus fosse uma composição musical talvez pudéssemos caracterizá-la como um réquiem. Sem dúvida um réquiem como Mozart uma vez propôs. Como se sabe, os réquiens eram compostos para o funeral de alguém. Mozart o fez sob encomenda a um rico comerciante, mas na verdade era na sua própria morte que pensava.

Imagens da Segunda Guerra Mundial. Camus escreveu, durante o auge do existencialismo, que pregava uma Literatura engajada por influência da proximidade dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mas não seguiu esta corrente

Nesta perspectiva, O Mito de Sísifo pode se referir à morte das esperanças de Camus em fatos tão ilustrativos como significativos da história francesa da metade do século XX. Muitas tinham sido as esperanças depositadas no Partido Comunista do pósguerra.

A própria Resistência - que para muitos historiadores foi mais romanceada pelos franceses do que seria capaz de atestar a realidade - havia proposto isso. No final, as atrocidades do regime soviético, suas alianças primeiras com Hitler e seus métodos similares a todo regime totalitário central, acabaram por apagar a chama de esperança acesa pelo comunismo. Camus estava entre aqueles que sopraram, ou viram soprar, a chama desta esperança.

Sísifo era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre": ele é dono de seu destino

Mas há uma alegria a ser notada. Sísifo, o mito grego condenado ao eterno trabalho de rolar a pedra de sua condenação morro acima e depois buscá-la ladeira abaixo, era portador de uma certeza que poderíamos chamar de "alegre" caso esta palavra não ofenda o espírito da obra: ele é dono de seu destino. Não deve seu futuro aos deuses. Seu futuro é o mesmo que seu passado. Se confunde com o presente:

"Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é a sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento...se há um destino pessoal, não há um destino superior ou ao menos só há um, que ele julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias." Libertar-se de seus ídolos. Essa talvez fosse a consequência positiva da noção de absurdo. Na verdade, Camus apresenta Sísifo como um herói do absurdo.

O desprezo que este alimenta pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida fizeram com que ele fosse supliciado ao castigo eterno. Mas não importa: sua resistência abriu o caminho a uma felicidade diferente. Camus observa: "A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce necessariamente da descoberta absurda. Às vezes ocorre também que o sentimento do absurdo nasce da felicidade. 'Creio que está tudo bem', diz Édipo, e esta frase é maldita. Ressoa no universo feroz e limitado do homem e ensina que nem tudo foi experimentado até o fim. Ela expulsa deste mundo um deus que havia entrado nele com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um assunto humano, que deve ser acertado entre os homens."


O Suicídio de Lucrecia, de Jörg Breu, o Velho. Para Camus, decidir se a vida vale ou não a pena de ser vivida é a grande questão da Filosofia

Para silenciar as reflexões aqui contidas - o silêncio é para Camus o sinal de que o absurdo se instaura - uma vez que concluí-las seria demasiado pretensioso, seguimos o exemplo de Camus e evocamos, com a eloquência da tragédia grega, nascedouro do romance moderno, as palavras do Corifeu que na peça de Sófocles, Édipo Rei, talvez apresente a melhor síntese do que se quis ou não quis dizer sobre o tênue fio que liga a Filosofia com a Literatura: "Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja?

No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida." (Sófocles, Édipo Rei) O grito de esperança é silencioso. O que atrita o homem comum, se torna natural. A busca continua a mesma... tudo parece voltar ao princípio pois "só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da Filosofia"


Albert Camus (1913-1960), escritor e filósofo. A possibilidade cotidiana de morrer permeia sua obra filosóficoliterária, que tem o absurdo como marca

Revista Filosofia

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